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Primeiro esboço
Em Outubro de 1961, José Cardoso Pires, na altura a viver com a família numa pitoresca casa de campo em Belas, trabalhava há vários anos num romance sem chegar a uma versão definitiva que o satisfizesse. Título já existia, pelo menos desde 1959. Numa carta enviada ao intelectual angolano Mário Pinto de Andrade, na altura exilado em Paris, Cardoso Pires garantia-lhe que, assim que o acabasse de rever, lhe faria chegar um exemplar de O Hóspede de Job, o seu muito aguardado primeiro romance. Mas Pinto de Andrade e os restantes leitores ainda teriam de esperar mais quatro anos para que o livro visse a luz do dia.
O livro começara a ser escrito em Março de 1953, pouco antes da morte do irmão mais novo de José Cardoso Pires num acidente de aviação, e a sua publicação, com o título de “Hóspede da Mais Negra Providência”, chegou a ser anunciada para esse ano. Entretanto, oito anos tinham passado. É verdade que, nesse intervalo de tempo, o escritor não esteve inactivo. A novela O Anjo Ancorado tinha saído em 1958, aclamada pela crítica e pelo público. Cardoso Pires tinha dirigido a revista “Almanaque” e, em 1960, com a peça O Render dos Heróis, que seria levada à cena cinco anos depois pelo Teatro Moderno de Lisboa, estreara-se como dramaturgo.
Ainda em 1960, publicou um ensaio que ficaria na história da literatura portuguesa. Cartilha do Marialva, estudo sobre o machismo distintamente lusitano e, acima de tudo, sobre o provincianismo estrutural do país -– permitindo assim ao autor atacar de uma só vez o salazarismo e o provincianismo, que via como indissociáveis -– marcou uma geração, inscreveu o tipo social do marialva no imaginário colectivo e tornou a expressão de uso corrente. A obra recuperou Cavaleiro de Oliveira e D. Luís da Cunha, mas foi da obra do escritor francês Roger Vailland que bebeu a principal influência. Em 1958, Cardoso Pires tinha escrito o prefácio da edição portuguesa de Drôle de Jeu, com tradução de Hélder Macedo, e foi ele a sugerir o engenhoso título de Cabra Cega, sugestão aprovada “entusiasticamente” pelo tradutor. A longa introdução à obra de Vailland serviu de moldura para as teses posteriormente desenvolvidas na Cartilha, publicada, tal como o livro do escritor francês, pela Ulisseia, de Joaquim Figueiredo Magalhães, numa edição de luxo, limitada a 250 exemplares, que valeu ao autor a acusação de ser “um escritor para milionários”.
A recepção positiva ao ensaio e as suas ondas de choque no meio literário não foram suficientes para aliviar a pressão sobre o escritor. Pelo contrário, aumentaram a expectativa quanto ao romance. Era preciso um romance. “O” romance. Então, no mês de Outubro de 1961, ainda sem a versão definitiva d’O Hóspede, e na ressaca dessa aventura irrepetível que tinha sido a “Almanaque”, Cardoso Pires escreveu um esboço de 40 páginas de um outro livro: estava criado o embrião de O Delfim. Mas ainda faltavam sete anos para que o romance chegasse às mãos dos leitores. Cardoso Pires, para quem não ter pressa era a sua maior virtude, era escritor de partos prolongados e árduos.
Primeiro romance, grande prémio
Em Março de 1963, a imprensa anunciava que Cardoso Pires celebrara contrato com a editora Arcádia para publicação de um livro de contos e de um romance, O Hóspede de Job, que teria, em simultâneo, edição italiana. À terceira versão saiu finalmente o tão aguardado romance, livro com laivos neo-realistas e que, num certo sentido, parece menos moderno que O Anjo Ancorado. Mesmo assim, em 1964, foi galardoado com o mais importante prémio literário do país, o Camilo Castelo Branco, da Sociedade Portuguesa de Escritores, que nos anos anteriores havia distinguido autores como José Rodrigues Miguéis, Vergílio Ferreira e Maria Judite de Carvalho. O júri, do qual faziam parte Coimbra Martins, Jacinto Prado Coelho, Óscar Lopes e João Gaspar Simões, tomou a decisão por maioria.
