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Hélder Claro tinha uma espécie de vida dupla, a acumular muitas atividades além da profissão de magistrado judicial. Enquanto exercia esse cargo, que é por lei exclusivo, na Instância Local de Vila Real de Santo António, era também promotor imobiliário, negociava com autarquias como Gaia e Matosinhos e alegadamente até corrompeu um funcionário do Aldi para ter acesso a informação privilegiada sobre a expansão da rede daquela empresa alemã de supermercados. Mas não se ficava só por aí. Além de servir de intermediário entre um suposto grande investidor iraniano suspeito e a banca portuguesa, foi ainda acusado pelo Ministério Público de ter recrutado bailarinas brasileiras para uma boite da qual era cliente regular e de liderar uma rede de cibercrime financiada por um homem apontado pela PJ como barão da droga do Porto (recentemente preso) para alegadamente converter criptomoedas em numerário. E não era um valor qualquer: estavam avaliadas em cerca de 90 milhões de euros.
Esta é a visão do Ministério Público (MP). E por tudo isto, Hélder Claro foi acusado de crimes tão diversos como associação criminosa, aquisição de cartões bancários mediante crime informático, corrupção ativa no setor privado, angariação de mão de obra ilegal e auxílio à imigração ilegal com intenção lucrativa. Acabou expulso da magistratura judicial em maio deste ano (pena disciplinar que está a contestar no Supremo Tribunal de Justiça) e acusado um mês depois pela procuradora-geral adjunta Elina Lopes Cardoso.
Em declarações ao Observador, o ex-juiz começa por dizer que está a ponderar a possibilidade de requerer a abertura de instrução: “Neste momento, estou inclinado a não o fazer e a passar diretamente para o julgamento”. Hélder Claro contesta veementemente que tenha praticado algum crime e explica em pormenor a sua visão sobre os factos indiciários que lhe são imputados pelo MP (respostas transcritas ao longo deste texto). “Não corresponde à verdade que tenha feito qualquer negócio, como está descrito na acusação”, assegura. “Nunca tive qualquer atividade imobiliária. É verdade que estudei vários negócios e, se os mesmos negócios tivessem avançado, ter-me-ia desfiliado do serviço da magistratura”, garante.
Os 100 milhões (ou 100 mil milhões?) de um iraniano misterioso e suspeito
Com um intervalo de apenas 15 dias, o então juiz de direito Hélder Claro fez algo verdadeiramente inusitado para um magistrado judicial. Entre 27 de fevereiro e 14 de março de 2018, apresentou-se no Banco Comercial Português (BCP) e na Caixa Geral de Depósitos (CGD) para inquirir das condições para depositar quantias verdadeiramente astronómicas que estariam na posse de um investidor iraniano.
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O primeiro contacto foi com a área do private banking do BCP através de uma reunião organizada nas instalações da Praça D. João I, no Porto. Foi o próprio banco que denunciou ao Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP), cumprindo a lei de combate ao branqueamento de capitais, a ideia transmitida por Hélder Claro: transferir para aquele banco fundos localizados no estrangeiro pertencentes a Farzin Koroorian Motlagh, mediante quatro transferências de 25 milhões de euros cada, num total de 100 milhões de euros.
O papel do então juiz Hélder Claro era simples, segundo terá transmitido ao BCP: comissionista. Isto é, receberia uma comissão do suposto investidor iraniano por ter intermediado o negócio. Uma prática que lhe estava claramente vedada, tendo em conta o estatuto de exclusividade com que os juízes exercem as suas funções.
Tudo isto foi transmitido pelo BCP ao Ministério Público. Mesmo que sejam meras auscultações, como era o caso, os bancos têm de ser diligentes a informar o MP das suspeitas sobre determinadas transações.
O mesmo aconteceu com a CGD, sendo que a reunião com a gerente da agência central do Porto do banco público resultou numa proposta substancialmente diferente, em termos de valor e destino dos fundos. Não estariam em causa 100 milhões de dólares mas sim 100 mil milhões de dólares. E o objetivo seria duplo: converter os fundos em euros para posteriormente investir em países africanos.
Interrogado mais tarde, aquando da sua constituição como arguido promovida pela procuradora-geral adjunta Elina Lopes Cardoso (e consequente interrogatório perante um juiz desembargador do Tribunal da Relação do Porto que fez o papel de juiz de instrução criminal), Hélder Claro admitiu que fez essas diligências e confirmou o teor das conversas denunciadas, acrescentando que o valor das aplicações financeiras a realizar seria de 45 mil milhões de dólares, sendo que iria posteriormente receber uma comissão ainda a definir.
Não explicou como é que foi contactado pelo suposto investidor iraniano, mas diz que pediu ao BCP e à Caixa que fizessem o devido compliance sobre o já referido Farzin Koroorian Motlagh. Obviamente que tal compliance seria sempre feito — é uma obrigação legal, sob pena da aplicação de pesadas multas por parte do Banco de Portugal. Segundo o então juiz de direito, o BCP e a Caixa terão comunicado que Motlagh era uma “pessoa suspeita” e recusaram receber fundos do investidor iraniano.
