Cresceu rodeada de livros, mas a paixão pela literatura só chegou aos 13 anos com Eça de Queirós. Estudou literatura, história, fez parte da direção da Bulhosa e, em 2005, fundou a Tinta-da-China, um fenómeno de popularidade e um caso de sucesso.

Em 2011, arriscou a publicação do livro Diamantes de Sangue, do angolano Rafael Marques e foi constituída arguida.

Bárbara Bulhosa, diretora da Tinta-da-China, diz “não estar ao serviço de ninguém” e que o interesse da editora está sempre em primeiro lugar. Nada mudou, garante. A “independência” mantém-se.

Estudou História, passou pela direção da Bulhosa e fundou a Tinta-da-China. Os livros parecem ser uma constante na sua vida. De onde vem essa paixão?
Os livros sempre foram uma coisa muito presente em minha casa. Os meus pais liam muito. Quando era miúda não ligava tanto, só na adolescência é que comecei a ler. Mas há livros que me marcaram muito — o Cândido, [do Voltaire], O Estrangeiro, do Camus.

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Para além de ter bons autores em casa, também estudei literatura no [Liceu] Maria Amália. Tive uma daquelas professoras já meio velhotas, que era muito conservadora. Daquelas que nos obrigavam a levantarmo-nos quando entrava na aula. Mas era muito boa, e conseguiu criar-me um bichinho pela leitura. Gostei de todos os livros que li — o Portugal Contemporâneo do Oliveira Martins, o Menina e Moça do Bernardim Ribeiro. Gostei de tudo!

Qual foi o primeiro autor por que se apaixonou?
Acho que foi o Eça, quando li o Primo Basílio. Devia ter uns 13 anos. Foi um livro que me fez perceber muitas coisas, ter outra dimensão. Lembro-me de ser miúda e de estar a lê-lo na praia e de estar perfeitamente apaixonada. Não pelo Eça, mas pela história. Depois fui logo ler o Crime do Padre Amaro. A minha mãe também lia muito Saramago. Adorava Saramago, lia tudo. Um dos livros que foi muito importante para mim foi O Ano da Morte de Ricardo Reis.

Outro que li na altura foi o A Sul de Nenhum Norte, do Bukowski, uns contos assim meio pornográficos. Os meus pais não queriam que lêssemos aquilo e escondiam o livro. Então, claro, fomos de férias e roubei o livro da estante. Eu devia ter uns 14 anos e o meu irmão 11. Ficamos deliciados e passamos as férias na casa dos meus avós a ler A Sul de Nenhum Norte. Aliás, isso comigo funciona muito, o de dizerem “não podes fazer isto”. Tenho sempre aquela tendenciazinha — só não transgrido se não conseguir.

Isso também costuma acontecer com a Tinta-da-China? É uma maneira de a convencerem?
Às vezes pode ser, depende muito dos argumentos. Mas dizerem-me “o quê, vais publicar essa pessoa?” é meio caminho andado para ir olhar melhor para o livro e dizer “agora publico”. Não estou ao serviço de ninguém, penso sempre no interesse da empresa em primeiro lugar.

Como é que surgiu a ideia de fundar a Tinta-da-China? Era um sonho antigo?
Não, nunca pensei em ser editora. Quando trabalhava na Bulhosa, o meu cunhado propôs-me criar uma editora, mas eu disse que não. Queria trabalhar com importação e exportação.

Depois, eu e o meu ex-marido saímos da empresa, e fiquei desempregada. Foi uma grande lição na minha vida. Quando estava a trabalhar na Bulhosa, toda a gente dizia que eu era uma ótima profissional e, no dia em que saí, passei de bestial a besta. Não sei se era por estar também ligada à família mas, a verdade, é que não tive nenhum convite para trabalhar. E as pessoas do mundo livreiro sabiam que eu tinha saído.

