Ainda há pouco tempo, a 7 de junho, o cheiro a lacre queimado tomou conta das assembleias de voto na Turquia. Ainda é assim, com aquela cera vermelha, que se garante a inviolabilidade das urnas de voto naquele país de quase 80 milhões de pessoas. E assim será neste domingo, quando o país presidido por Recep Tayyip Erdoğan for a votos pela segunda vez em menos de cinco meses.

Em junho, o seu AKP (Partido da Justiça e o Desenvolvimento, centro-direita islamita), recebeu 40,9% do votos depois de ter apresentado Ahmet Davutoğlu como candidato a primeiro-ministro. Apesar da vantagem para o segundo (Partido do Povo Republicano, centro-esquerda, 26%) e o terceiro classificados (Partido do Movimento Nacionalista, direita nacionalista, 16,3%), Davutoğlu não conseguiu chegar à maioria absoluta e, depois de meses de diálogo, levantou-se da mesa de negociações sem uma coligação. Erdoğan, que depois de dois mandatos como primeiro-ministro foi eleito Presidente em 2014, convocou novas eleições sem dar hipótese ao segundo partido mais votado de chegar a um acordo com outros partidos.

Existe, porém, um outro partido que está a desequilibrar a aparentemente inabalável estabilidade do AKP. Trata-se do Partido Democrático do Povo (HDP, centro-esquerda e representativo da minoria curda, 13,1%) que conseguiu entrar no parlamento em Ancara depois de ter ultrapassado a barreira dos 10% de votos. Pensa-se que uma boa parte dos votos depositados no partido liderado por Selahattin Demirtaş venha de eleitores desiludidos do AKP e também do eleitorado de esquerda que passou a ver no HDP um partido nacional e não apenas um força política pró-curda.

Maior atentado de sempre em vésperas de eleições

Por isso, o maior combate político desta campanha eleitoral tem sido o da batalha travada entre o AKP e o HDP, com acusações fortes a partirem de cada lado da barricada. Da parte do HDP, Demirtaş questionou a atuação do governo turco depois dos atentados de 10 de outubro em Ankara, onde várias organizações e partidos de esquerda, incluindo o partido pró-curdo, se manifestavam a favor da paz. 

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Foi o maior atentado da história da Turquia, com 102 mortos e mais de 400 feridos entre as vítimas. Apesar de terem sido identificados dois bombistas suicidas com ligações ao Estado Islâmico e que terão sido responsáveis pelo atentado, Demirtaş não hesitou em criticar o governo turco no próprio dia das explosões:

Estamos perante um Estado que tem uma mentalidade de máfia, um assassino em série que quer tornar a nossa sociedade cativa. Nós vamos passar por cima destes dias com a resistência daqueles que não se rendem à perseguição (…). Não vamos deixar que estes incidentes fiquem na História somente como uma crueldade. Temos a certeza de que esta mentalidade não vai durar para sempre. “

Do lado do AKP, o candidato a primeiro-ministro, Ahmet Davutoğlu insistiu naquela que tem sido a retórica do seu partido perante o recém-chegado HDP: que este partido pró-curdo é, apesar da sua postura cuidada e urbana, apenas uma versão polida do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), a força política clandestina e cujo braço militar está em permanente conflito com o exército turco. A polémica aumentou depois de o Estado Islâmico ter atacado a cidade síria curda de Kobane, junto à fronteira com a Turquia e o governo turco ter recusado ajuda à população em fuga. E tem escapado a poucos o facto de um dos irmãos de um dos irmãos de Demirtaş ter estado preso durante 12 anos por ter sido militante do PKK e do qual se suspeita que esteja a combater na Síria ou no Iraque.

Agora ele grita ‘estado assassino’ em comícios, enquanto os funerais das vítimas do atentado de Ankara ainda estão a ser feitos, um atrás do outro (…). Se ele quer ver um assassino, então que olhe ao espelho!”

Mais recentemente, o próprio Erdoğan decidiu entrar neste jogo e lançar suspeitas sobre o HDP, associando-o aos EUA. “A campanha deste partido está a ser feita pela equipa de campanha de Obama. Esta equipa teve reuniões figuras de topo da oposição recentemente. Também se reuniram com grupos de media. Os mesmos grupos de media que se opõem a nós enquanto nós fazemos uma campanha anti-terrorista. Acho que não é necessário ir mais longe para explicar quem é esta gente… Essa equipa de campanha [de Barack Obama] diz que se repetirmos uma mentira muitas vezes ela torna-se verdadeira.”

“Há sangue a correr em toda a Turquia. E Erdoğan e o seu governo estão a tentar lucrar com este clima de tensão ao forçar o país entre uma escolha entre o caos e uma ordem assegurada”, disse à AFP o colunista Kadri Gursel. “Mas há pouca probabilidade de que essa estratégia lhe conceda uma maioria absoluta (…). A sociedade turca está tão polarizada, cada lado está tão agarrado às suas convicções, que há poucas probabilidades de haver uma grande mudança política.”

A sombra de Erdoğan e de um “líder forte” e presidencialista

Apesar de já não ser sequer militante do AKP — na Turquia, o Presidente tem de ter um perfil formalmente apartidário —, Erdoğan é o político que mais tem mais a ganhar ou a perder com estas eleições. Depois de ter governado com maioria absoluta entre 2003 e 2014 — período em que afastou o seu país da UE, assistiu a um crescimento da economia, afirmou a Turquia como uma força incontornável daquela região, ao mesmo tempo que levou a um decréscimo da liberdade de imprensa e de expressão — Erdoğan, entretanto eleito Presidente, quer que a Turquia passe a funcionar num sistema presidencialista. Um exemplo disso — e também de como a neutralidade do Presidente é apenas um formalismo e não a prática —foi um discurso antes das eleições de junho que pouco adiantou para o resultado final:

Estão prontos para abraçar uma nova Constituição, um sistema presidencial e um processo de colonização mais rápido [para resolver a questão curda]? Então, irmãos, dêem-nos 400 deputados e deixem que o assunto seja resolvido pacificamente.”

Um estudo da Pew Global Research explica que a maioria dos turcos prefere um “governo democrático” (56%), contra 36% que dizem antes quererem ser governados por um “líder forte”. Embora estes últimos tenham crescido desde 2012 (nessa altura eram só 26% que queriam um líder forte, contra 68% de partidários de um governo democrático), é claro que os números ainda não viraram a favor do Presidente turco.

E o índice de popularidade de Erdoğan é-lhe cada vez menos favorável. Antes das eleições de junho, apenas 39% viam o homem forte da política turca de forma positiva e 51% davam-lhe uma avaliação negativa. É uma queda significativa para o homem cujo retrato chegou aparecer lado a lado ao do Mustafa Kemal Atatürk, o “Pai dos Turcos” e fundador da nação, em restaurantes, barbearias e lojas por todo o país. Para comparar, em 2014, 51% aprovavam a sua atuação. E em 2013, o número era 62%. Feitas as contas, desde então, perdeu mais de um terço do apoio dos turcos.

As sondagens para as eleições apontam para um resultado em toda a linha semelhante ao de junho. Embora os estudos de opinião garantam um resultado de 40% ao AKP, também o HDP deverá voltar a entrar no parlamento ao conseguir mais do que 10% dos votos. Assim sendo, a Turquia está perto de ter em novembro aquilo que teve em julho. E resta saber se é desta que Erdogan aceita resultados que lhe desagradam.