Ao Observador, Hélder Claro confirma “as deslocações ao BCP e à CGD”, mas diz que não tentou “depositar quaisquer capitais”. E explica: “O que aconteceu foi o seguinte: um grande amigo meu falou dessa possibilidade de fazer negócio com um investidor do Médio Oriente, quando eu estava de licença parental alargada para prestar assistência a um filho com deficiência.”
O ex-juiz tinha consciência de que “o sistema financeiro costuma colocar problemas a investidores daquela região”, por isso diz que pediu ao seu amigo (que não identificou) que lhe “arranjasse documentação que comprovasse efetivamente o interesse em investir” para ele fazer “o devido compliance”.
“Apresentaram-me documentos de seis contas de bancos alemães e suíços com um valor total de 100 mil milhões de dólares — quase o dobro do dinheiro que Portugal pediu emprestado à troika. Na altura da receção da documentação, eu não sabia a nacionalidade do investidor e nem sequer o montante de capital de que seria titular. Com essa documentação, desloquei-me ao BCP e à CGD para fazer compliance. Foi isso que eu fiz. Os bancos disseram-me que os capitais e o investidor eram suspeitos e que não aceitavam o depósito e o assunto morreu ali. Nunca, por qualquer forma, foi solicitado qualquer depósito ou sequer ensaiada qualquer tentativa de depósito”, explica.
Quem é Farzin Koroorian Motlagh, o iraniano dos milhões?
Farzin Koroorian Motlagh é uma espécie de “fantasma” que até tem o seu passaporte visível nas redes sociais e na imprensa russa como estando ligado a algo verdadeiramente extraordinário: cerca de 20 mil milhões de euros em notas estavam “congeladas” numa sala do aeroporto de Sheremetyevo, em Moscovo, em várias paletes. Pelo menos em 2013 ainda se mantinham naquele aeroporto moscovita, e um jornal local ligou o investidor iraniano à origem desses fundos.
O “The Independent”, mais credível e com fontes no aparelho político e dos serviços de informações russos, confirmou a existência dos fundos mas não garante que os mesmos pertençam a Farzin Koroorian Motlagh. Dando como certo que vários burlões tentaram reclamar os fundos, o jornal inglês confirmou que, efetivamente, 200 paletes de madeira recheadas de dinheiro vivo voaram a 7 de agosto de Frankfurt para Moscovo. E que o recibo de entrega de tais bens continha o nome de “Farzin Koroorian Motlagh”.
O The Independent cita o tal jornal tablóide moscovita, que revelou a mesma história, para dizer que uma fonte dos serviços secretos russos tinha colocado a hipótese de tais fundos pertencerem a Saddam Hussein.
Uma pesquisa mais profunda dá o nome de Farzin Koroorian Motlagh ligado a várias sociedades com sede social no Reino Unido e noutros países.
Arquivados crimes de fraude fiscal e branqueamento de capitais
Voltando a Hélder Claro, foram estas comunicações do sistema financeiro que permitiram começar a investigar a sério o juiz e descobrir o que as autoridades entendem ser uma vida dupla empresarial. Os inspetores da PJ do Porto descobriram rapidamente que Hélder Claro dedicava mais tempo e foco à sua carreira como promotor imobiliário, do que propriamente à sua carreira de juiz de direito.
Essa vida dupla acontecia há um número indeterminado de anos, tendo os investigadores detetado rapidamente os diversos negócios imobiliários em que o juiz estava envolvido em diversos concelhos do Grande Porto e do norte do país, como Castelo de Paiva, Matosinhos, Penafiel, Valongo, Vila Nova de Gaia ou Espinho.
Algumas dessas operações foram meras tentativas que não tiveram resultados práticos — como aconteceu com um investidor marroquino que teria manifestado interesse em aplicar fundos em Portugal através de um alegado sócio de Hélder Claro —, enquanto que outros resultaram em mais valias significativas.
O inquérito começa com suspeitas de dois crimes — branqueamento de capitais e fraude fiscal qualificada —, que não se vão concretizar por razões diferentes.
De acordo com o despacho de encerramento de inquérito, “não foi possível demonstrar a efetiva existência das quantias” do misterioso investidor iraniano que Hélder Claro teria garantido que poderiam ser transferidos ou para o BCP ou para a Caixa. Por outro lado, e ao contrário de outros crimes (como a corrupção), a mera tentativa de branquear capitais não faz com que a prática do crime se consuma.
“O tipo legal exige a demonstração, ainda que apenas indiciária, de que as vantagens branqueadas ou a branquear existem e têm natureza ilícita”, garante a procuradora-geral adjunta Elina Lopes Cardoso, que assina o despacho. Por outro lado, o MP coloca a hipótese de que estivesse em causa um “mero teste ao sistema ou propósito, próprio [de Hélder Claro] ou de terceiro, de ludibriar instituição bancária”.
Isto é, Hélder Claro poderia querer apenas perceber quais seriam as exigências das instituições bancárias para aceitar o depósito de tais avultadas quantias, atendendo precisamente às regras apertadas do combate ao branqueamento de capitais que marcam a atividade de toda a banca que opera no espaço económico europeu, nomeadamente aquela que opera em países pertencentes à zona euro.
Como dizia Hélder Claro, apenas queria perceber as regras para “bancarizar fundos”.
