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Paulo tem 57 anos e começou a frequentar o Bota Alta do seu tio ainda era adolescente. À morte de António Cassiano, o sobrinho ficou com o negócio
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Paulo tem 57 anos e começou a frequentar o Bota Alta do seu tio ainda era adolescente. À morte de António Cassiano, o sobrinho ficou com o negócio

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Paulo tem 57 anos e começou a frequentar o Bota Alta do seu tio ainda era adolescente. À morte de António Cassiano, o sobrinho ficou com o negócio

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

45 anos do Bota Alta. "De repente, numa noite, tínhamos o Caetano Veloso a cantar fado da Amália"

Paulo Cassiano começou cedo no restaurante do tio, aberto em 1976. Hoje, assume o negócio para manter vivo o legado de uma mesa portuguesa pós-revolucionária com muitas histórias para contar.

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“Niza azul e bota alta, a reinar com toda a malta”. É este verso do fado “Timpanas”, de Amália Rodrigues, que, nos anos 70, deu um empurrãozinho a António Cassiano na hora de encontrar um nome que assentasse ao seu restaurante. “Bota Alta soou-lhe bem, Bota alta ficou”, lembra o sobrinho Paulo Cassiano, que agora toma conta do legado do tio iniciado a 24 de junho de 1976, dia em que abriu pela primeira vez as portas do restaurante Bota Alta, uma mesa pós-revolucionária, com comida tradicional portuguesa, que lançou a primeira pedra para a mudança de um Bairro Alto decadente naquela época. Por ali, passaram jornalistas, músicos, artistas, políticos e intelectuais de toda a espécie — os nomes sonantes ainda hoje têm lugar guardado num pedaço de toalha de papel rasgada ou numa moldura nas icónicas paredes azuis. O Bota Alta de hoje é o mesmo de há 45 anos — mudou a cara, mas não o apelido, a decoração ou a ementa. O legado Cassiano está lá. Até ver.

Bon vivant e visionário, António encontrou no Bairro Alto o potencial que poucos ali tinham visto, numa Lisboa acabada de se libertar da ditadura. Até 2003, ano em que morreu, António fez de tudo para manter o Bota Alta como ponto de encontro de todos e para todos. Não era só mais um restaurante. Era, de facto, um sítio onde se começava a noite, sobretudo para quem seguia a seguir para o Frágil, a poucos metros dali. Mas se a noite se encaminhava muitas vezes para outras pistas e musicalidades, havia outras noites em que a festa era mesmo ali — quase sempre sem ser planeada, a espontaneidade ditava o passo. Paulo não esquece uma noite, ainda no início do Bota Alta, em que a fadista Ada de Castro se pôs à porta do restaurante e cantou um fado “que fez chorar as prostitutas do Bairro Alto”.

O restaurante tem duas salas de refeição e as paredes decoradas com dedicatórias e memorabília de quem o frequentava ©Filipe Amorim/OBSERVADOR

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Após a morte do tio, Paulo Cassiano abraçou a gerência do restaurante, que já considerava ser a sua segunda casa, já que por ali passava todos os dias desde a sua adolescência. “Já todos sabiam quem era o Paulinho, eu já fazia parte da história do Bota Alta, agora é continuar a escrever essa história. É a minha missão”, diz.

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António Cassiano, o visionário que abraçou a liberdade pós-revolucionária para fazer negócio, amigos e história

Não há imagens de António pelo restaurante, apenas um quadro pintado à mão com dimensões consideráveis e que fica por cima da porta da cozinha, simbolicamente. O detalhe faz com que se pareça uma fotografia que, lá do alto, olha a clientela habitual que deixou de acompanhar em pessoa. “Ele fundou o restaurante, é um mentor para mim e para todos os que por aqui já passaram”, recorda Paulo observando o tio. “É um retrato excecional, notam-se as dobras da camisa até como se usam agora. Ele estava muito à frente, é incrível”, diz com saudade.

O retrato foi pintado em Paris, nos anos 70, ainda antes de abrir o Bota Alta, numa das suas muitas viagens, como relembra Paulo, é que o tio “viajava muito, era a alma da família”.

