“Queremos um bairro habitável ou queremos um bairro feira popular?” A pergunta, feita por uma mulher que se apresentou como “Fernanda, autarca da Encarnação”, ecoou pela sala quando a sessão já ia bastante avançada e serve bem de resumo às três horas e cinquenta e seis minutos que durou a reunião pública da Junta de Freguesia da Misericórdia, em Lisboa, esta quarta-feira.

Porque era de condições de habitabilidade que estavam ali cerca de quarenta pessoas para falar. A Misericórdia é uma freguesia que tem a particularidade de reunir em si algumas das mais famosas zonas de Lisboa: o Bairro Alto, a Bica, Santa Catarina, Cais do Sodré, Príncipe Real e parte de Santos. Por famosas entenda-se: muito procuradas. E por muito procuradas entenda-se igualmente: muitos problemas. Foi isso que os moradores de todas aquelas áreas da cidade foram expor esta quarta-feira à sede da junta, num esforço concertado de diferentes associações de residentes.

“As pessoas saem satisfeitas, ótimo. Não deixar dormir os outros, péssimo”, dizia Carlos Rocha, morador da zona do Príncipe Real, ainda poucos minutos passavam das sete da tarde, naquela que seria uma das primeiras intervenções de uma longa noite. No breve discurso que fez, Carlos expôs aqueles que os residentes da freguesia consideram ser os principais males desta parte de Lisboa: o ruído noturno provocado pelos bares e seus clientes; a falta de policiamento nas ruas, sobretudo à noite; a falta de limpeza e higiene urbana. “Tivemos muita sorte com o Santo António. Choveu. Se não, o cheiro era impossível”, queixou-se uma moradora.

Além dos problemas elencados por Carlos Rocha, outros moradores falaram ainda no lixo excessivo que se encontra nas ruas destes bairros, na dificuldade que é encontrar estacionamento a certas horas da noite ou ao fim de semana, nas cargas e descargas feitas sem regulação, no desordenamento em que se encontram algumas esplanadas, nos buracos da calçada e no despovoamento do centro da cidade.

Nem só de problemas se fez a reunião, ainda assim. Para combater o lixo que se vê nas ruas “de manhã, ao meio-dia, à tarde e à noite”, Maria João Podgorny, residente do Bairro Alto, salientou a importância de informar os fregueses sobre as alturas próprias para colocar os resíduos na rua. Mas como o grande problema daquela área são os copos de plástico, Maria João propõe que cada bar cobre um pouco mais para que os clientes se sintam obrigados a devolver o copo e, assim, receber o dinheiro que pagaram a mais. Outra ideia que tem passa por “responsabilizar os comerciantes” pelo espaço fronteiro aos estabelecimentos que gerem, para que não sejam a junta e a câmara a ter toda a despesa.

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Vítor Silva, morador da Rua da Atalaia, uma das mais frequentadas do Bairro Alto, pensa que a solução não passa pelas multas. “Quais coimas qual carapuça! É redução de horários”, disse, depois de relatar que já fez 88 queixas sobre um só bar da rua onde mora por este ter a música demasiado alta. Vários dos presentes apoiaram-no, alegando já terem sido ameaçados por donos de espaços noturnos e queixando-se de que as associações de comerciantes, apesar de importantes, não são representativas do que existe naqueles bairros.

Junta anuncia pequenos passos

“Eu também concordo com praticamente tudo o que aqui foi dito”, afirmou Carla Madeira, presidente da junta, quando os moradores acabaram de desfiar o rol de queixas que traziam. Para a autarca, “faz parte da essência deste bairro ter moradores” juntamente com comércio, com vida noturna, até com redações de jornais, como acontecia outrora. “Havia equilíbrio entre moradores, visitantes e comerciantes”, disse, acrescentando que fica “muito triste” quando vê os habitantes da zona a partir para outros lados.

Muitos dos que apareceram na sede da junta esta quarta afirmam que já por diversas vezes tiveram sugestões para se irem embora. “Porque é que não vai viver para Telheiras?”, ouvem de donos de bares ou de hotéis, segundo relatam.

Carla Madeira diz não querer que ninguém vá para Telheiras ou para outro sítio qualquer, mas também se confessa impotente perante algumas situações. Se as juntas de freguesia receberam, com a reforma administrativa de Lisboa, novos poderes e competências, outras ficaram nas mãos da câmara ou mesmo do Estado, o que faz com que, por vezes, as entidades se atropelem ou, no mínimo, não se coordenem entre si. É o caso, por exemplo, da higiene urbana: a limpeza e varredura das ruas é tarefa da junta; a recolha do lixo compete à câmara. Além disso, “as juntas de freguesia não têm poder para passar multas, para fiscalizar”, lamenta a presidente, que resume o poder destas entidades a isto: “falar e sensibilizar”.

Várias vezes interrompida por alguns moradores mais exaltados, Carla Madeira anunciou algumas medidas que estão a ser negociadas com a câmara e o Estado:

  • Mais 125 mil euros para a higiene urbana
  • Videovigilância no Cais do Sodré
  • Novo pavimento para o Príncipe Real
  • Nova lógica para as zonas de cargas e descargas que permita tirar veículos pesados das zonas históricas
  • Projeto para colocar detetores de fumo em casas de idosos, pelo menos no Bairro Alto e na Bica

Além disso, a autarca tem alguns objetivos, estes sem data de concretização:

  • Aplicação do despacho que regula os horários dos bares, discotecas e lojas de conveniência do Cais do Sodré a todas as zonas noturnas da freguesia
  • Limitação de horários das esplanadas no Bairro Alto
  • Criação de uma zona ribeirinha onde se concentrem todos os bares e discotecas que funcionem até às 4h ou 6h

“Por favor façam-nos chegar queixas escritas”, apelou Carla Madeira já perto do fim, depois das 22h30, quando parte da sala, de tetos ricamente decorados, estava já vazia. Pelas 22h56, a reunião terminou. Seguem-se as cenas dos próximos episódios.