No entanto, a investigação demonstrou algo (que o próprio não escondeu quando foi interrogado, segundo o despacho de acusação): o juiz de direito operava muitas vezes como intermediário ou comissionista na angariação dos mais diversos negócios, nomeadamente operações imobiliárias. Logo, recebia sempre um determinado X por cada negócio que intermediava. Hélder Claro nega veementemente ter recebido alguma contrapartida.
Efetivamente a quebra do sigilo bancário mostrou, no entendimento do MP, que Hélder Claro recebeu em dezembro de 2021, fevereiro de 2022 e maio de 2022 quantias de 5 mil euros por cada movimento da parte do empresário Carlos Moura Guedes, administrador único da Imopartner. Moura Guedes e Domingos Costa também confirmaram “em declarações prestadas nos autos, ter pago contraprestações ao arguido Hélder Claro por serviços prestados em negociações imobiliárias, o que este arguido não negou em interrogatório, tendo até explicitado que podia receber comissões ou percentagem de mais valias em negócios imobiliários, o que era decidido “negócio a negócio”, lê-se no despacho de acusação.
Por outro lado, o MP investigou ainda os movimentos bancários na conta de Hélder Claro entre janeiro de 2015 e dezembro de 2020, tendo concluído que um total de cerca de 78 mil euros não foram declarados ao Fisco — os seus únicos rendimentos declarados são apenas os da sua atividade como magistrado. Subdividindo por seis anos, está em causa um montante de 13.000 euros por ano.
A vantagem patrimonial anual recebida por Hélder Claro “não foi superior a 15.000 euros, pelo que não são tais factos criminalmente puníveis” ao abrigo do Regime Geral de Infrações Tributárias, concluiu a procuradora-geral adjunta Elina Lopes Cardoso. Daí que as suspeitas por fraude fiscal tenham sido arquivadas, acontecendo o mesmo com os factos relacionados com o branqueamento de capitais.
Ao Observador, Hélder Claro lamenta “não ter sido confrontado pelo MP com os factos relacionados com as três transferências de Carlos Moura Guedes, cada uma no valor de 5 mil euros. Trata-se de dinheiro que eu tinha emprestado e que ele me pagou. Nunca recebi qualquer pagamento a propósito de negócios imobiliários”, diz.
Sobre a imputação de que não terá declarado rendimentos de cerca de 78 mil euros, o ex-magistrado diz: “Estamos a falar de um período muito alargado de tempo, de oito anos. Olhe, por exemplo, essa quantia inclui dinheiro que a minha mulher e outros familiares me transferiram, assim como de um outro empréstimo de amigos, etc. Só para perceber que isso não tem nada a ver com rendimentos de qualquer espécie. Seja como for, também não fui confrontado com isso quando fui interrogado”, assegura.
As escutas ambientais, o tabliê do carro do juiz e a alegada corrupção do funcionário do Aldi
Hélder Claro foi juiz de direito entre 13 de setembro de 1997 e 22 de maio de 2024, quase 27 anos. O MP não tem dúvidas de que a partir de determinada a altura — numa data concreta não apurada —, o juiz de direito terá alegadamente quebrado a exclusividade da sua função e dedicado o seu tempo a “atividades de mediação imobiliária e a prestação de serviços para terceiros nas áreas do imobiliário e de investimentos financeiros”, lê-se na acusação.
A atividade imobiliária era apenas uma das várias atividades a que Claro se dedicava. E para descobrir essa vida dupla do juiz, o MP e a Polícia Judiciária (PJ) do Porto tiveram de recorrer a escutas ambientais — no automóvel do Hélder Claro e em diversos locais onde reuniões secretas ocorreram com outros arguidos.
Foi mesmo colocada uma escuta no tabliê do automóvel de Hélder Claro. Residente no Porto e colocado na Instância Criminal Local de Vila de Real de Santo António, no Algarve, o juiz tinha de fazer viagens longas e passava muito tempo no seu Mercedes, Classe C. Fontes da investigação dizem que o juiz era especialmente cuidadoso quando falava ao telefone.
Sem essas escutas ambientais, o MP e a PJ não teriam descoberto uma parte importante da prova indiciária que reuniram. Durante os cerca de seis anos que duraram as investigações — que começaram por ser arquivadas, mas foram reabertas pouco depois —, o juiz esteve sob escuta durante um tempo muito significativo, ao que o Observador apurou.
Concentremo-nos, para já, na actividade imobiliária do juiz. A Imopartner SA, com sede social em Braga, e o seu administrador único, Carlos Moura Guedes, é o principal parceiro do magistrado nos negócios imobiliários. Diz o MP que Moura Guedes partilhava com Hélder Claro “atos de gestão e administração da empresa, em particular a prospeção de mercado, algumas negociações e agilização de procedimentos administrativos e contratuais, sendo também o arguido Hélder Claro seu assessor jurídico.”
Por outro lado, Carlos Moura Guedes “pagava comissões a Hélder Claro nos negócios em que este tinha intervenção ou repartia com ele as mais-valias obtidas”.
Nesta história da relação de Carlos Moura Guedes e Hélder Claro aparece ainda José Ribeiro Pires, funcionário da sociedade Real Estate Manaldi Lda — uma empresa do Grupo Aldi que pesquisava os melhores terrenos em termos de relação preço/qualidade nos mercados classificados como prioritários pela rede de supermercados para a sua própria expansão.
