Às vezes, a actualidade dos vivos anda tão interessante que uma pessoa dá por si mais empolgada com as notícias dos mortos. Na verdade, é talvez esse o segredo do fascínio das histórias de vampiros – e de uma certa imprensa sensacionalista, passe a redundância.

Foi o que aconteceu esta semana. A notícia em questão não envolve crimes passionais, ajustes de contas com machadinhas nem detalhes sórdidos sobre heranças e profanações de cadáveres, mas algo que, por vezes, pode ser ainda mais assustador: a política. Referimo-nos ao extraordinário caso da trasladação de José Maria de Eça de Queirós para o Panteão Nacional.

A história conta-se assim: por proposta da Fundação Eça de Queirós, dirigida pelo trineto Afonso Reis Cabral, e aprovação unânime dos partidos na Assembleia da República, ficou marcada para 27 de Setembro a trasladação dos restos mortais do escritor do sossego de Tormes (Santa Cruz do Douro) para o Panteão Nacional. Todavia, sucede que nem todos os herdeiros estão de acordo. E, embora numa minoria de seis contra 13, são os bisnetos, os descendentes mais directos ainda vivos, que se opõem à transferência do ilustre antepassado para Sul. Disso mesmo deram conta em carta ao Presidente da Assembleia da República; e depois noutra ao Presidente da República; e como nem um nem outro pareceram interessados em dar-lhes ouvidos, vão agora avançar para tribunal e tentar uma providência cautelar que trave o processo.

Ora, o Panteão, como sabem, é uma criação recente no almanaque nacional. Qual novo aeroporto de Lisboa antes da invenção do avião, a sua construção arrastou-se pelos séculos, até, finalmente, ser concluída por Salazar. Problema resolvido; só faltava saber o que fazer com aquilo. Provavelmente imitando os franceses (como em tantos outros casos nacionais, a começar pelo Hino), alguém se lembrou de fazer do sítio uma arca para os vultos insignes da pátria – e o resto, ou melhor, os restos, são História.

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Pessoalmente, é intrigante pensar porque é que alguém gostaria de ser enterrado ou de ver enterrar um ente querido num lugar tão frio e, paradoxalmente, sem história, onde, quando há critério, se assemelha a uma tenda vip dos mortos da Primeira República, e, quando não há, a um sortido acrítico onde coabitam figuras tão antagónicas como o grande Presidente da República do salazarismo e o candidato a Presidente que o quis derrubar. Mas respeitamos, como é óbvio, quem nisso veja uma honra e uma homenagem legítimas. Não é por isso que a questão é política.

Porque é que a questão é política? Porque, no fundo, opõe duas visões de mundo: a dos que acreditam nos direitos do indivíduo e os que acham que tudo é do Estado e que o Estado é que sabe o que é melhor para o bem de cada um. Não por acaso o antigo presidente da junta de Santa Cruz do Douro, que é do PSD, é contra a trasladação, e o actual, do PS, a favor, tal como José Luís Carneiro, ministro da Administração Interna, antigo autarca de Baião e parte activamente envolvida no processo.

Um herói fica sempre bem na lapela e não há político, independentemente da cor partidária, que não goste de se aproveitar do prestígio das grandes figuras. Mas que todos os partidos, da esquerda à direita, tenham votado neste caso da mesma maneira, mostra apenas o simplismo com que hoje tratamos o passado, ou pior, o medo de desagradar a alguma má-língua das todo-poderosas redes sociais. Afinal, os títulos diriam apenas “Partido X contra Eça no Panteão” e isso bastaria para arder em praça pública, acusado de insensibilidade cultural, provavelmente por gente que nem passou da descrição do Ramalhete.

É verdade que, nos últimos anos, se tentou dar outra dignidade ao Panteão de Santa Engrácia, com a trasladação de Sophia, Amália ou Eusébio. Mas enquanto lá estiverem os cenotáfios, isto é, os túmulos vazios que, alegadamente, homenageiam pessoas que não estão ali, estamos conversados quanto à honra de ali repousar ou não para sempre. A menos que conheçam alguém que vá ao Panteão prestar homenagem aos simulacros dos túmulos de Camões e Vasco da Gama, quando pode ir aos Jerónimos e ficar diante dos verdadeiros.

De resto, também não estão lá o Infante Dom Henrique (na Batalha), nem Pedro Álvares Cabral (quase incógnito, no túmulo da mulher, em Santarém), nem Aristides de Sousa Mendes (o descerrar da placa deu imensas notícias, mas o homem continua em Cabanas de Viriato). Como não estão Camilo, no cemitério da Lapa, nem Dom Afonso Henriques ou a Rainha Santa Isabel, em Coimbra, nem Dom Dinis, em Odivelas, nem tantos outros. Aliás, é estranho que o mesmo Estado que tanto gosta de falar em descentralização insista agora em retirar às localidades as relíquias dos seus maiores para as concentrar num aquário na capital. E mesmo no género “Cemitério das Celebridades”, quão mais divertido não será estar nos Prazeres onde, acaso haja vida depois da morte, devem ter lugar os diálogos mais extraordinários entre Vasco Santana e Raul Solnado, Mário Viegas e Mário Cesariny, José Malhoa e Maria Judite de Carvalho, Maria de Lourdes Pintasilgo e Alfredo Marceneiro, Cardoso Pires e Ramos Rosa, Amélia Rey Colaço e Carlos Paredes, e tantos, tantos outros.

Veremos o que decide o tribunal e o que fazem, a seguir, políticos e familiares. Especialistas na matéria dizem que, nestes casos, pode ser importante ter em conta, imagine-se, a vontade do próprio, caso a tenha deixado expressa. Não há muito tempo, por exemplo, Manuel Alegre propôs que se levasse também Salgueiro Maia para Santa Engrácia, mas a conversa acabou depressa, assim que a família revelou que o próprio deixara bem clara a vontade de ser sepultado em campa rasa na sua Castelo de Vide natal.

Infelizmente, no caso de Eça, não temos a sorte de conhecer a sua última vontade – talvez até preferisse que o tivessem deixado sossegadinho na sua Paris, onde morreu e foi originalmente sepultado, antes de mudado para o Alto de São, primeiro, e para Tormes, depois (sempre um viajado, mesmo depois de morto). Mas aprendemos aqui há dias, graças a um artigo de Joana Emídio Marques, que criticou os “panteões” num texto intitulado “Os Grandes Homens de França”, descrevendo-os como coisa que só servia ao Estado e que seria sempre impossível decidir quem era e quem não era “um grande homem”.

Pelo sim, pelo não, caro leitor, deixe uma nota no telemóvel a dizer o que quer que lhe façam depois da viagem para a terra da verdade: órgãos para transplante, cremação, honras de Estado. Só para o caso de, um dia, alguém considerar que é um morto melhor do que os outros. Até lá, o que me custa mesmo – mesmo, mesmo – é que nunca poderemos ler a crónica extraordinária que Eça escreveria sobre tudo isto.