António Cassiano vivia em Angola, assim como as suas irmãs, era lá que era dono da camisaria Bossa Nova, viajava regularmente para Paris e para a África do Sul em trabalho e lazer. “Lembro-me que na altura ele usava calças da Wrangler, ninguém usava isso”, atira Paulo. António não estava minimamente ligado à restauração, mas quando se deu a Revolução dos Cravos, a 25 de Abril de 1974, quis voltar para Portugal — “ele dizia que era melhor virmos para cá, arranjarmos qualquer coisa para nos podermos mudar”, conta. Em 1975, António acabou por comprar o número 37 da Travessa da Queimada e começou a magicar o que poderia fazer naquele espaço para que pudessem, ele e as irmãs, voltar a Lisboa.

O retrato de António Cassiano foi pintado à mão, num momento em que esteve em Paris, ainda antes de abrir o restaurante ©Filipe Amorim/OBSERVADOR

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Originalmente, o espaço era uma tasca e “isso ajudou a encaminhar as ideias” de António, que, segundo Paulo, “cozinhava muito bem”. “O salto lógico foi abrir um restaurante, um sítio que também dava para ter a família toda a trabalhar, a minha mãe, a minha tia, os meus primos, viemos todos”, conta. Na altura, António abriu o restaurante em sociedade com António Pereira, que ainda hoje é sócio de Paulo Cassiano. O sobrinho do fundador conta que até nos pratos que inauguraram o restaurante, em 1976, o seu tio foi “visionário”, trazendo para a ementa o cordon bleu, prato que se tornou icónico do Bota Alta ao qual chamam de “o famoso bife recheado”, que ainda hoje sacia quem ali se senta para comer. “Não se comia em lado nenhum aquele bife, foi inovador na época um restaurante, ainda para mais no Bairro Alto, ter uma especialidade daquelas”, conta.

Paulo foi apanhado na corrente da movida do bairro e acabou por crescer naquele ambiente, onde rapidamente se apaixonou pelo negócio, da mesma maneira que os clientes das mais variadas classes — eram artistas, fadistas, jornalistas, políticos — se afeiçoaram a um restaurante que “pôs a primeira pedra para a mudança de um Bairro Alto em desgraça”, confessa.

“Muita gente diz que somos parecidos… talvez sejamos, tenho de tirar a máscara para provar isso”, brinca. “Mas sim, temos algumas parecenças, e ainda bem, quero ter a perseverança dele para continuar o seu legado do Bota Alta”.

Um restaurante que também é um museu acidental

É difícil, na parafernália decorativa, não reparar nas dezenas de botas espalhadas pelo espaço. Grandes, metálicas e esculturais, ou mais pequenas, miniaturas de toda a espécie, já amontoadas pela dita falta de espaço para exposição. “Já lhes perdi a conta, confesso. Se soubesse as caixas de botas que tenho no armazém, ainda fechadas, não as consigo expor todas”, diz. “As pessoas começaram a alinhar nesta brincadeira de trazer uma botinha, tipo souvenir. Eu acho que o Bota Alta começou como uma tábua rasa e foi sendo completado com os clientes, tanto com as botas como com os quadros”.

Já não sobra espaço para receber mais botas de coleção ©Filipe Amorim/OBSERVADOR

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De facto, o espólio do Bota Alta é talvez mais valioso que o de alguns museus e galerias, pelo menos no que toca a um “ponto de vista emocional”, admite Paulo. O azul forte das paredes já não sobressai no espaço por uma razão muito simples: todas elas estão cobertas de quadros, telas, pedaços de toalhas de mesa de papel emolduradas, recortes de revistas e, claro, de botas.

Paulo conduz-nos para uma moldura onde estão os autógrafos do elenco do “Casino Royal”, o programa humorístico de Herman José. Os nomes de Herman, Ana Bola, Rita Blanco, José Pedro Gomes, Margarida Carpinteiro, Nuno Melo, Filipe Ferrer, Vítor de Sousa, São José Lapa e de Maria Vieira ocupam aquele pedaço de papel deixado em especial a António Cassiano na altura, “por isso é que já está muito gasto”.

Os autógrafos do elenco do Casino Royal emoldurados ©Filipe Amorim/OBSERVADOR

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E por falar em Herman José, Paulo não deixa passar a pequena moldura que guarda uma caricatura de Tony Silva, a icónica personagem do humorista. “Ele tinha jeito para o desenho, e um dia deixou aqui este, onde desenhou o Tony à mesa”, conta. A dedicatória é dirigida a Cassiano, “o grande inventor do Bota Alta”, escreveu Herman em 80 e picos. Logo ao lado, outra relíquia artística, desta vez assinada pelo polémico escultor João Cutileiro, que morreu em janeiro deste ano, cujo legado está pregado ao solo onde o erotismo, a nudez e o amor são temas habituais da sua obra. No Bota Alta, em 1986, deixou claro: “Comi tão bem, obrigada”. Escreveu estas palavras numa noite em que jantou ali bacalhau à brás e costeletas fumadas — fez questão de o escrever também deixando uma figura rabiscada a caneta, muito presente nos desenhos do artista.