Na prática, Ribeiro Pires era um prospetor de mercado ao serviço do Grupo Aldi para procurar os melhores negócios possíveis para a compra de espaços para novas lojas. Era amigo de Paulo Neves, funcionário bancário que, por sua vez, conhecia bem Hélder Claro. É precisamente Neves que vai fazer a ponte entre o prospetor do Aldi e o juiz de direito especialista em mercado imobiliário, marcando entre ambos um encontro numa estação de serviço da Circunvalação, a circular interna da cidade do Porto, para estudo de possíveis negócios entre o Grupo Aldi e a Imopartner.
Essa era uma hipótese de ouro pois a Imopartner “precisava de alguém de dentro do Aldi que defendesse os interesses da Imopartner”. Segundo o MP, naquele encontro e nas reuniões seguintes, Hélder Claro e Carlos Moura Guedes terão prometido a quantia de 10 mil euros a José Ribeiro Pires por cada negócio imobiliário que a Imopartner conseguisse concluir com o Aldi.
Ouça aqui o episódio do podcast “A História do Dia” sobre este caso do ex-juiz.
Mais tarde, os arguidos acordaram mesmo, de acordo com o MP, que José Ribeiro Pires iria apresentar ao Aldi um terreno que a Imopartner tinha em vista em Valongo, cidade do distrito do Porto. Pires passaria a fornecer “informações relevantes para a Imopartner sobre negociações em curso e estratégias negociais na sua área geográfica”, ao mesmo tempo que apresentaria “ao Aldi as propostas da Imopartner” como “preferenciais relativamente a outras propostas”.
O primeiro concretizou-se precisamente em Valongo — cidade para a qual o Aldi queria expandir-se. José Ribeiro Pires apresentou a Imopartner como uma empresa que costumava trabalhar com marcas como o Pingo Doce, Lidl e MacDonald’s. Em Valongo, o Aldi estava indecisa entre dois terrenos, sendo que um deles foi apresentado pela Imopartner. Contudo, a empresa não era proprietária do terreno. Numa jogada de quem tem acesso a informação privilegiada, evidencia o MP na acusação, a Imopartner começou por garantir que conseguia o negócio com o Aldi através da influência da José Ribeiro Pires.
A 31 de janeiro de 2020 fechou o negócio com 0 Aldi para a venda de um terreno na rua Rainha Santa Isabel em Valongo por 1.950.000 euros, sendo que apenas assinou o contrato-promessa de compra e venda com os legítimos proprietários do terreno a 17 de fevereiro de 2020 e pelo valor de 1.850.000 euros. Isto é, a Imopartner primeiro garantiu que conseguia o negócio de venda ao Aldi e só quinze dias depois prometeu comprar o mesmo imóvel.
O negócio fez-se e a Imopartner teve uma mais-valia de 100 mil euros. O MP não explica na sua acusação qual foi o valor exato da comissão recebida por Hélder Claro.
Outros negócios se seguiram com os mesmos contornos. Em Matosinhos, por exemplo, a Imopartner apresentou um terreno na zona de Guifães para uma nova loja pelo valor de 2,3 milhões de euros. A proposta é datada de fevereiro mas, uma vez mais, a Imopartner não era proprietária de nenhum terreno. Só após a garantia dada por José Ribeiro Pires, é que a Imopartner avançou o negócio de compra do terreno, tendo acordado um contrato-promessa de 1,1 milhões de euros aos anteriores proprietários. O valor final da venda ao Aldi conseguiu baixar do preço de 2.300.000 milhões euros para 1.830.000 euros, sendo que a mais-valia da Imopartner foi de cerca de 730 mil euros. ´
Houve ainda a hipótese de um terceiro negócio em Penafiel, mas que não avançou, e José Ribeiro Pires já tinha saído do Aldi.
O MP acusou Hélder Claro do crime de corrupção ativa de funcionário privado em regime de co-autoria com Carlos Moura Guedes e Paulo Neves. Já José Ribeiro Pires foi acusado de um crime de corrupção passiva.
Hélder Claro contesta veementemente todos os factos indiciários que o MP lhe imputa. Ao longo da conversa com o Observador, o ex-juiz garantiu várias vezes que não recebeu qualquer quantia por intermediação de negócios imobiliários. “Ao contrário do que a acusação diz, nunca representei a Imopartner, não tive qualquer intervenção no negócio e não recebi qualquer quantia por conta de qualquer suposto negócio. Desconheço e desconhecia a gestão concreta da Imopartner. Imputam-me um crime de corrupção ativa no setor privado em regime de co-autoria mas não existe nenhum crime de corrupção”, assegura.
O juiz do Tamariz, as “meninas” de Acaraju e o cabeleireiro que virou coreógrafo
Nos bastidores das magistraturas do Porto, Hélder Claro ganhou algum ‘nome’ no tempo em que passou em Matosinhos. Várias fontes judiciais garantem ao Observador que o juiz de direito era conhecido por ser o juiz do Tamariz — uma conhecida boite da noite do Porto. O ex-magistrado foi confrontado com esta informação pelo nosso jornal mas optou por não comentar.
E é precisamente no Tamariz que começa e acaba a história da imputação da alegada angariação de mão de obra ilegal e auxílio à imigração ilegal. De acordo com a acusação do MP, Hélder Claro era um cliente habitual, tinha conta-corrente e uma relação privilegiada com Manuel Pinto, o gerente de facto da empresa que geria o Tamariz. A proximidade chegava ao ponto de Hélder Claro ter acesso, segundo o MP, aos contactos telefónicos dos funcionários da boite.
