A audição do ex-diretor do serviço de Neuropediatria do Hospital de Santa Maria ficou marcada por momentos de descontração e de crítica direta ao Presidente da República. António Levy Gomes disse, perante os deputados da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), que acredita que o ex-secretário de estado António Lacerda Sales não marcou a consulta para as gémeas; admitiu a possibilidade de a ex-ministra da Saúde, Marta Temido, poder ter tido interferência no caso; e exigiu um pedido de desculpa a Marcelo Rebelo de Sousa, pelo que diz ter sido a “retaliação” que o chefe de Estado terá levado a cabo contra si, numa conferência em imprensa no Palácio de Belém, em dezembro do ano passado.

Foi em resposta à deputada da Iniciativa Liberal Joana Cordeiro que António Levy Gomes disse acreditar que o ex-secretário de estado da Saúde, Lacerda Sales, não pediu o agendamento da consulta para as gémeas brasileiras. “Acredito na palavra do secretário de Estado, que me disse a mim que não tinha marcado a consulta”, disse o ex-diretor de neuropediatria do Santa Maria.

O médico diz que nunca ouviu “nenhuma referência ao secretário de estado até há um ano” e não dá como garantido que António Lacerda Sales tenha pedido a marcação da consulta. “Já estou como ele. Por que dão mais valor à palavra da secretária do que à do secretário de Estado? É um assunto em aberto”, defendeu.

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Para o ex-diretor de Neuropediatria do Santa Maria o “acesso ao SNS é facílimo” e as gémeas poderiam ter tido acesso à consulta (e ao tratamento) através do serviço de urgência. “Se o secretário de Estado esteve envolvido, porque não disse apenas para irem à urgência?”, questionou Levy Gomes.

Levy Gomes afirmou que “pode haver mais pessoas envolvidas” no alegado favorecimento às gémeas luso-brasileiras, entre as quais as ex-ministra da Saúde, Marta Temido. “A minha colega Teresa Moreno disse que tinha havido telefonemas do gabinete da ministra”, revelou António Levy Gomes, acrescentando que não acredita que o ex-diretor clínico, Luís Pinheiro (que só será ouvido na CPI em janeiro) tenha tido interferência no caso. “O Luís Pinheiro não teve muita interferência nisto. Acredito na versão dele”, afirmou.

É “mais fácil dizer que a culpa é do secretário de Estado que do Presidente”

Na sua intervenção inicial, o ex-diretor de Neuropediatria do Santa Maria, que se aposentou este ano, disse aos deputados que a situação das gémeas luso-brasileiras “não é um problema médico, é um problema administrativo e político”. E afirmou mesmo, em resposta à deputada do PS Ana Abrunhosa, que é “mais fácil, numa sociedade hierarquizada, dizer que a culpa é do secretário de Estado do que do Presidente”. “Porque o Presidente é mais poderoso e pode-nos fazer mal”, disse, em tom irónico. A audição ficou, de resto, marcada por momentos de elevada descontração entre Levy Gomes e os deputados. O presidente da CPI, Rui Paulo Sousa, viu-se mesmo obrigado a interromper os trabalhos por duas vezes, para pedir ao médico que não fizesse considerações paralelas.

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Marcelo Rebelo de Sousa foi, aliás, o ‘alvo’ de muitas das críticas de António Levy Gomes. O médico começou por explicar que, desde o ano 2000, tem “um acesso fácil” via email a Marcelo Rebelo de Sousa, com quem fala sobre vários assuntos. “Prossegui esses contactos sobre saúde, política em geral, acontecimentos. Sempre obtive da parte dele abertura e nunca nenhum enfado”, disse o ex-diretor do serviço de Neuropediatria do Santa Maria.

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No entanto, essa relação cordial terá sido interrompida em novembro de 2019, quando Levy Gomes se apercebeu de que Marcelo Rebelo de Sousa teria intercedido a favor das gémeas luso-brasileiras, que acabariam por ser tratadas com aquele que era, à época, o medicamento mais caro do mundo.

O médico Levy Gomes revelou, em resposta ao deputado do PSD António Rodrigues, que — três dias depois de os médicos terem escrito uma carta ao Conselho de Administração do Hospital de Santa Maria a alertar para o recurso ao SNS de pessoas cujo único objetivo era terem acesso a medicamentos inovadores muito caros, o que poderia colocar em causa a sustentabilidade do sistema — a médica Teresa Moreno lhe transmitiu que o pedido de marcação de consulta para as gémeas teve origem em Marcelo Rebelo de Sousa.

Levy Gomes confrontou Marcelo. “Disse-lhes ‘estas vêm por seu intermédio, ao arrepio da carta que lhe enviei’”

Depois disso, Levy Gomes lembra que confrontou Marcelo Rebelo de Sousa (com quem contactava frequentemente por email e a quem tinha enviado a mesma carta, dias antes). “E eu disse-lhe ‘estas vêm por seu intermédio, ao arrepio da carta que lhe enviei’”, disse Levy Gomes. O médico diz que a carta subscrita por várias médicos do hospital, e pelo próprio, “foi um dever de cidadania, um dever cívico”, com o objetivo de “tornar evidente a discrepância que havia entre o tratamento e a abertura para determinados gastos e o depauperamento com que as pessoas que trabalham no SNS se deparam”.

Questionado pelo deputado do Chega André Ventura sobre a conferência de imprensa de Marcelo Rebelo de Sousa no Palácio de Belém, realizada em dezembro do ano passado, Levy Gomes admitiu que essa comunicação do Presidente da República pode ter sido uma tentativa de o repreender em público e exigiu um pedido de desculpa ao chefe de Estado.

“Foi uma retaliação forte. Não sei se o Presidente da República quis desancar-me publicamente. Gostava de ter um pedido de desculpa público por ele ter dito, na conferência de imprensa, que eu lancei este assunto. Quem lançou foi [a jornalista] Sandra Felgueiras e eu confirmei os dados dela”, disse Levy Gomes. O médico confirmou que, na altura, viu a conferência de imprensa de Marcelo Rebelo de Sousa e entendeu a comunicação do chefe de Estado como um “condicionamento”.

Confrontado com a atitude da neuropediatra Teresa Moreno (que acabaria por acompanhar as gémeas), o ex-diretor do serviço de Neuropediatria admitiu que a médica ficou zangada com a pressão exercida sobre si para que a consulta fosse agendada e reconheceu que também já viu “doentes de secretários de Estado”, sem adiantar, no entanto, o que tal significa. “Para a Teresa Moreno ter escrito ‘veio a pedido do secretário de estado’ é porque estava muito zangada. Eu vi doentes de secretários de Estado e nunca escrevi [isso]“, sublinhou Levy Gomes sem adiantar mais detalhes em concreto ou nomear pessoas.