“Às vezes penso que isto é um autêntico museu, é inacreditável o quão natural foi este processo de crescimento do restaurante e como guardamos aqui tantas obras de arte, inconscientemente”, reflete. “É importante dizer que isto é tudo dado, eram as pessoas que davam”.

De um lado, um desenho de Herman José e do outro um de João Cutileiro ©Filipe Amorim/oBSERVADOR

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Quem perder algum tempo na descoberta e na contemplação das obras que adornam estas paredes acaba por encontrar um quadro de José de Guimarães, frequentador assíduo do restaurante, outros do escultor Martins Correia e do artista Pedro Leitão que, lembra Paulo, “tem um painel de tapeçaria gigante no hotel Ritz”. Também um desenho de Lagoa Henriques, escultor responsável pela estátua de Fernando Pessoa n’A Brasileira, se pode ver por ali, assim como uma obra do pintor e escultor Gil Teixeira Lopes.

“O meu tio tinha muitos contactos, conhecia muita gente, era uma pessoa querida para muitos”, recorda. “As pessoas já o conheciam, adoravam isto e faziam muitos destes desenhos ou recordações em nome dele, pela amizade e afinidade que tinham ao Bota Alta”.

Um catálogo de tesourinhos: do vinho tinto de John Hurt à timidez de António Variações

À entrada, do lado direito, estava dantes uma mesa — agora retirada para cumprir as distâncias pandémicas — onde se sentava sempre que vinha a Lisboa, sem exceção, o ator britânico John Hurt, que entrou em filmes como Alien ou O Homem Elefante. “Eu na altura era mais novo, mas lembro-me bem que ele não falhava e sentava-se sempre aqui, era a mesa dele, e mais engraçado é que bebia sempre a mesma coisa”, conta Paulo. Um copo, e por vezes vários, de vinho tinto da Carvalho Ribeiro & Ferreira de 1985, “um ano excelente”, comentava o ator sempre que acabava de beber.

Numa das visitas, acabou por desenhar numa toalha de papel um elefante, em representação do filme que protagonizou, acompanhando-o de uma dedicatória ao espaço, agora emoldurada e pregada na parede por cima do lugar onde se sentava.

São muitas as histórias que Paulo viveu ao longo dos anos que por ali passou e continua a passar — ainda que agora haja menos ação. Algumas foi esquecendo, fruto do tempo e da memória que não guarda espaço para 45 anos de vida intensa — e espaço é também coisa que falta nas paredes, onde não sobram centímetros para pregar mais um quadro com um desenho ou assinatura em nome do Bota Alta.

Jorge Rosa (direita) e Artur Bual (esquerda) deixaram também obras de arte da respetiva autoria ©Filipe Amorim/ObBSERVADOR

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“E mais paredes houvesse para podermos pôr tudo o que está guardado”, admite enquanto vai buscar atrás do balcão, escondido numa das gavetas, uma capa de micas que, em nome pomposo, é um autêntico catálogo de memórias. Folheia lentamente cada mica que guarda, frente e verso, diferentes desenhos e pedaços de toalhas de papel rasgadas e assinadas por alguém.

“Não consigo deitar nada fora, mesmo que a pessoa não seja conhecida é um cliente, e um cliente é um amigo”, conta. “Optei por irmos guardando tudo neste catálogo, que também está quase cheio. Há aqui coisas de artistas também, mas o que me toca é a simplicidade, o gesto de alguém nos querer deixar esta recordação”.

“O meu tio também me dizia que o António Variações era muito reservado, que tinha uma persona para algumas ocasiões, mas que estava muito no mundo dele. Não era de excessos sociais. Lembro-me de o ver muitas vezes no Chiado e perto do barbeiro que tinha, na Rua de São José.”
Paulo Cassiano

Numa das folhas está um rabisco de onde se depreende uma figura masculina com uma máquina fotográfica ao pescoço. Não tem uma assinatura famosa, de facto, mas Paulo quis guardar “pela espontaneidade da coisa”, uma vez que foi um cliente que desenhou um senhor que todos os dias ali entrava, religiosamente, apenas para tirar fotografias. “Era uma personagem que vinha cá tirar fotos e um cliente uma noite reparou nisso e deixou o desenho, achei uma piada”.