Foi também no Tamariz que Hélder Claro conheceu Samantha Gama, uma cidadã brasileira que, à data dos factos que interessam para a acusação do MP, vivia em Acaraju, capital do estado de Sergipe — um estado com 2,2 milhões de habitantes, pouco conhecido em Portugal mas que se situa na costa norte brasileira, entre os estados da Baía e de Pernambuco.
Em conversa com Manuel Pinto, Hélder Claro percebeu que podia ter uma oportunidade de negócio, visto que o proprietário do Tamariz necessitava de um “ballet novo” para revitalizar o espaço. Ou seja, necessitava urgentemente de novas bailarinas.
Diz o MP que o juiz de direito facultou essa informação a Samantha Gama com o objetivo de esta angariar bailarinas brasileiras que pudessem vir para Portugal e “exercerem a atividade denominada de alterne, ou seja, de entreter os clientes e induzi-los ao consumo, recebendo, por tal, uma percentagem sobre o valor pago pelo cliente”, lê-se no despacho de acusação.
O negócio renderia cerca de 3.500 reais mensais (cerca de 562 euros ao câmbio atual) a cada bailarina, sendo que o alojamento seria gratuito e o contrato teria 6 meses de duração. Já Samanhta Gama poderia ganhar cerca de 10.000 reais (cerca de 1.600 euros) mensais, se conseguisse, claro, recrutar as bailarinas.
O MP descreve no despacho de acusação um conjunto muito de vasto de mensagens trocadas entre o então juiz Hélder Claro e Samantha Gama. O primeiro contacto, contou a ex-funcionária do Tamariz, foi com o seu cabeleireiro Júlio Godi de Assis — que poderia ser o coreógrafo do novo corpo de bailarinas da boite e acompanhar as “meninas” a Portugal.
Entre o envio de fotos do “rosto e do corpo” pedidas pelo juiz Hélder Claro, Samantha foi dando conta das dificuldades em conseguir recrutar bailarinas porque “fazer esse tipo de trabalho, nesse tipo de ambiente, quem quer é quem mais precisa e essas pessoas estão na periferia [de Acaraju, capital do estado de Sergipe, onde Samantha morava]”.
A amiga de Hélder Claro enfatizava: “Por mais normal que você pense que seja, [esse trabalho] não é. É trabalho para mulher promíscua e vagabunda. Essa é a mais pura verdade”, lê-se numa mensagem de WhatsApp que está citada no despacho de acusação. As dificuldades levaram mesmo Samantha a tentar recrutar em sites de encontros sexuais.
Entre fevereiro e outubro de 2022, o processo passou por várias vicissitudes. Em primeiro lugar, e apesar de o então juiz Hélder Claro lhe ter garantido que “até 12 meninas tem a certeza que consegue colocar”, Samanhta só conseguiu angariar 10 raparigas mais o coreógrafo.
Por outro lado, Samantha criou uma empresa no Brasil chamada “Dance Brasil” para conseguir assinar um contrato de trabalho com as bailarinas, de forma a conseguir um visto de trabalho para Portugal. Contudo, os vistos foram chumbados pelo Consulado de Portugal em Salvador da Baía porque os mesmos não cumpriam as regras legais.
Foi assim que três cidadãs brasileiras aterraram em Lisboa no dia 1 de outubro de 2022 com visto de turismo. Não vinham passar férias, mas sim trabalhar para a empresa Bonusmelodia Lda que geria o Tamariz. O mesmo aconteceu a 3 de outubro de 2022 quanto aterraram no Aeroporto Francisco Sá Carneiro mais sete bailarinas e o coreógrafo — tendo sido todos recebidos por Manuel Pereira, o gerente de facto da boite.
A conta de Samantha Gama num banco português chegou a receber cerca de 13 mil euros da Bonusmelodia Lda e de outras pessoas controladas por Manuel Pereira, sendo que tal pagamento foi a remuneração pelo recrutamento de bailarinas para o Tamariz, “sem para tal serem detentores de competentes vistos e autorizações, tudo também em vista da renovação e revitalização [da boite] e do incremento dos seus lucros”.
Hélder Claro, Manuel Pereira e a Bonusmelodia Lda (enquanto pessoa coletiva) foram acusados da alegada prática de oito crimes de angariação de mão de obra ilegal e de oito crimes de auxílio à imigração ilegal, lê-se no despacho de acusação do MP.
Ao Observador, Hélder Claro diz que ficou “estupefacto com essa parte da acusação”: “Do ponto de vista jurídico, não há qualquer infração à legislação da imigração, logo não há auxílio algum. E não posso aceitar a imputação sobre o crime de angariação de mão de obra ilegal.”
Ou seja, o ex-juiz confirma que elaborou os “contratos de trabalho”, mas apenas por uma razão: “Conheço a Samantha”. Mas assegura: “Não tive nada a ver com o que aconteceu depois”. E garante que o processo cumpriu a lei e é “absolutamente normal.”
