É o exercício inevitável a que nem presidente da Assembleia nem Presidente da República vão resistir, lá à frente, nos respetivos discursos: que diria Eça de tudo isto? Que crónica escreveria sobre este dia de chuva intensa, uma quarta-feira de janeiro, em que, depois de o tirarem outra vez da cova, foram levar a sepultar, com pompa e circunstância, numa sala cheia de políticos e outros notáveis, no “Altar da Fama” da nação? Nunca saberemos; podemos apenas suspeitar, sem grande margem para erro, que não seria brando. Resta-nos fazer a nossa própria, paupérrima comparada com a que Eça escreveria, quanto mais com a que não escreveu.
Em tempos, já aqui expusemos o que pensamos da questão de fundo: se, quatro anos depois da decisão unânime do Parlamento de conceder a Eça honras de Panteão, deveria ou não ter sido feita a trasladação, o assunto que levou a uma disputa familiar entre descendentes e que acabou nos tribunais. Se é preciso trazer um morto notável para Lisboa para garantir que o apreciamos, se não o podemos fazer em Santa Cruz do Douro. Se o fazemos por nós ou pelo morto. Se faz assim tanto sentido lutar pelo direito a ser guardado numa arca ao lado de um túmulo vazio de Camões, só com o nome gravado por fora. Se Eça o quereria, ele que, ao tempo, criticou o Panteão francês e especulou sobre que critérios seriam esses com que se elegia alguém “um grande homem”. Se ter a última morada na Igreja de Santa Engrácia, quando Camões, Pessoa, Vasco da Gama ou, tanto quanto sabemos, Dom Sebastião, repousam nos Jerónimos, o Infante Dom Henrique no Mosteiro da Batalha, o rei-fundador Dom Afonso Henriques no de Santa Cruz, em Coimbra, Camilo Castelo Branco no cemitério da Igreja da Lapa, no Porto, ou Pedro Álvares Cabral no sepulcro da família da mulher, em Santarém, será mesmo merecedor de tanta admiração ou polémica, ou apenas moda transitória de uma época (mais de metade dos seus ilustres inquilinos mudaram-se para lá nos últimos 35 anos, num país com quase 900). Hoje já não é, portanto, disso que se trata. Do debate. Apenas da homenagem. Passemos a ela.
Com a chuva bíblica que cai sobre Lisboa, os nossos primeiros pensamentos estão com os militares da GNR. Os militares e os cavalos, que fazem a escolta de honra à charrete que transporta a urna, coberta por uma bandeira de Portugal que já não é a mesma do tempo de Eça (se Portugal é o mesmo já seria outra questão). Os militares da GNR, os cavalos e os jornalistas que acompanham a viagem no terreno, da Assembleia da República a São Vicente, não como nós, comodamente em casa, a assistir pela televisão, quem sabe em pijama, como Eça escrevia de pijama e de pé, junto a uma mesa alta, conforme recordado mais adiante nas palavras da filha pelo trineto e principal promotor da trasladação, Afonso Reis Cabral. Ao menos, o homenageado vai morto, pensamos. Não lhe incomodará a intempérie, nem as ruas desertas de povo por causa da mesma, nem o navio de cruzeiro que agora parece anacronicamente ali estacionado quando o cortejo passa por Santa Apolónia. Não sabemos como vai dentro do caixão. Como se apresentará hoje, quase 125 anos depois de deixar este mundo, curiosamente no dia em que uma investigação científica nos deu a conhecer o verdadeiro rosto de Dom Dinis a partir dos restos mortais de um grande rei, também ele escritor. Se lhe tiverem vestido o pijama, pensamos, que tenha sido dos bons, dos chiques. A valer.
Na igreja, vão chegando e aguardando os mais de 300 convidados. Inês Sousa Real do PAN ri-se de uma graça do deputado do Chega, PS e IL conversam nas pessoas de Alexandra e Mariana Leitão. Cobre-se a boca atrás da mão quando se sente a presença de uma câmara mais perto. Os familiares do homenageado parecem envolvidos numa elegância antiga, distinta, que cobiçamos. E, entretanto, descobrimos um quarto setor a admirar no dia de hoje: os responsáveis pela iluminação do interior do Panteão, que conseguiram torná-lo belo, quente. Nunca esteve tão telegénico. João da Ega haveria de apreciar.
Poucos minutos depois das 11, já com a presença das mais altas patentes da nação, da queda de um militar a cavalo e de a chuva ter dado uma muito ligeira trégua para que o ritual começasse, como previsto, ainda na esplanada da igreja, começa, enfim, a cerimónia.
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Será uma homenagem elegante, a que acontece durante a hora e meia seguinte. Carlos Reis, Bárbara Reis, Hugo Van Der Ding, Pedro Saavedra, Mónica Lisboa, todos exemplares na função, leem excertos mais ou menos conhecidos e inofensivos do autor, exceção aberta para aquele trecho arrasador das Farpas, na voz da jornalista do Público: “O País perdeu a inteligência e a consciência moral. Os costumes estão dissolvidos e os caráteres corrompidos. A prática da vida tem por única direção a conveniência…”, e por aí abaixo, a arrasar tudo, dos serviços públicos à inércia dos intelectuais. Entre Os Maias, O Primo Basílio, O Crime do Padre Amaro ou A Cidade e as Serras, o maestro João Paulo Santos e a soprano Sara Braga Simões cuidam dos momentos musicais, implicados nos textos. De resto, direito a três bons discursos em três, um pequeno luxo: sólido elogio fúnebre de Afonso Reis Cabral, a recordar as múltiplas facetas de Eça e a importância de um autor através dos seus leitores, citando, sem nomear, alguns dos presentes; Aguiar-Branco, como acontece muitas vezes nestas cerimónias protocolares, embora poucas notado, a ser o mais provocador; e Marcelo Rebelo de Sousa a sair com a ideia mais interessante: “Não é suficiente enterrar os mortos e cuidar dos vivos. Precisamos também de cuidar dos mortos, mesmo quando continuam vivos.”
Ainda falaria Isabel Pires de Lima, antiga ministra Cultura e nova presidente da Fundação Serralves, regressando a Os Maias. A banda da GNR tocaria o hino. Retirada a bandeira do caixão, dobrada, entregue ao Presidente da República e por ele a um dos descendentes, que a beijou, um arrepiozinho correu a espinha do cronista mais cínico (no sentido inglês, que o homenageado não desdenharia). Termina a cerimónia e começam os convidados a sair, de novo, para a chuva. Eça de Queiroz, que é o 13.º “imortal” a ser trasladado para o Panteão (nunca será de mais dizer que nem os restos mortais de Vasco da Gama, nem de Pedro Álvares Cabral, nem de Camões, nem de Nuno Álvares Pereira, nem de Afonso de Albuquerque, nem do Infante Dom Henrique, estão ali, ao contrário do que dão a entender alguns jornalistas durante a cobertura televisiva. São apenas cenotáfios. Arcas vazias. Decoração), fica agora a repousar sozinho numa nova sala, à espera de saber quem serão os seus parceiros de camarata. Aqueles que ocuparão as três últimas vagas deste grande hostel de mármore. Quando se entediar, talvez possa vaguear pelas demais, perguntar a Eusébio que coisa é essa da mística, a Sophia afinal que dia foi esse, inteiro e limpo, ou a Humberto Delgado como tem sido esta longa convivência com Óscar Carmona.
No fim, isto não é pelo homem, é pelo país. Pela oportunidade de lhe dar estes breves instantes de união, reflexão, identidade. É o último favor que Eça faz à nação.