Entre os desenhos que vai tirando das micas delicadamente — quase como se estivesse a manobrar valiosos manuscritos — aparece-lhe um feito pela banda Doces Cariocas e outro do realizador brasileiro Alberto Graça. “Já passou por aqui tanta gente que admiro, fico sempre espantado como é que estas pessoas vinham aqui parar, mas é uma sensação incrível poder ter estes testemunhos”, admite enquanto tira mais uma assinatura do poeta e argumentista italiano Tonino Guerra. O processo era simples, diz Paulo, que conta que muitas vezes eram já surpreendidos com uma folha rabiscada, mas quando não acontecia e quando sabiam que era alguém mais importante acabavam a dar uma folha branca com uma barra preta onde se lia Bota Alta.

A dedicatória de Alberto Graça e a da banda Blacklist ©Filipe Amorim/OBSERVADOR

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Também António Variações era um frequentador assíduo do Bota Alta. Entrava, comia e saía — quase sempre em direção ao Frágil, a poucos passos dali. “A ideia que as pessoas têm do Variações é muito clara, aquela extravagância incomensurável, a sua figura marcava, isso é óbvio”, lembra Paulo. “Tantas e tantas vezes estava lá fora sentado e via-o passar para o Frágil, outras vezes ele vinha aqui jantar, o meu tio conhecia-o bem”.

E apesar dessa figura extravagante, Paulo lembra-se vagamente da timidez de António Variações. “O meu tio também me dizia que ele era muito reservado, que tinha uma persona para algumas ocasiões, mas que estava muito no mundo dele”, conta. “Em alguns contextos, o Variações não era de excessos sociais. Lembro-me de o ver muitas vezes no Chiado e perto do barbeiro que tinha, na Rua de São José”.

“Eu era novo, mas muitas destas pessoas famosas já tinham alguma idade, infelizmente muitos deles já nem são vivos”, afirma. “A atriz Irene Isidro, que deixou aí umas dedicatórias, lembro-me de a ir buscar a casa de carro, porque ela já não conseguir cá vir sozinha. Mas era sempre um prazer enorme tê-la”.

Paulo lembra também que Jorge Sampaio fez uma grande festa na sala de cima para encerrar a sua campanha eleitoral, era só mais um que por ali aparecia. “A classe política vir aqui era normal, porque podiam estar à vontade. O Bota Alta era um restaurante da moda quando ainda não havia restaurantes da moda”, diz. “Vinha aqui toda a gente mostrar-se desde políticos, músicos, manequins, é este cruzar de todos os públicos que tornavam especial o Bairro Alto”. Também António Vitorino e António Costa, atual primeiro-ministro, eram presenças assíduas no restaurante, sobretudo aos almoços demorados.

“Uma vez tive um cliente aqui que cantava música clássica, depois o Paulo Viana começou a puxar por ele e às tantas tinha também o Melão a cantar um fado, todos em conjunto”, conta. “Lá está, as noites aqui eram incríveis, sobretudo por causa das amizades que se criam. As pessoas ficavam aqui de portas fechadas a beber, a jogar. Depois havia alguns músicos que começavam a cantar à desgarrada”.

"E, de repente, temos o Caetano Veloso a cantar fado da Amália nessa noite. Mais tarde, Caetano voltou, dessa vez com a mãe, Dona Canô, sem a azáfama nem a espontaneidade do antigamente."
Paulo Cassiano

Impossível esquecer também a presença de Caetano Veloso no Bota Alta — um recorte d’A Capital, escrito pelo jornalista Manuel Neto, não deixa que essa noite caia no esquecimento. “Caetano Veloso na fadistice” é o título do artigo que saiu nesse ano que dá conta que eram já três da manhã naquela noite quando começou o regabofe. “O Bota Alta está apinhado de gente. São músicos artistas, pessoal do teatro, do cinema, da música, amantes da noite, curiosos para ver e ouvir Caetano Veloso, ali, e ao vivo, e de certa forma, em privado”, pode ler-se no texto e nessa moldura preciosa de que Paulo se orgulha. O músico brasileiro tinha dado um concerto em Lisboa e tinha acabado a jantar ali, na habitual algazarra do restaurante.