“Em Agosto de 2022, a lei da imigração foi alterada no sentido de dispensar vistos de trabalho para quem se apresentasse em território nacional com o intuito de procurar trabalho ou que já tivesse assegurado trabalho. A manifestação de interesse seria um passo ulterior. Sei, embora me tivesse desligado do processo, que em início de agosto de 2020, os integrantes do grupo de dança tinham efetivamente trabalho assegurado via contratual”, explica o ex-juiz, para consolidar a sua posição.
Hélder Claro, contudo, admite que há um erro. As cidadãs brasileiras e o coreógrafo “declararam no aeroporto que vinham como turistas — o que apenas soube recentemente. Evidentemente que deveriam ter declarado que vinham para trabalhar, com contrato já celebrado, e não como turistas!”, enfatiza.
Sobre a descrição que o MP faz sobre o facto de ser um cliente regular do Tamariz, ter conta-corrente e acesso aos telefones dos funcionários e funcionárias e de ser conhecido na comunidade judicial do Porto de como assíduo do local, Hélder Claro diz apenas o seguinte: “Da descrição constante da peça acusatória confirmo apenas que, com alguma regularidade, me deslocava ao estabelecimento. O resto nego veementemente.”
O barão da droga, a dark web e as criptomoedas que valiam 90 milhões de euros
Se a história anterior começou no WhatsApp, o próximo conjunto de factos indiciários — que consubstanciam a alegada prática de um crime de associação criminosa e de um crime de aquisição de cartões ou outros dispositivos de pagamento obtidos mediante crime informático — tem o Ginásio Six Pack Academy como local onde todos os protagonistas se reúnem e junta o juiz Hélder Claro a um ex-agente da PSP que é tido pela PJ como um dos principais barões da droga do Porto: Alberto Jesus Couto.
‘Joca’, alcunha pela qual é conhecido Alberto Couto, é familiar de Bruno Pidá (detido em 2007 e condenado no âmbito da Operação Noite Branca por homicídio qualificado a uma pena de 23 anos de prisão). ‘Joca’ foi precisamente detido no início de maio numa mega-operação da Polícia Judiciária do Porto por suspeitas de associação criminosa, tráfico de estupefacientes e branqueamento de capitais e encontra-se em prisão preventiva. Precisamente poucas semanas antes da acusação contra Hélder Claro ter sido deduzida pela Procuradoria-Geral Regional do Porto, o que indica claramente que houve uma concertação entre as duas investigações do MP e da PJ do Porto.
Ora, foi precisamente no Ginásio Six Pack Academy que o juiz Hélder Claro, ‘Joca” e um especialista informático chamado Filipe Carneiro começaram a ter as primeiras conversas sobre o acesso ilegítimo a uma elevada quantia de criptomoedas que teria um valor de cerca de 90 milhões de euros.
A ideia terá partido, segundo o MP, de Filipe Carneiro que a propôs a ‘Joca’, convencendo-o de que seria capaz de converter tal quantidade de criptomoedas em bitcoins e, posteriormente, em numerário — euros. Para tal, Filipe Carneiro precisava de ter determinados meios financeiros e tecnológicos para concretizar a tarefa, que incluía a contratação de hackers estrangeiros que viriam a Portugal trabalhar para o grupo.
Não é claro como é que Hélder Claro aparece na história. No despacho de acusação do MP, apenas se refere que o então juiz de direito foi apresentado a Filipe Carneiro e a ‘Joca’ porque poderia “indicar técnicos especializados em matéria de criptoativos” e teria outros “grandes conhecimentos” que poderiam ajudar o grupo a colocar os fundos em euros de forma legal numa instituição financeira legítima e alegadamente também ajudar a branquear tais capitais em operações imobiliárias e/ou através de empresas fictícias.
O MP reuniu prova indiciária que lhe permite dar como assente que Hélder Claro terá aderido ao plano de ‘Joca’ e de Filipe Carneiro. As tarefas estavam claramente definidas: ‘Joca’ financiava (por ser pessoa com grande “capacidade financeira”, diz o MP), Hélder Claro e Filipe Carneiro reuniriam os técnicos informáticos e a logística necessária a concretizar o alegado plano criminoso.
O MP refere na acusação que este trio, auxiliado por Mário Ferreira Monteiro (amigo de Hélder Claro), terá executado entre 12 de julho de 2021 e setembro ou outubro de 2022 as seguintes tarefas:
- “Interferência ilegítima em websites — para clonar páginas e os respetivos dados dos utilizadores”;
- “Clonagem de cartões bancários”;
- “Aquisição na darkweb de cartões e dados de pagamento obtidos contra a vontade dos respetivos titulares”;
- e “interferência em sistemas de pagamentos à distância”.
O MP descreve de forma exaustiva inúmeros pormenores técnicos de todas estas tarefas — altamente complexas e que exigiam conhecimentos profundos no campo da informática — e chega aos factos indiciários mais relevantes. Diz que “Hélder Claro, por si ou através do arguido Mário Rui Ferreira, assumiu a direção das operações”, lê-se no despacho de acusação.
Ao Observador, o ex-juiz nega uma vez mais todas as imputações do MP. “O Filipe Azevedo foi-me apresentado como um especialista informático e o ‘Joca” como um ex-polícia reformado por invalidez. Por exemplo, desconhecia qualquer ligação do ‘Joca’ a tráfico de droga e apenas contactei com ele durante três meses em 2022 — que foi a altura em que esse negócio esteve em estudo. A última vez que falei com o ‘Joca’ foi a 13 de julho de 2022 por WhatsApp e fui surpreendido com a sua detenção agora em maio. Nada tenho a ver com as atividades do ‘Joca'”, garante Hélder Claro.
