Um freio desalinhado na terceira carruagem. Não fora esse percalço — detetado e corrigido na estação da Régua, já no regresso — e a primeira viagem da segunda edição do The Presidential Train teria corrido literal e metaforicamente sobre carris. Assim, ficou-se pela literalidade. Mas perdoemos a avaria, porque a idade, essa, não perdoa mesmo: trata-se de um comboio construído no final do século XIX que inclui carruagens que serviram a corte do rei Dom Luís I. Isto antes de ter sido adaptado e rebatizado de Presidencial, logo após a implantação da República.
Estacionado desde o funeral de António Oliveira Salazar, em 1970, foi restaurado em 2010. E não se pense que foi fácil fazê-lo: “As carruagens estavam dispersas pelo país inteiro em diferentes estados de manutenção”, revela a meio da viagem inaugural Maria José Teixeira, gestora de projeto do Museu Nacional Ferroviário. Foi nesse mesmo museu que Gonçalo Castel-Branco o descobriu há dois anos. Quando, nesse dia à noite, partilhou entusiasmado com a família o que tinha encontrado foi a própria filha que lhe sugeriu: “Por que não fazes um restaurante lá dentro?”.
Comida, vinhos e o resto é paisagem: o comboio presidencial regressa ao Douro
Gonçalo gostou tanto da ideia que decidiu aplicá-la numa ferrovia charmosa como poucas neste mundo, a linha do Douro. E com estrelas Michelin na cozinha — se na primeira edição, em abril de 2016, convidou Dieter Koschina, do Vila Joya, para confecionar o menu servido a bordo, este ano, decidiu ter três chefs em três períodos distintos, o dinamarquês Esben Bang (3 a 7 de maio) e os portugueses Pedro Lemos (10 e 11 de maio) e João Rodrigues (12 a 14 de maio). Esben, o mais jovem de sempre a chegar às três estrelas Michelin no restaurante Maaemo, em Oslo, não chegou a picar o bilhete: um dia antes de aterrar no Porto partiu uma perna. Mas o seu menu e a sua equipa, liderada pelo sous chef irlandês Halaigh Whelan-McManus, chegaram inteiros à estação de São Bento, o ponto de partida para…
…a viagem
Faltam poucos minutos para as 11h, hora marcada para a saída do Porto, quando Gonçalo Castel-Branco faz o último briefing de segurança aos convidados. Dois conselhos importantes a reter: as portas abrem para fora, e facilmente, logo ninguém se deve debruçar sobre elas em andamento, e, no que respeita à circulação nos corredores do comboio, quem vai de copos, pratos, garrafas e/ou travessas na mão tem sempre prioridade. Mensagem captada: embarquemos.
Os jornalistas, como este que vos escreve, têm direito a uma carruagem própria. Já o tinham, aliás, no tempo em que o comboio servia os propósitos do Estado. Tal como nessa época, é a que segue mais afastada da do presidente — mitigando assim o risco de alguém captar informações confidenciais. O posto máximo foi, neste caso, atribuído a Rui Moreira, por ser o autarca da cidade de partida.
Uma última buzinadela de aviso e, à hora marcada, lá arranca o comboio rumo ao Douro. Não a todo o vapor que esses tempos já lá vão, nem prego a fundo, porque as composições não podem circular a mais de 80 quilómetros por hora. E ainda bem, porque há uma vista para apreciar. Essa vista não chega logo do exterior: e isto sem desrespeito para os naturais de Contumil, Rio Tinto, Ermesinde ou Terronhas, pontos de passagem do início da viagem. A linha do Douro só o é verdadeiramente a partir de Ribadouro, altura em que se cola às margens do rio que lhe dá nome.
Até se alcançar essa zona a vista que interessa está no interior das composições, em cada cada detalhe do respetivo recheio, dos sofás e cadeirões de veludo aos candeeiros art deco. Dos puxadores ao mobiliário das casas de banho. Melhor ainda é poder apreciar tudo isto já com um copo de vinho na mão, apesar de pouco passarem das 11h. Mas um dia não são dias.
No vagão da cozinha, onde por esta altura já se preparam os primeiros pratos, vislumbra-se uma cara familiar. Vítor Areias, que recentemente fechou o seu restaurante Estória, na Cruz Quebrada, é o chefe executivo deste projeto, ou seja, quem coordena a ligação entre os chefes convidados e o restante staff. E é dessa mesma cozinha que, passados uns minutos, começam a sair os primeiros amuse-bouche. Calha bem, porque pelas janelas dá para adivinhar que o rio está próximo. Passemos então à carruagem-restaurante.
Pickle de cebola, akvavit (uma bebida destilada escandinava) e ruibarbo. Se dúvidas houvesse quanto à origem do menu, teriam ficado desfeitas logo neste primeiro entretém de boca; mais nórdico era difícil. O que também entretém, mas desta vez lá fora, é a vista. Agora sim, estamos no Douro, que surge, serpenteante, à direita de quem segue de frente para o destino. Assim se manterá durante toda a viagem.
O primeiro prato aparece pouco depois, de novo a fazer jus aos princípios da cozinha nórdica celebrizada por René Redzepi e pelo Noma: espargos e ervilhas com flor de sabugueiro. Os vegetais apresentados praticamente no seu estado natural, quase crus, os espargos em pequenos cubos, com muita textura, bem crocantes, ligados por um puré de ervilhas com a intensidade (e a densidade, já agora) certas.