“Foi uma noite memorável. Estava a Maria da Fé, a Ada de Castro, o Rui Veloso, todos presentes nessa noite”, conta “E, de repente, temos o Caetano Veloso a cantar fado da Amália”. “Foi Deus” de Amália Rodrigues foi a música escolhida por Caetano nessa noite que dificilmente numa noite em que o “rei das atuações cantou e cantou bem”, segundo Manuel Neto. Mais tarde Caetano voltou, dessa vez com a mãe, Dona Canô, sem a azáfama nem a espontaneidade do antigamente.

Um jornalista d'A Capital esteve presente nessa noite e fez do fado de Caetano Veloso notícia ©Filipe Amorim/OBSERVADOR

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Numa noite do verão do ano passado, já sem ter de puxar a cassete do tempo muito lá para trás, Paulo lembra-se que teve Ana Moura sentada numa das suas mesas, acompanhada por uma série de pessoas que, às tantas, lhe perguntaram se ninguém ali no restaurante teria uma guitarra, para que se soltasse ali um fado libertador. “Não tínhamos ninguém, mas eu não fiz mais nada, lembrei-me da Tasca do Chico e lá fomos nós”, conta. “Quando chegámos, estava lá a Mariza com a mãe, que acabou por cantar”. De facto, não foi no Bota Alta que o espetáculo se deu, mas Paulo gosta de lembrar que era assim que era antigamente no seu restaurante e em mais alguns ali em redor onde o fado vadio dava alento às ruas e alimentava uma vida boémia insaciável.

Mais recentemente, no dia a seguir ao 45.º aniversário do Bota Alta, Hélder Moutinho, fadista e irmão de Camané, estava à mesa sem se lembrar da data que se tinha acabado de assinalar. O músico trabalhou em tempos no restaurante e nesse dia, depois de alertado por Paulo, lembra as filas intermináveis à porta do espaço pouco antes das 19h, hora em que abriam para jantares. “Enchíamos logo a casa de uma vez, era impressionante o efeito Bota Alta”, admite. “Acabávamos por ser vítimas do nosso sucesso. Ele disse-me que nunca tinha feito tanto dinheiro na vida, e que as gorjetas eram às vezes maiores que o próprio ordenado”.

“São estas coisas que nos fizeram passar de um restaurante da moda para um clássico”, remata.

Bairro Alto: os altos e baixos de um bairro descaracterizado

Quando António abriu o Bota Alta iniciou um novo capítulo na história do Bairro Alto. É certo e sabido que foi o Frágil, de Manuel Reis, aberto em 1982, que foi o ponto de viragem daquela que era na altura uma nova Lisboa, uma cidade que se queria libertar, que procurava a fuga e a transgressão.

“Fomos o ponto de partida de uma nova geração que passou a frequentar o bairro. Lembro-me que isto era o bairro das prostitutas e dos marinheiros, e quando o Bota Alta abre gera-se aqui uma corrente de mudança”, afirma Paulo. Antes também Manuel Reis já tinha aberto uma loja de antiguidades na morada ao lado do restaurante, já a marca território naquele bairro que seria dominado pelos seus negócios — depois do Frágil veio o Pap’Açorda.

“O convívio era inacreditável, porque tu vias todo o tipo de gente ali no Bairro Alto e eram todos iguais, extravagantes e simples, ricos e pobres”, diz. Paulo confessa que o Frágil intensificou a clientela do restaurante, e ele próprio conta que, do lado de fora do Bota Alta, por baixo da janela, havia um pequeno degrau onde se sentava ao longo de muitas noites, num exercício de voyeurismo social de ver passar “as personagens todas” para o Frágil. Rui Reininho e Variações são os primeiros nomes de que se lembra que o marcaram. “As pessoas estavam à frente, mas muito à frente, e eu ficava ali a observar só, tipo janela indiscreta. Eram visionários e conseguiram mudar o estatuto promíscuo do Bairro Alto”.

Mas o bairro sempre sofreu muitos altos e baixos — “demasiados até”. Depois de um movimento de debandada para outros locais da cidade, o Bairro Alto voltou a entrar em decadência. Paulo conta que as pessoas começaram a beber na rua e que o caos se tinha instalado com a tendência para o botellón, que recrimina. Foram dos poucos que ali ficaram e que resistem até hoje, ainda intactos.

