Chamam-lhe o “super juiz”, mas Carlos Alexandre diz que é “apenas um juiz de primeira instância, escrutinável por todos”. “Bicho-do-mato”, sem amigos na magistratura, o juiz do Tribunal Central de Investigação Criminal, responsável por alguns dos casos mais mediáticos em Portugal, como a “Operação Marquês”, diz não ter medo mas acha que o seu telefone é escutado — ao ponto de não conseguir almoçar descansado.

Avesso aos jornalistas, Carlos Alexandre acedeu finalmente falar perante as câmaras, num momento em que se espera que tome uma decisão relativamente ao caso do antigo primeiro-ministro José Sócrates. Numa entrevista sobre a sua vida concedida à SIC, transmitida esta quinta-feira depois do telejornal, o juiz mais famoso de Portugal lembrou a infância passada em Mação, falou do pai “austero” que oferecia chocolates Regina pelo Natal, dos críticos e da exigência de um trabalho que acredita ser uma missão. Também disse que se considera “muito falível”.

“Preocupo-me que as pessoas nas mesas do lado estejam a ouvir o que estou a dizer”

O juiz admitiu que se sente escutado. Quando almoça fora do edifício onde fica instalado Tribunal Central de Investigação Criminal está sempre preocupado que alguém o esteja a ouvir. “Preocupo-me que as pessoas nas mesas do lado estejam a ouvir o que estou a dizer. Pessoas que recorrem a fontes humanas ou não-humanas, pessoas que recorrem ao mexerico”, referiu, explicando que não é apenas nesses momentos que se sente vigiado.

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Sinto-me escutado no meu dia-a-dia, sob várias formas. Não posso falar delas porque não estou em condições de as comprovar. Li o manual, tenho um exemplar completo do manual [dos serviços de informações] que me apareceu na caixa do correio”, disse referindo-se ao manual do processo das “secretas”.

Questionado sobre se já identificou algo de estranho durante os seus telefonemas, o juiz admitiu que já ouviu um “restolhar de papéis, água a marulhar”. Mais: “Por vezes há pessoas que não conseguem estabelecer contacto comigo. O telefone vai abaixo, vai para voice mail quando estou em sítios onde tenho carga máxima e onde há pessoas que estão sentadas ao meu lado ao telefone. Não digo que são os serviços de informações, não estou a imputar. Estou só a dizer que conheço a maneira de ser e de proceder. Já me julgo um pouco conhecedor.”

Por esse motivo, e também por “não ter muitos amigos com quem possa refeiçoar”, prefere almoçar em casa com a mulher, que considera ser uma ótima cozinheira. “Comemos espartanamente”, disse. Porém, garante que não está preocupado com escutas e que fala “abertamente” do que tem de falar, “com as pessoas em causa”. “Não tenho segredos, não vejo motivo para tanta preocupação”, frisou.

Questionado sobre a sua própria segurança, o juiz lembrou um incidente que aconteceu há nove anos. Em agosto de 2007, a sua casa em Oeiras foi assaltada. Apesar de nada ter sido levado, foram atirados pela janela todos os post its usados, com anotações ou a marcar a página de um livro. “Deitaram esses papéis todos, como se tivesse a cair neve, do escritório de minha casa.” Em cima da fotografia do seu filho, foi deixada uma arma.

“Se tivesse medo não me levantava da cama”, admitiu Carlos Alexandre. “Portanto, aceito o meu futuro, o meu destino. Enquanto o assunto for comigo — e espero que seja sempre comigo — não vejo problema, porque estou em paz com as decisões que tomei”, afirmou, considerando porém que é “falível como toda a gente”. “Sou muito falível.

“Peço que não me tratem por ‘super-juiz'”

Sem referir os casos que tem em mãos, Carlos Alexandre, muitas vezes acusado de gostar das luzes da ribalta, fez questão de frisar que nunca procurou protagonismo, e que até tenta desencorajar o uso de expressões como “super juiz”, “juiz sem medo” ou “juiz estrela”. “Tenho achado engraçada essa ideia que as pessoas têm de que sou um juiz estrela. Sou apenas uma pessoa que faz o seu trabalho. Tenho pedido sempre que não me tratem como tal porque isso só cria animosidade, até no meio em que me insiro — na magistratura”.

Sou apenas um produto de umas circunstâncias, circunstâncias que são: estou ali naquele sítio, a onde fui parar por vontade própria, porque concorri muitas vezes para lá desde que o tribunal abriu, gosto do que faço. Sem ser imodesto, tenho visto mais de um terço das decisões que tomo serem confirmadas pelos tribunais.”

