Sim, quem sai do Governo pode ir trabalhar diretamente para o setor privado, desde que a empresa para onde vá trabalhar não tenha estado envolvida em privatizações ou tenha recebido apoios financeiros ou benefícios fiscais do Estado no setor em que tutelou durante o seu mandato. Caso um ex-ministro ou outro detentor de cargo público queira à mesma integrar uma empresa que esteja dentro destes casos, tem de esperar três anos até o poder fazer. Mas partidos como o PCP ou o Bloco de Esquerda não só queriam aumentar este período, como também restringir as empresas do setor privado que um ex-governante pode integrar. Até o PS, ainda no tempo de António José Seguro, propôs estas mesmas restrições.
Agora, o Bloco de Esquerda quer voltar a apresentar um projeto de lei que caducou em 2015 e embora o PCP também tenha apresentado na altura um diploma sobre a matéria, os comunistas dizem ainda estar a “considerar a possibilidade”, segundo disse ao Observador o deputado Jorge Machado. “Esta questão revelou a promiscuidade do poder político com o capital“, referiu o deputado sobre o caso de Maria Luís Albuquerque. Já José Magalhães, antigo deputado socialista e responsável pelas propostas do partido sobre estes temas na última legislatura, considera que episódio é “uma coisa doida” e que Parlamento deve rever as leis que regem estes temas assim que terminar a discussão do Orçamento do Estado.
O Regime Jurídico de Incompatibilidades e Impedimentos dos Titulares de Cargos Políticos e Altos Cargos Públicos, que explicita quais as funções que são ou não compatíveis com o mandato político e o que um detentor de cargos públicos está impedido de fazer, enuncia no artigo 5º que “os titulares de órgãos de soberania e titulares de cargos políticos não podem exercer, pelo período de três anos contado da data da cessação das respetivas funções, cargos em empresas privadas que prossigam atividades no setor por eles diretamente tutelado, desde que, no período do respetivo mandato, tenham sido objeto de operações de privatização ou tenham beneficiado de incentivos financeiros ou de sistemas de incentivos e benefícios fiscais de natureza contratual“.
Ou seja, Maria Luís Albuquerque não está impedida por lei de ter funções como diretora não-executiva da Arrow Global, já que esta empresa nunca terá beneficiado das privatizações feitas durante o Governo de Passos Coelho ou beneficiado diretamente de apoios ou benefícios por parte do Ministério das Finanças chefiado pela social-democrata. A título de exemplo, se Sérgio Monteiro, antigo secretário de Estado dos Transportes que tutelou a privatização da TAP passasse para o consórcio Atlantic Gateway, que comprou a transportadora aérea nacional, isso não seria permitido. Já Jorge Coelho, que foi ministro do Equipamento Social, na prática, obras públicas, entre 1999 e 2001, entrou para a construtora Mota Engil apenas em 2008, ou seja, depois do chamado período de nojo de três anos.
No entanto, no caso de Maria Luís Albuquerque surge ainda a questão de esta ser atualmente deputada à Assembleia da República e de haver um regime específico, que consta no Estatuto dos Deputados, sobre os impedimentos entre o mandato como deputado e outros cargos. Mesmo assim, ao assumir um cargo não-executivo na Arrow, Maria Luís Albuquerque também não está a quebrar nenhuma das regras do Parlamento atualmente em vigor e é possível a um deputado integrar cargos não-executivos nos setores privados, assim como integrar sociedades de advogados, desde que estes cargos sejam todos declarados no seu registo de interesses.
Uma lei que já esteve muitas vezes para mudar
Apenas no última legislatura – entre 2011 e 2015 – a lei das incompatibilidades dos detentores de cargos políticos foi alvo de oito projetos de lei na Assembleia da República, todos rejeitados ou caducados. Uma das maiores reivindicações destes projetos apresentados pelo Bloco de Esquerda, pelo PCP e pelo PS é o aumento do período de nojo entre o cargo político e a possibilidade de assumir um cargo numa empresa do setor onde se exerceu o mandato. Outro ponto recorrente é o aumento das restrições às empresas onde um ministro ou outra figura com um cargo político destacado pode trabalhar quando sair no poder, sendo que a limitação mais pedida é que seja qualquer empresa que atue no setor tutelado.