Decidi então fazer uma pós-graduação em Técnicas Editoriais, na Faculdade de Letras, e abrir uma editora. Fui chamar a Inês Hugon, que tinha sido minha colega de faculdade e que era uma barra em português, e a Vera Tavares [diretora de arte], que nunca tinha feito uma capa na vida. Fundamos juntas a editora.

Não sabíamos muito bem o que queríamos fazer e decidimos arriscar, apostando no livro enquanto objeto — num grafismo que se distinguisse e em novos autores, principalmente da nossa geração.

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E de repente já passou uma década. Olhando para trás, como é que encara estes anos que passaram?
Eu não penso que fizemos dez anos, penso que sobrevivemos dez anos. Todos os anos digo “acho que este ano ainda vamos sobreviver”. Tenho sempre muito medo, muitas cautelas. Faço uma gestão muito cuidada e nunca ponho em risco as contas que tenho para pagar. Faço o melhor trabalho possível e invisto no livro, no produto. Mas não acho que tenhamos sobrevivido só pelo grafismo. Acho que temos sobrevivido porque temos autores muito bons, que apostaram em nós e nós neles, e que têm crescido connosco. Porque nós não tínhamos autores e nem os fomos roubar. Formamos alguns e que, de facto, são muito bons em várias áreas.

Há uma geração que está representada na Tinta-da-China, uma geração com a qual nos identificamos e com a qual se torna muito fácil trabalhar. E quando falo de novos autores refiro-me ao Rui Tavares, por exemplo, que ninguém conhecia. Depois veio o Pedro Mexia e o Ricardo Araújo Pereira, que sempre considerei que escreve magistralmente. Tem um enorme domínio da língua e, independentemente da graça que tem, tem uma qualidade extraordinária. O Ricardo acaba por ser o paradigma do autor ideal. Vende muito, porque é uma figura da televisão, mas tem uma qualidade extraordinária. É isso que nos dá muito gozo.

Mas acho que o sucesso se deve um bocadinho à consistência da editora, também. Estou confiante que, quando as pessoas olham para um livro que diz Tinta-da-China, acreditam que tem qualidade. Para isso tivemos de recusar muitos projetos, alguns ótimos. Uns de que me arrependo, outros que não.

Falou há pouco em autores novos. No ano passado publicaram a Matilde Campilho, que foi um verdadeiro fenómeno. Estavam à espera disso?
Não, claro que não. A Matilde foi um fenómeno. É daquelas autoras que tem uma originalidade enorme, e vai ser muito bom crescer com ela.

Mas não foi nada esperado. Foi como a Granta. De repente, tornou-se um sucesso. Das Grantas internacionais, é a que vende mais com exceção da inglesa. São aqueles riscos que às vezes corro, estando convicta de que vou perder dinheiro. Mas faço-o por gozo, por prazer e por querer entrar em novos projetos.

Inauguraram há pouco tempo a coleção Fernando Pessoa. Como é que isso surgiu?
É uma coleção que também está a ser muito importante para a Tinta-da-China. Sabíamos que a coleção de viagens era um sucesso e uma referência, mas não queríamos ficar por aí. Temos de fazer mais coisas, de trabalhar os materiais e os manuscritos de outra maneira. Se pararmos é muito complicado sobreviver neste mercado. Temos sempre de surpreender — a nós e ao público que já temos.

Hoje, passados dez anos, é mais fácil do que quando começamos porque já temos um público, já somos conhecidos e as pessoas já têm alguma confiança em nós. Mas também não queremos desapontar essas pessoas e, agora, a responsabilidade é um bocadinho maior.

Sentem esse peso nas costas?
Claro que sim. Até porque já somos uma equipa de nove pessoas. Acho que um dos grandes trunfos da Tinta-da-China é a estabilidade do pessoal, das pessoas que cá trabalham. Estamos cá há muito tempo, somos uma família, e acho que isso se nota muito no trabalho. Não só no ambiente, na confiança que temos uns com os outros e no entendimento que temos a nível pessoal, mas também no trabalho. É também por isso que não tenho a ambição de crescer muito. Quero continuar a publicar a quantidade de livros que publico, cada vez melhor mas sem perder o controlo de qualidade.