Workaholic, não tem férias há mais de dez anos e nunca esteve mais de um par de dias afastado do edifício onde trabalha. Sem amigos na magistratura, considera-se um “bicho-do-mato”. As pessoas que lhe são próximas são poucas, e até considera que, caso morressem, seriam poucos aqueles que compareceriam no seu funeral. “Sou o ‘Saloio de Mação’, com créditos hipotecários que tem de trabalhar para os pagar, que não tem dinheiros em nome de amigos, não tem contas bancárias em nome de amigos.” Uma referência indireta a José Sócrates, e ao seu amigo e financiador Carlos Santos Silva.

Ao fim de semana, costuma fazer turnos extras no Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa para não se desligar da realidade do país e para pagar as contas ao final do mês. Como “não tenho fortuna pessoal, alguns encargos em que me meti só são sustentáveis se trabalhar mais”, explicou. “Como eu não tenho amigos, amigos no sentido de pródigos, não tenho fortuna herdada de meus pais ou de meus sogros, eu preciso de dinheiro para pagar os meus encargos. E não tenho forma de o alcançar que não seja através do trabalho honrado e sério.”

O dinheiro foi, aliás, um tema recorrente na entrevista. Carlos Alexandre queixou-se ainda dos cortes que os magistrados têm sofrido nos últimos dez anos. “Sofremos cortes no ordenado ao longo dos últimos quase dez anos e atingiram severamente mais as magistraturas do que outros. Os primeiros cortes ocorreram logo no ano do engenheiro José Sócrates”, afirmou.

“Sou o vértice menor de uma pirâmide”

Detentor de uma “memória maravilhosa”, Carlos Alexandre sabe nomes, alcunhas e episódios de cor. Lembra-se de pormenores e segredos que muitos gostariam que tivesse esquecido e, por esse motivo, as ameaças sucedem-se. O último incidente aconteceu em março de 2015, altura em que o seu cão, Bart, foi envenenado — algo que não foi mencionado na entrevista. Contudo, o juiz garante que não é potencialmente perigoso para ninguém.

“Seria perigoso se eu usasse [essa informação] para o mal”, afirmou. “Não usando esse conhecimento de forma malsã, até me custa imaginar que as pessoas acreditem que eu tenho esse poder. Poder? Mas que poder? Sou uma pessoa que toma uma decisão. Sou o vértice menor de uma pirâmide.”

À SIC, Carlos Alexandre admitiu que nunca teve medo, nem um “frio na barriga”. Contudo, já teve de tomar decisões que o deixaram desconfortável. “É evidente que há certos dias em que sou chamado a tomar decisões em processos que me são bastante desconfortáveis. Há certos dias em que fico desconfortável, perplexo perante o que me depara, por vezes revoltado por factos e circunstâncias de que chego a tomar conhecimento.” Apesar disso, garante que gosta do trabalho que faz e que aquilo que decide “nunca é a última palavra sobre nada”. “É a última palavra naquele momento.”

“Aprendemos nos anos de faculdade que todos os cidadãos são iguais perante a Lei, mas há uns que são mais iguais do que outros.”

Sempre convicto das decisões de toma, o “super juiz” não é porém alheio a alguns pequenos arrependimentos. “Não é arrependimento de me ter enganado”, explicou. “Se as pessoas não tivessem falado certas coisas de certa forma não se tinham tomado determinadas decisões. Nesse sentido, já me posso ter arrependido.”

Questionado sobre se pensa abandonar o Tribunal Central de Investigação Criminal e passar para o Tribunal da Relação, Carlos Alexandre disse que lhe falta ainda preencher uma “série de requisitos”. “Não escrevi nenhum livro, farto-me de trabalhar, não tenho pós-graduações, logo aqui perco muita valoração”, afirmou. “Ainda não concorri porque gosto do que faço e por motivos económicos”, disse, admitindo até a hipótese de passar o resto da vida “no tribunal de primeira instância”.

Apesar de ter dedicado os últimos 30 anos da sua vida à justiça, o juiz admitiu que os problemas de saúde mais recentes — seus e de um familiar — o fizeram repensar a vida. “Nunca digas nunca”, referiu. “Não sei se por uma razão de saúde própria, de saúde de alguém do meu lado, me faça pensar que a vida não é apenas trabalho.”