A chegada a Peso da Régua dá-se ainda antes do prato de peixe. Os curiosos acenam na estação, os passageiros respondem. E vice-versa. Entretanto vão também sendo apresentados e servidos os vinhos, todos eles do Douro, bem escolhidos pelo jovem Ivo Peralta, também ele um escanção com estrela Michelin, neste caso a do Fortaleza do Guincho, o restaurante onde trabalha. E apesar do treme-treme do comboio a mão firme de quem serve é garantia de desperdício quase nulo.
De Peso da Régua a Pinhão são 20 minutos de distância: tempo suficiente para comer o prato de peixe: cavala com maçã e alho selvagem. O peixe apresentado em filete, quase cru, enriquecido com o molho de maçã, alho selvagem e vinagre, decorado com inúmeras flores comestíveis. Houve quem sentisse falta de acompanhamento, sinal de uma dicotomia evidente: minimalismo nórdico versus apetite português.
Já no Pinhão, o comboio para por alguns minutos. Rui Moreira abandona os aposentos presidenciais: a sua viagem fica por ali. Quiçá devido a afazeres políticos ou talvez porque não tenha resistido ao apelo do Qualifer, o mítico talho da vila duriense, que dista poucos metros da estação. Mal sabe ele que, no regresso, serão servidos alguns dos melhores exemplares saídos do matadouro e do fumeiro caseiros de Fernando Rebelo, o homem que põe Fer em Qualifer e que garante que os seus enchidos têm propriedades medicinais únicas.
A viagem é retomada em direção à Quinta do Vesúvio. Tal era a influência de Dona Antónia, a Ferreirinha, que a quinta, hoje propriedade dos Symington, tem uma estação própria. Ainda antes de lá chegarmos é servido o prato de carne que Rui Moreira já não provou: pombo com puré de cogumelos selvagens. O bicho, ave-fetiche de muitos profissionais de alta cozinha, estava tenro e suculento. Ou, como diriam os noruegueses, mør og saftig.
A aproximação à Quinta do Vesúvio faz-se de seguida. Os passageiros saem na estação correspondente e o comboio segue, para, mais à frente, fazer a inversão de marcha que permitirá o regresso. A propriedade, com mais de 320 hectares, deve o nome a uma história curiosa, contada à chegada por Joe Álvares Ribeiro um dos administradores do grupo Symington.
Quando foi construída, esta propriedade chamava-se Quinta das Figueiras. Mas quando a Dona Antónia foi passar a lua de mel a Nápoles e viu a vista para o Vesúvio, estava tão apaixonada que decidiu que quando voltasse chamaria a esta quinta “do Vesúvio” para nunca mais se esquecer.”
Depois de provas de vinho, charutos, e um momento de descanso nos jardins da Quinta, com direito a testar a doçura das laranjas locais, o comboio reaparece virado a Oeste. Ou seja, é tempo de voltar ao Porto. A viagem é retomada no sentido inverso, desta feita com animação musical incluída. Um pianista no salão piano-bar, primeiro, que tem o mérito de manter a concentração mesmo perante a grandiosidade da paisagem à sua frente. Mais à frente, será a vez de se ouvir guitarra portuguesa. Com direito a uma versão do clássico “Porto Sentido”, de Rui Veloso, a acompanhar a sobremesa: coulis de morangos com uma espécie de creme de pasteleiro fumado.
À segunda passagem no Peso da Régua, dois sabores distintos: doce e amargo. Doce dos rebuçados tradicionais da terra, de mel, limão e açúcar, atirados da plataforma para o comboio pelas mesmas senhoras que os fazem, e amargo porque uma pequena avaria — o tal freio desalinhado — obriga a uma espera inesperada, passe a desconcordância. Resolvido o problema, o comboio ruma então ao Porto. O estômago continua, porém, a ser acarinhado: enchidos do supracitado Qualifer, cabeça de xara alentejana, da Salsicharia Canense, de Dona Octávia, e pão da fabulosa Gleba, do jovem padeiro Diogo Amorim. Quem é que disse que os casamentos a três não funcionam?
Antes de chegarmos ao destino ainda há tempo para um último mimo da cozinha: uma pequeníssima tarte de brunost — o queijo castanho, ou brown cheese norueguês — com líchias, harmonizado com vinho do Porto, what else? Estamos há mais de nove horas nisto quando a locomotiva alcança, finalmente, a estação de São Bento. No dia seguinte há mais, por isso há que começar a limpar e a preparar o comboio de imediato. Para os jornalistas é tempo de começar a pensar na melhor forma de descrever a experiência que acabaram de ter. Saiu isto.
O quê: The Presidential Train
Onde: Ida e volta da estação de São Bento, no Porto à Quinta do Vesúvio
Quando: De 3 a 7 e de 10 a 14 de maio, entre as 10h45 e as 20h30.
Quanto: 500€ por pessoa, inclui menu de degustação de quatro pratos, bebidas e digestivos, visita e prova de vinhos na Quinta do Vesúvio e animação a bordo.
Site: www.thepresidentialtrain.com
O Observador viajou no The Presidential Train a convite da organização.