A importância das escutas ambientais e os hackers cipriotas em quem o grupo não confiava
Sempre com grande cuidado nas conversas que tinham. Nunca falavam ao telefone, utilizavam sempre aplicações com comunicações encriptadas, como o Telegram ou Signal, encontravam-se sempre em hotéis ou estações de serviço em grande sigilo. Por isso, as inúmeras escutas ambientais — nomeadamente em locais que os arguidos escolhiam com regularidade — foram essenciais para o MP e a PJ do Porto desmontarem o esquema em execução.
Por exemplo, os arguidos Filipe Carneiro e Alberto Couto ‘Joca’ terão visitado vários hotéis de cinco estrelas no Algarve, Lisboa, Porto e Vigo com um objetivo claro: entrar ilegalmente no sistema informático de cada unidade hoteleira para intercetar o sistema de pagamento e copiar os dados dos cartões de crédito que tinham sido dados pelos respetivos clientes. Copiando tais dados para discos ou pen drives, Filipe Carneiro poderia usá-los mais tarde em operações de simulação de operações de compra e venda de bens para branquear capitais com origem ilícita.
O MP não refere a participação de Hélder Claro nessas atividades, mas diz no ponto 61 da acusação que quando o ex-juiz observou o conteúdo de uma pen com os dados dos cartões bancários clonados, “insurgiu-se pelo facto de a mesma conter dados de 23 cartões, dizendo que se tivessem dado uma volta no Porto não teriam trazido 23 cartões, teriam trazido 100, exortando o arguido Alberto Couto [‘Joca’] a apresentar mais ‘pesca'” — “ou seja, mais cartões ou os respetivos dados”, lê-se no despacho de acusação.
Hélder Claro terá igualmente contactado outros suspeitos ligados a hackers para tentar encontrar alguém que conseguisse ajudar os “seus sócios” a aceder às criptomoedas no valor de 1,5 milhões de euros.
Foram igualmente as escutas ambientais que permitiram perceber que, a 15 de julho de 2021, o “arguido Hélder Claro reuniu-se com Luís Miguel Sousa Tavares [uma das pessoas contactadas por Hélder Claro] e no dia 18 imediatamente seguinte, Luís Miguel instou Hélder Claro a viabilizar imediatamente a transferência de ‘um milhão’ em ‘whites ou monero’ [criptomoeda em código aberto cujo objetivo é não ser rastreável] porque tinha gente à espera com 640.000 em dinheiro”.
Contudo, e aparentemente, tal não aconteceu porque Luís Miguel Sousa Tavares saiu do processo quando se apercebeu que o grupo de Hélder Claro pretendia “comprar bitcoin na internet com recurso a cartões bancários clonados ou com informação adquirida na internet referente a cartões bancários ilicitamente subtraídos aos respetivos titulares”, lê-se no despacho de acusação e que tem por base o testemunho do próprio Sousa Tavares na PJ do Porto.
Outro pormenor rocambolesco ocorreu com a contratação de dois hackers cipriotas — Minos Pitsillides e Alexei Kozhushkov — aos quais chegaram através de um hacker português que tinha vivido no Chipre. Estes terão vindo a Portugal para “colaborar na obtenção e conversão dos criptoativos a que o grupo Hélder Claro, Alberto Couto, Filipe Carneiro e Mário Rui Ferreira pretendia ilegitimamente aceder”, lê-se no despacho de acusação.
Terá sido Hélder Claro quem pagou a estadia dos cipriotas no Hotel Holiday Express em Leça da Palmeira e os conduziu ao escritório de um advogado amigo na Póvoa do Varzim onde já estavam Alberto Couto ‘Joca’ e Filipe Carneiro.
Curiosamente, o grupo de Claro, ‘Joca’ e Carneiro tinha receio que os cipriotas se apoderassem das criptomoedas e solicitaram ‘reforços’ a seguranças que conheciam do Ginásio Six Academy para que se mantivessem no exterior do escritório, para o caso de as coisas correrem mal.
Ao Observador, o ex-magistrado diz ainda: “Nunca fui confrontado com as provas indiciárias de clonagem de cartões em hotéis. Desconhecia em absoluto isso tudo. Nada tive a ver com atividades supostamente desenvolvidas por outros e nenhum crime pratiquei relacionado com cartões bancários e clonagens e nunca pertenci a qualquer associação criminosa, como em sede própria se demonstrará.”
Buscas de junho de 2023 reforçam indícios do MP
Não é claro no despacho de acusação se a operação teve sucesso ou não. Há apenas relatos de operações não sucedidas, mas as buscas domiciliárias que foram feitas aos principais arguidos em junho de 2023 terão, no entendimento do MP e da PJ do Porto, reforçado os indícios.
Nas buscas ao arguido Mário Rui Ferreira, que terá colaborado com o grupo mas não foi acusado de qualquer ilícito criminal, foi apreendida uma pen drive “entregue pelo arguido Alberto Couto ‘Joca’ ao arguido Hélder Claro”, que “armazenava uma lista de dados referente a 23 cartões de crédito, designadamente o nome do titular, o número do cartão, data de validade e o CVV/CVC (Card Verification Value e Card Verification Code) de diferentes nacionalidades. Segundo o MP, tais cartões terão sido utilizados para compras on line no total de 511 euros.