Nessa mudança do Bairro Alto, Paulo nota que muitos sítios foram fechando e dando lugar a lojas de conveniência ou “sítios sem qualidade nenhuma”, alegando que o bairro “já não é o que era”.

Mais recentemente, ficou inquietado com toda a questão dos Airbnb que tomaram de assalto Lisboa, com “falta de controlo da autarquia”. “A Câmara Municipal devia ter percebido mais cedo que as políticas que facilitaram os Aribnb e todas essas coisas turísticas acabaram a expulsar as pessoas dos bairros. O Bairro Alto é exemplo. Quem é que vive aqui?”

Os acessos também não estão facilitados apesar das ruas pedonais criadas no início dos anos 2000 — “por azar” a Travessa da Queimada não é uma delas — terem permitido alguma vida no Bairro. “Arrisco-me a dizer que podíamos ter um bairro pedonal, facilitava o negócio de alguma forma, sobretudo agora com a pandemia em que as pessoas procuram esplanadas e nem todos as podem ter”, lamenta.

Sobreviver a uma pandemia? “Tenho esperança sempre, mas está a ser dilacerante para nós”

Naquele dia, depois de um serviço de almoços pouco agitado, Paulo manda recolher os poucos lugares de esplanada que conseguiu ter depois de uma autorização tardia da Câmara Municipal de Lisboa, que chegou depois da temporada veranil do ano passado. “Não é fácil sobreviver a isto. Em relação às medidas que o Governo toma não sei se serão as mais indicadas, percebo que seja difícil de gerir, e é mais fácil falar, mas só quem tem portas abertas sabe o sufoco que é”, desabafa.

Os tempos de pandemia não têm sido nada fáceis para o Bota Alta, pelo contrário, têm sido um “martírio”. O sobrinho Cassiano comprou em 2019 a parte que ainda era do seu primo para poder assumir a gestão do restaurante, mas não o podia ter feito em pior altura já que poucos meses depois acabou por rebentar uma pandemia. “Em março de 2020, eu dizia ao pessoal que não acreditava que isto fosse melhorar e que nunca mais voltaria a ser o que era antes. Isto é que nos deixa desanimados”, diz, afirmando que deviam ser alargados os horários porque as restrições criam “picos de ajuntamentos” e que “por uns levam todos por tabela”.

Paulo queixa-se que há muita gente a vender bebidas para fora e quando fecha a porta consegue ver esse movimento tomar conta do Bairro Alto. “Nós cumprimos as regras e depois há chico-espertos que não o fazem e faturam à conta disso”.

Paulo tem esperança em conseguir continuar com o legado do seu tio e manter aberto o Bota Alta apesar das dificuldades ©Filipe Amorim/oBSERVADOR

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Apesar de tudo, dá graças por todos os clientes que se sentam à mesa do Bota Alta e mantêm vivo o alento desta equipa. Antes da pandemia, a faturação correspondia 80% a mesas estrangeiras, e apenas 20% de portugueses — coisa que agora se inverte tendo o restaurante passado a receber mais clientes nacionais, os de sempre. “Os nossos clientes vêm porque acham que isto não pode acabar e eu só posso agradecer. A continuidade de um sítio assim parte deles também”, admite.

Paulo aponta a questão dos turnos como um problema para dar conta também em tempos de pandemia, porque se dantes era capaz de servir três turnos de jantaradas, agora só faz um e a casa nem sempre enche. As mesas estão todas afastadas para cumprir distâncias e “os clientes já não falam com o vizinho do lado”, a espontaneidade foi substituída pelo medo.

“A incerteza deixa-nos sem rede, sem chão, há três semanas já estávamos num arranque simpático e assim que proibiram os britânicos morreu tudo aqui e os próprios portugueses retraem-se”, contesta. “Tenho esperança sempre, mas está a ser dilacerante para nós”.

“O Bairro Alto foi uma colina que conseguiu sobreviver a um terramoto. O Bota Alta também resiste, estamos de pé”

Já teve mais perto de fechar que agora, ainda assim. No pico da crise de arrendamentos em Lisboa, Paulo conta que tiveram problemas com o senhorio e pensaram em fechar, ou até mudar de localização para um espaço no Príncipe Real, mas “nunca ia ser a mesma coisa”, diz. “Já percebi que vamos morrer aqui no Bairro Alto, temos de resistir. O Bairro Alto foi uma colina que conseguiu sobreviver a um terramoto. O Bota Alta também resiste, estamos de pé”.