É mesmo esta a proposta que o Bloco de Esquerda pretende agora recuperar, segundo revelou Catarina Martins na noite de quinta-feira. Em 2015, o Bloco de Esquerda propôs criar a Entidade de Transparência dos Titulares de Cargos Políticos e Altos Cargos Públicos, que ajudaria o Tribunal Constitucional a investigar os titulares de cargos políticos e públicos. Neste projeto de lei, o Bloco de Esquerda propôs que o período de nojo deveria passar para seis anos e que os detentores de cargos políticos não poderiam exercer atividades “no setor de atividade onde tenham exercido responsabilidades públicas”. Apesar de estar proposta ter sido aprovada na generalidade – com a abstenção do PSD, PS, CDS-PP, PCP -, caducou antes do fim do processo legislativo.
Já o PS teve posições diferentes entre setembro de 2014 e março de 2015. António José Seguro entregou, poucos dias antes das eleições primárias, alterações ao regime de incompatibilidades e impedimentos dos titulares de cargos políticos, onde indicava que o período de nojo deveria aumentar para quatro anos e que esses titulares deveriam ficar impedidos de trabalhar em qualquer empresa do setor que tutelavam – em linha com o que o Bloco de Esquerda e PCP vinham a pedir durante toda a legislatura. No entanto, esta iniciativa foi retirada em março de 2015, quando António Costa já era líder do partido. Ao Observador, José Magalhães, então deputado socialista e que se assume como redator das duas leis, diz que não se tratou de qualquer imposição da direção e que a proposta apresentada em 2015, que repete o que já está na lei, nomeadamente só proibindo os detentores de cargos políticos de integrarem empresas que tenham participado em privatizações e não alterando o período de nojo, veio “afinar” a proposta inicial. “Não houve guerra nenhuma entre socialistas puros e impuros. A ideia era fazer aprovar o diploma na generalidade, como aconteceu, e depois chegar a um novo entendimento sobre a lei“, esclareceu José Magalhães ao Observador, no entanto, a iniciativa caducou.
António Galamba, ex-dirigente de António José Seguro, garante ao Observador que “se tivessem sido aprovadas as propostas apresentadas por impulso do PS nada disto [caso de Maria Luís Albuquerque] acontecia”. “Agora, já nada me espanta: secretários de Estado que na privada venderam swaps, depois criticaram e diabolizaram. Uma ministra que gerou dívida e não resolveu o Banif e que vai para uma empresa gestora de dívida”, acrescenta.
O PS, pela voz do líder parlamentar, Carlos César, já veio garantir que o problema não é a lei e que esta está bem como está.
A última proposta do PCP sobre esta matéria entregue em 2015, visava mudar não só o regime de incompatibilidades, mas também o Estatuto dos Deputados, de modo a impor um regime de exclusividade de mandato na Assembleia da República. Sobre o período de nojo, o PCP propunha um período de cinco anos e vedavam a possibilidade de um detentor de cargo político exercer quaisquer atividades no setor por ele diretamente tutelado. Este diploma foi rejeitado na generalidade pelo PS, PSD e CDS. Pedro Delgado Alves, deputado do PS, disse aquando a discussão em plenário, que na sua perspetiva, não seria “correto ou sequer adequado colocar a questão nos termos em que é colocada, como se existisse pureza absoluta e um caráter totalmente impoluto de alguns senhores Deputados que se sentam nesta Câmara, enquanto que os outros são uns facínoras, são umas pessoas absolutamente incapazes de apresentar soluções estruturadas e responsáveis”, indicado que o PS votou contra devido ao regime de exclusividade para os deputados.