Em 1930, a FIFA pega na caneta e começa a escrever a história dos Mundiais. As primeiras páginas escrevem-se no Uruguai e, 36 anos depois, chega-se ao capítulo inglês da aventura – o primeiro com um personagem português. Bem vistas as coisas, o que seria de um campeonato do mundo sem o homem que numa prateleira, em casa, tinha a última edição da Bola de Ouro? Eusébio (37 golos em 1965/66) tinha de lá estar. E por arrasto, Otto Glória, o seleccionador nacional.

Ou seria o contrário? Talvez. Em 1965, o brasileiro aterra na seleção, segura o volante e começa a dar boleia a algumas caras que já conhecia. Mário Coluna (Benfica), Alberto Festa (Porto) ou Hilário e Morais (Sporting), por exemplo, já tinham experimentado a relação com o treinador – que, antes, estivera nos encarnados entre 1954 e 59, nos leões em 1960/61 e nos dragões desde 1963 a 65.

No motor de Portugal, o da seleção, contudo, Otto Glória nunca tinha mexido. Eusébio, José Torres, António Simões ou José Augusto, o primeiro ‘olá’ entre estes quatro e o técnico surge apenas quando se encontram na seleção. E raros são os ‘adeus’ que trocam em 1966. Além de marcarem presença na fase de qualificação, todos são titulares nos seis jogos que a seleção faz no Mundial – isto no tempo em que as substituções ainda não existiam nas regras.

Otto Glória guia-os bem. Três vitórias, nove golos marcados e dois sofridos na fase de grupos. No primeiro jogo, frente à Hungria (3-1), a seleção marca no minuto inicial, por José Torres, com tanta pressa que a transmissão televisiva da RTP ainda nem sequer tinha começado. Segue-se o 3-0 à Bulgária, com dois golos de Eusébio, os primeiros que marca no Mundial. Depois, o Brasil de Pelé e Jairzinho (2-1). O motor da seleção já ganhava corridas. Afinal, o Benfica fora campeão europeu quatro anos antes e, em 1964, o Sporting conquistara a Taça das Taças.

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Daí o resumo de José Augusto. “Tinhamos um grande traquejo, com muitos bons jogadores e o Eusébio num plano superior”, disse o ex-internacional português, ao Observador. Tudo verdade – até aparecer a Coreia do Norte, nos quartos de final. Aos 25 minutos, a seleção perdia 3-0 contra uma equipa de desconhecidos, que passara os últimos dois anos na Alemanha de Leste a preparar a competição.

Ao intervalo já estava 3-2. Menos mau, mas não para Otto Glória. “Porra, vocês deram-me a maior alegria quando ganharam aos meus irmaos brasileiros, e agora, contra uma equipa do Walt Disney, fazem isto? Vão lá para dentro e comam-nos vivos”, terá dito o treinador, no balneário, na memória de José Augusto. Deu resultado: 5-3 no final do jogo e Portugal ganhava um bilhete para as meias-finais.

A “malta que ficou” com Portugal

E conquistava Liverpool, a “terra dos Beatles”, como José Augusto chama à cidade onde a seleção nacional realizou estes quatro encontros. “Quando virámos o jogo contra a Coreia aquela malta ficou connosco e, como a seleção inglesa não tinha nenhum jogador do Liverpool, os ingleses ficaram com medo de jogar ali contra nós”, argumentou o antigo jogador, hoje com 77 anos.

Alto e pára a conversa, aqui há correções a fazer. Na seleção inglesa havia três nomes do Liverpool: Gerry Byrne, Ian Callaghan e Roger Hunt. Este último, avançado, até cumpre todos os 570 minutos do Mundial, com três golos pelo caminho. Mas continuemos. “Com a ideia de que Wembley tem capacidade para 100 mil pessoas e Goodison Park só tem metade, a federação inglesa arranjou a manigância de mudar o jogo para Londres”, critica José Augusto.

Então os ingleses decidem e a coisa acontece? Não. Falta a “anuência” da seleção nacional. E quem a dá é a Federação Portuguesa de Futebol (FPF). “Sem ela o jogo nunca seria transferido”, garante. O ‘sim’ à proposta, diz José Augusto, “deve ter dado à FPF muito dinheiro”, pois “a seguir ao Mundial [em 1967] até comprou a sede da Praça da Alegria”, em Lisboa, e por lá ficou até 2004.

O ex-jogador do Benfica, que marca três golos durante o Mundial, assegura que “isto nada influencia o resultado” – uma derrota por 2-1. Portugal perde, Eusébio chora e resta a luta pelo terceiro lugar. “Tínhamos uma equipa que podia competir com qualquer equipa do mundo, em qualquer lado”, garante José Augusto, dizendo até que terá sido esta convicção a pesar na tal “anuência” da FPF. Dois dias passam e surge a União Soviética. Na baliza está Lev Yashin, único guarda-redes até hoje a vencer a Bola de Ouro, em 1963. Eusébio marca-lhe um penálti aos 12 minutos, pega na bola e cumprimenta-o. “Disse-lhe que ia marcar para a esquerda e marquei mesmo. Não engano os amigos”, diria o Pantera Negra, após o Mundial, o primeiro de Portugal.

E que estreia. Depois, “foi como tudo na vida”. O tudo que José Augusto lamentou ter vindo após a aventura em Inglaterra. A partir de 1966, houve uma série de pessoas que tinham interesse em estar na federação e ser treinadores da seleção nacional”, criticou. Afinal, a experiência de 1966 tinha sido boa e, depois, “os portugueses até começaram a ser bem recebidos no estrangeiro”.  Tudo correu bem. Tanto que a seleção apenas regressou aos Mundiais passados 20 anos.