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É impossível falar da Tinta-da-China e não falar do caso do Diamantes de Sangue. Como é que o livro vos chegou às mãos?
Quem me apresentou o Rafael Marques foi o José Eduardo Agualusa, que é um amigo comum. Conhecia-o vagamente, sabia que era jornalista, mas não estava a par do tipo de trabalho que ele fazia. Antes de o conhecer fui investigar e achei muito interessante o trabalho que ele fazia de denúncia.

Ele disse-me que estava há vários anos a investigar violações dos direitos humanos na região das Lundas, onde se exploram os diamantes. E fiquei a saber, por exemplo, que Angola é o quarto país do mundo com mais diamantes, e outras coisas de que não fazia ideia.

Quando ele me mostrou o livro — que, primeiro que tudo, era um relatório –, fiquei muito impressionada. Para mim não foi relevante passar-se em Angola, mas sim ser um relato daquelas pessoas e tentar perceber como é que era possível viverem daquela forma num país tão rico e naquelas condições. Aderi automaticamente ao livro e achei que era muito pertinente publicá-lo.

Apesar de tudo, não deixou de ser uma decisão arriscada. Não ponderou os riscos?
Sabia que, por interesses económicos, outros grupos não arriscariam publicar o livro. Mas, nesse aspeto, sou completamente independente. Podia arriscar, e arrisquei. Mas também o fiz por convicção política, porque acho que um editor também tem de fazer isso. Penso que também temos um papel político. Publico livros de esquerda ou de direita, desde que ache que haja interesse público e que considere que são investigações rigorosas. Foi o caso do Rafael Marques.

O processo só surge passado um ano. Várias pessoas disseram que ia receber ameaças, mas não recebi nada. Mas sou surpreendida quando, de repente, sou constituída arguida com termo de identidade e residência por ter publicado um livro. Aí, a questão é outra. Não vieram contra o livro — vieram contra mim pessoalmente, como editora. Nem foi contra a Tinta-da-China. Achei isso uma questão muito grave para a nossa democracia.

Sou filha da democracia, nasci em 72. Nunca me passou pela cabeça que algum editor pudesse passar por esta situação por publicar um livro de denúncia. Ainda por cima um livro muito importante. Achei uma coisa absurda e indignei-me bastante. Achei mesmo que era uma forma de dizer “atenção, há temas que não podem ser tratados, que não devem ser tocados e que há pessoas de que não se deve falar porque pode vir a causar problemas”. Achei que era uma forma de intimidação, para mim e para o Rafael Marques. O Rafael chegou a um acordo, prescindiu das testemunhas. É obviamente uma cilada em que ele caiu na sua boa vontade. Às vezes até me espanto como é que ele pode ter caído nisto, mas ele tem muita fé. Tem muito mais fé na humanidade do que eu.

E apesar das coisas que viu.
Sim, apesar disso. Ele acha que as coisas podem sempre melhorar. Mas considero que foi muito importante publicar este livro, porque pelo menos as pessoas ficaram a saber o que é que se passa ali.

O que também acabou por acontecer ao disponibilizar o livro online.
Quando começou o julgamento do Rafael, disse que o melhor era disponibilizarmos o livro para as pessoas saberem o que é que estava a acontecer. Principalmente em Angola, porque isto é uma questão interna. Fez-me confusão que as pessoas não pudessem ter acesso ao que se estava a passar ali.

A minha decisão foi de solidariedade e de tentar ajudar a clarificar ao máximo o que se passava no processo. Só no nosso site houve 55 mil pessoas a descarregá-lo, fora o que está nos outros sites, porque o disponibilizamos completamente. Isso mostra o interesse que o caso gerou.

Falou da importância de disponibilizar informação aos leitores. Acha que esse é um dos papéis das editoras?
Penso que muitas das coisas que se estão a passar no mundo, com o jornalismo como está e a falta de espaço que existe para fazer reportagens, as editoras têm um papel cada vez mais importante — o de publicar em livro grandes investigações que jornalistas possam estar a fazer. E acho que nós enquanto editores temos esse papel e essa obrigação.