"Gostava que o Bota Alta tivesse continuidade. Tenho um filho, mas não acredito que aconteça. É uma vida muito dura, muito ingrata apesar de todo o sucesso que possas ter. Não recomendo a ninguém passe a vida toda nisto.”
Paulo Cassiano

Nessa altura, o alargamento do contrato de arrendamento fez com que conseguissem integrar o programa Lojas Com História em 2018, ainda que hoje continuem à espera da placa que todos os estabelecimentos que integram a rede têm à porta. “Já pensei ir à Feira da Ladra ver se vendem alguma por lá, sinceramente”, ri-se. E traz vantagens ao negócio? “Nem por isso, é mais um estatuto histórico, mas que não se resume a faturação, por isso nesse sentido as vantagens são nenhumas”.

O Bota Alta de hoje mantém-se fiel ao de ontem e ao de 1976, inaugurado por António Cassiano. “Nunca quis ser mais que aquilo que o meu tio aqui criou. Ele deixou um legado e pretendo mantê-lo, até porque é com esse legado que se construiu o bom nome deste restaurante. Para que é que vou estar a inventar?”.

“É preciso conservar memórias, memórias que fazem o passado, o presente e espero que o futuro do Bota Alta.”
Paulo Cassiano

O espaço mantém-se intacto, só o chão foi substituído por deterioração do original, de vez em quando Paulo dá uma pintadela nas paredes azuis, houve um aumento da cozinha há uns anos, mas de resto o Bota Alta ainda é o que era — uma casa portuguesa com pão e vinho sobre a mesa e uma boa resma de histórias para serem contadas. Na ementa continuam o tal bife recheado, o bacalhau real — cuja receita é exatamente a mesma desde o início — e até o peixe frito, um dos ex-líbris do restaurante, dos linguadinhos aos jaquinzinhos. Paulo, que criou pratos do dia uma inovação em relação aos tempos de outrora, conta que também os rosbife à inglesa é um prato de sucesso entre os clientes.

“Nós temos uma cozinha caseira sem truques, não mudamos os nomes dos pratos para sermos mais gourmet ou ter a mania. Não há cá redução de nada, é bacalhau com cebolada. Acabou”, insiste.

A equipa que compõe agora o Bota Alta é a mesma há muitos anos, Paulo faz questão que o seja, e em vez de equipa chama-lhe antes família. O chef Alberto Gomes está na cozinha há 30 e muitos anos, a ajudante Filipa Lopes anda por ali há 13, José Ferreira outros 30 e poucos anos, e Paulo Pirra há mais de 20 anos. “Esta casa faz-lhe também pelas caras. É uma equipa vencedora, ou pelo menos foi até agora, já passámos por muito. Acho fenomenal as pessoas virem cá de facto há mais de 30 anos e conseguirem encontrar aqui as mesmas caras de sempre. Dá a sensação de casa”, diz Paulo, que aponta a necessidade de habituar as pessoas a virem a um sítio que seja consistente e fiel ao original. “É preciso conservar memórias, memórias que fazem o passado, o presente e espero que o futuro do Bota Alta”, admite.

Paulo Cassiano, Alberto Gomes, Paulo Pirra, Filipa Lopes e José Ferreira (da esquerda para a direita) ©Filipe Amorim/OBSERVADOR

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O futuro, para Paulo, não passa por se render a fórmulas fáceis em que muitos sítios no Bairro Alto acabaram por cair. No entanto, o futuro é sempre incerto apesar da esperança que caracteriza o sobrinho Cassiano.

Quando se questiona, passados todos estes anos, o que é que ainda falta fazer, Paulo Cassiano emociona-se — queria ter uma resposta positiva para aquilo que lhe assalta os pensamentos com essa pergunta. “O Bota Alta é um restaurante onde os clientes vêm em criança e voltam mais tarde com os filhos, passa de geração em geração. Passou do meu tio para mim, e gostava que o Bota Alta não morresse comigo. Gostava que tivesse continuidade”, lamenta. “Tenho um filho, mas não acredito que aconteça. É uma vida muito dura, muito ingrata apesar de todo o sucesso que possas ter. Não recomendo a ninguém passe a vida toda nisto”.

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