Já com uma sólida reputação no meio literário e reconhecido pelo grande público, Cardoso Pires via consagrada a sua obra e reforçado o seu estatuto de grande estrela mediática daquela geração de escritores, exposição alimentada pelo génio comercial de Figueiredo de Magalhães e que desgostava alguns escritores, como o poeta José Gomes Ferreira, que registou no seu diário:
“Para celebrar a 2ª edição de A Cartilha do Marialva, o homem da publicidade da Ulisseia dependurou na barraca da Feira do Livro uma bela foto do Cardoso Pires a fazer festinhas pensativas no dorso dum gato curvo e familiar… Nostalgia de não haver forma de um tigre caber na fotografia de um escritor português!”
Cardoso Pires não saía das revistas. Em Junho de 1964, a jornalista Edite Soeiro entrevistou-o para a “Eva”, revista destinada ao público feminino e da qual ele tinha sido redactor no final da década de 40, tendo publicado aí um dos seus contos preferidos, “Uma Simples Flor nos Teus Cabelos Claros”. Segundo a jornalista, o escritor era “um homem afável, simpático, preciso, respirando coragem viril.” Acima de tudo, não criava barreiras, não falava do alto da sua torre de marfim, embora explicasse o porquê da atitude descontraída com um certo compliquês: “O facto da actividade do escritor exigir dele uma feição extremamente pessoal de interpretar a existência, não justifica certo aparato exótico de que se rodeiam alguns artistas de província. Andar fardado de escritor é tão ridículo como andar fardado de político ou de beatnik”, dizia Cardoso Pires, satisfeito com a sua informalidade.
Falava também sobre o ecletismo das suas preferências musicais –- Ella Fitzgerald, Charlie Parker, Gerry Mulligan, Vivaldi, Mozart, Bartók, António Carlos Jobim, Baden Powell –- e sobre os seus hábitos de escrita –- escrevia em casa, com canetas que escrevessem fino por causa da letra miudinha, sempre com tabaco inglês à mão e garrafas de leite que, nas entrevistas, eram trocadas pelos copos de whisky.
Numa reportagem para a “Flama”, também após a atribuição do prémio, o jornalista Ricardo de Saavedra mostrava a intimidade do escritor, que entretanto regressara a Lisboa, para a casa na Rua São João de Brito que seria a sua morada até ao fim: falava da criada que o tinha recebido à porta, das obras de arte na sala, do retrato do escritor feito pelo grande amigo Júlio Pomar, dos desenhos de Portinari e Querubim Lapa, dos livros no escritório, incluindo uma valiosa edição de 1690 dos Sermões de Padre António Vieira e obras que iam desde clássicos como Gil Vicente, Fernão Mendes Pinto e Cavaleiro de Oliveira aos mestres como Raul Brandão e Aquilino, passando pelos contemporâneos, quer portugueses –- como Carlos de Oliveira e Manuel da Fonseca –- quer estrangeiros, como Durrell, Nabokov, Calvino e Günter Grass.
A angústia do escritor no momento do penalty
No geral, as críticas ao Hóspede de Job foram bastante positivas, embora houvesse alguns reparos mesmo de quem tinha elogiado a obra, como foi o caso de Álvaro Salema, que, numa crítica publicada no “Diário de Lisboa”, dizia não ser possível afirmar “que a expectativa tivesse sido satisfeita: nem esta narrativa vigorosamente realizada, de lances magistrais e desbravadores, é verdadeiramente um romance; nem se apresenta nela a experiência mais actualizada de José Cardoso Pires, na totalidade dos seus recursos de escritor, salvo na depurada e firme construção formal.”
O Hóspede de Job, apesar de todos os méritos, ainda não era o grande romance que o talento inequívoco de Cardoso Pires prometia. Já O Anjo Ancorado tinha sido recebido com uma espécie de euforia reticente, patente na crítica de João Gaspar Simões, um dos primeiros a chamar a atenção para o talento de Cardoso Pires logo em 1949, que continuava à espera da obra que o consagrasse definitivamente “como um dos maiores ficcionistas da sua geração.”