Já na casa de Filipe Carneiro, durante as buscas realizadas a 19 de junho de 2023, foram apreendidos um TPA do BPI, um scanner (leitor de cartões), 220 cartões graváveis com banda magnética e 18 cartões com banda magnética e chip. Entre outros elementos relevantes para os autos, o telemóvel deste especialista informático continha ainda um conjunto muito variado de digitalizações de documentos de identificação de cidadãos de diferentes nacionalidades, bem como lhe foram apreendidos no seu computador imagens de ranhuras falsas de caixas multibanco ‘utilizadas em esquemas de skimming’ [captura ilegal de informações de cartões bancários].
Por outro lado, o telemóvel de Helder Claro revelou um documento com 17 páginas de 12 palavras em língua inglesa — as chamadas seed frases, códigos que permitem aceder a códigos de wallets (carteiras com criptomoedas).
No mesmo aparelho do juiz de direito foram encontrados ainda digitalizações de documentos de identificação de um cidadão espanhol com diversas informações bancárias e “um código de autorização para o montante de 10.000.000,00 euros [dez milhões de euros] e uma procuração conferindo poderes a um terceiro para o representar em operações bancárias, bem como um comprovativo referente a um código IBAN brasileiro e uma minuta de um acordo de investimento”, lê-se no despacho de acusação.
Diz o MP que toda esta documentação se destinava a ser utilizada “nos procedimentos que este arguido estava a desenvolver — ou seja, ocultação dos fundos que fossem obtidos em resultado de apropriação de criptomoeda”, escreve a procuradora-geral adjunta Elina Lopes Cardoso.
A origem do caso Vórtex e da Operação Babel? A investigação ao juiz Hélder Claro
Há um facto que não faz parte do despacho de acusação contra Hélder Claro e os outros arguidos: a investigação ao juiz de direito, que começou em 2018 com as comunicações do BCP e da Caixa Geral de Depósitos sobre a intermediação de Claro para os alegados depósitos de centenas ou milhares de milhões de euros do misterioso investidor iraniano, e que esteve na origem de dois casos muito mediáticos do DIAP Regional do Porto.
Referimo-nos à Operação Vortex — que levou à queda de Miguel Reis como presidente da Câmara de Espinho e ao afastamento de Joaquim Pinto Moreira (antecessor de Reis na autarquia espinhense) do Grupo Parlamentar do PSD. E que está na origem de uma acusação do MP em julho de 2023 por corrupção ativa contra o empreiteiro Francisco Pessegueiro e o empresário Paulo Malafaia por alegadamente terem corrompido Reis e Pinto Moreira. Há ainda indícios de tráfico de influência imputados a Pinto Moreira.
O outro caso é a Operação Babel, que visa Patrocínio Azevedo, ex-vice-presidente da Câmara de Gaia. Este foi acusado em junho da alegada prática de crimes de corrupção passiva, prevaricação, participação económica em negócio, tráfico de influência, abuso de poderes, branqueamento e recebimento ou oferta indevidos de vantagem.
Nas escutas feitas ao juiz Hélder Claro, o MP e a PJ detetaram vários contactos com protagonistas da Operação Babel e, indiretamente, da Operação Vórtex. Houve várias hipóteses de negócio que não se concretizaram. O então juiz terá dito mesmo que era ‘demasiada areia para a sua camioneta’.
Essas escutas telefónicas foram enviados pela procuradora Elina Lopes Cardoso em dezembro de 2021 para o DIAP Regional do Porto. E deram lugar ao inquérito que, antes das buscas de janeiro de 2023 que levaram à detenção de Miguel Reis (então presidente da Câmara de Espinho pelo PS), foi separado em três outros inquéritos.
Ao que o Observador apurou, o primeiro processo foi o caso Vórtex (Espinho), o segundo foi a Operação Babel e o terceiro visa Eduardo Vítor Rodrigues, o ainda presidente da Câmara de Vila Nova de Gaia. Estão a ser investigados pelo MP, como o Observador já revelou.
O inquérito aberto no Tribunal da Relação do Porto contra o juiz Hélder Claro não foi fácil. Depois de uma primeira investigação aos indícios de branqueamento de capitais enviados pelo DCIAP, os autos começaram por ser arquivados. Contudo, verificou-se uma intervenção hierárquica. A então procuradora-geral distrital Raquel Desterro não ficou satisfeita com as conclusões do titular do inquérito e ordenou a reabertura do mesmo.
A nova investigação começou por ser titulada pela procuradora-geral adjunta Branca Lima, mas a sua nomeação como diretora do DIAP Regional do Porto fez com que os autos fossem transmitidos à procuradora-geral adjunta Elina Lopes Cardoso — que deduziu então acusação contra Hélder Claro e mais sete arguidos individuais e dois coletivos no dia 28 de junho de 2024.
Texto alterado às 10h32 do dia 12 de agosto de 2024, tendo sido retirada a informação em relação a eventuais contactos telefónicos entre Hélder Claro e Paulo Malafaia. Ambos negam que se conheçam.