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Para além da publicação do novo livro do Rui Tavares, têm mais alguma coisa planeada para o aniversário?
Temos várias coisas, temos um plano editorial muito rico este ano. Há várias coincidências muito boas, como a publicação do novo romance da Dulce Maria Cardoso, que é um livro de que estamos à espera há muito tempo. Vamos fazer uma grande festa no dia um de novembro, porque é o dia que marca os dez anos da publicação do Pequeno Livro do Grande Terramoto.

Entretanto, vamos começar na Feira do Livro. Vamos fazer várias ações, levar autores a livrarias, debater e conversar sobre a edição. Não vamos fazer um livro comemorativo dos nossos dez anos, porque isso é absurdo. Mas vamos publicar autores que fazem muito sentido, como este livro do Rui. E vamos lançar novos projetos.

Uma das coisas que eu pensei foi “dez anos de independência”. Até podíamos estar vivos, mas não sermos independentes, e isso para nós sempre foi muito importante. E acho que isso é mesmo para comemorar, dadas as circunstâncias e o estado do mercado editorial. Acho que foi uma grande sorte conseguirmos estar assim agora, independentemente da qualidade do nosso trabalho.

Acha mesmo que foi sorte?
Sim, também acho que foi sorte. E acredito nisso. Acho que a competência e a criatividade são fundamentais, mas acho que há um fator sorte.

Como é que olha para o mercado livreiro hoje em dia?
O mercado há dez anos era muito diferente.

Sente isso na pele? Sente que as coisas mudaram muito?
Absolutamente, as coisas mudaram muito. Mudaram porque desapareceram muitos editores independentes, que foram absorvidos pelos grandes grupos. E, por outro lado, por haver muito menos livreiros.

É muito complicado ser livreiro quando se está a concorrer com grandes grupos de livrarias. Os descontos não são os mesmos, porque se eu comprar mil livros fazem-me um desconto diferente do que se eu comprar dez. Portanto, acontece muitas vezes os livreiros independentes irem comprar livros a outros livreiros porque lhes sai mais barato do que irem comprar ao fornecedor. Acho isto uma questão gravíssima.

Defendo a lei do preço fixo com unhas e dentes, acho que deve ser cumprida. Batalharei e lutarei sempre por isso, porque só pela lei do preço fixo é que teremos livrarias independentes, o que significa ter variedade. Significa dar oportunidade a autores que não vendem mil exemplares de poderem ser publicados e de poderem chegar às livrarias. Não acredito que nenhuma sociedade consiga desenvolver-se e ser civilizada sem variedade cultural.

Acha que falta fiscalização em relação à lei do preço fixo?
Absolutamente. Há três anos, fizeram-se várias queixas em relação a umas campanhas e percebeu-se de que não há fiscalização.

Acho que a regulação do mercado, no caso dos livros, é muito importante. Publico muitos autores que têm más vendas, e publico-os por convicção. Mas sou uma migalha neste mercado. Queria que existissem mais dez, mais vinte Tinta-da-China, porque acho que seria muito mais interessante para todos nós.

Como é que imagina a Tinta-da-China daqui a outros dez anos?
Não penso muito nisso. Queria continuar independente e a trabalhar da mesma forma. Não queria fazer coisas diferentes daquelas que estou a fazer. Daqui a dez anos, espero que estejamos vivos e que tenhamos feito livros muito melhores, projetos que nos tenham dado muito gozo e que continuemos a vir trabalhar com boa disposição. É essa a minha ambição, tanto para mim como para as pessoas que trabalham comigo. Espero que daqui a dez anos cheguem à Tinta-da-China como chegam hoje.

Há duas hipóteses que não estão em cima da mesa — não vou vender a empresa e não vou baixar a qualidade. Essas duas estão fora. Tudo o resto pode acontecer.