Cardoso Pires não era insensível, às críticas, pelo menos não a todas. Quando Histórias de Amor, o seu segundo livro, foi publicado em 1952, para logo depois ser apreendido pela PIDE, o crítico Mário Dionísio, o homem a quem ele levara em 1947 o manuscrito do seu primeiro livro, apontou aquela que era, a seu ver, a lacuna mais evidente na escrita de Cardoso Pires:
“O que lhe falta é certamente, e apenas, um contacto mais estreito com os escritores da nossa Europa, um convívio mais permanente com os nossos autores portugueses, a convicção de que o figurino americano –- por mais que justamente admiremos os seus escritores e que reconheçamos ter neles aprendido muito, como figurino não nos convém. […] Um escritor com as possibilidades reveladas por Cardoso Pires deve tomar este pedido [desenvolver um gosto tanto quanto possível português, desamericanizar-se], não como uma impertinência, mas como uma tarefa a cumprir, como um objectivo a alcançar, como um dever.”
O certo é que, a partir daí, Cardoso Pires explorou essa via, procurou uma forma de expressão portuguesa, mas que não se confundisse com a retórica do neo-realismo e o que considerava ser o “ruralismo” intrínseco à prosa da generalidade dos escritores de então.
A esse novo estilo, que haveria de desembocar n’O Delfim, Cardoso Pires não chegou sem dificuldades e angústia. A segurança formal patente nos seus livros era feita de persistência, de muito trabalho e rigor, mas também de dúvidas, de hesitações e de insegurança. As personagens, resultado de muitas colagens, de múltiplas fontes, eram construídas ao pormenor. Os lugares físicos tinham direito a uma atenção semelhante, dos nomes aos mapas que ele próprio fazia questão de desenhar.
Vítor Silva Tavares, com quem dirigiu o suplemento & etc. do “Jornal do Fundão” e depois o suplemento literário do “Diário de Lisboa”, contou que raramente falavam sobre os seus livros, mas que, certa vez, ao visitá-lo, reparou numa espécie de organigrama com cores pendurado na parede do escritório. Era o esquema para O Delfim: “O esquema marcava os vários tempos que se vão entrecruzar, os vários personagens, os pontos de não sei quê. Estivemos a falar ao fim e ao cabo de geometria.” Geometria, matemática, jogos de certezas para exorcizar o grande temor de Cardoso Pires, o de publicar um livro fraco.
Em Agosto de 1967, José Gomes Ferreira encontrou-o no café Bocage. O poeta de cabeleira épica disse-lhe que estava toda a gente à espera d’O Delfim. A beber um conhaque, um Cardoso Pires acabrunhado confessou-lhe que não queria “reaparecer com um livro fraco.” Já tinha feito quatro versões, mas ainda sentia que era preciso reescrevê-lo. Até as mudanças físicas eram notórias, e não só por causa da barba que Cardoso Pires entretanto deixara crescer. A escritora e amiga Maria Teresa Horta, numa entrevista que lhe fez para o jornal “A Capital”, semanas antes da publicação d’O Delfim, falava na “cicatriz do cansaço”, num “certo desencanto, uma certa tristeza que não lhe conhecia antes.” Era a factura física do talento, do prefeccionismo e da insegurança.
O nascimento de um livro
“Na madrugada de 12 de Maio de 1966, Tomás Manuel da Palma Bravo, engenheiro sivicultor [sic], ao regressar a casa encontra a mulher afogada na lagoa da sua propriedade… O fulcro do novo romance de José Cardoso Pires é este. Ele põe-nos em presença de um tema inesperado e de um novo herói que, entregue aos seus demónios interiores, procura fugir ao tempo cavalgando um potente “Jaguar”. Romance há anos aguardado, O Delfim ultrapassa os convencionais limites da narração e surpreende pelas propostas da nova lógica narrativa que contém”, rezava o anúncio da Moraes Editores publicado em vários órgãos de imprensa, num esforço para transformar o livro num sucesso editorial e que passou também por uma lançamento de grande escala., um verdadeiro happening para os padrões da Lisboa de então.
Após anos de dolorosa gestação, o romance de Cardoso Pires foi apresentado numa cerimónia mundana e espaventosa, em tudo oposta ao regime monástico, de silêncio, solidão e sofrimento, em que o livro tinha sido composto. Publicado agora pela editora de Alçada Baptista e Pedro Tamen, e onde também tinha responsabilidades editoriais, Cardoso Pires continuava com a lição de Figueiredo de Magalhães bem presente: os livros são para se vender. Eram obras de arte durante o processo de escrita e, a partir daí, produtos comerciais.
Nas notícias sobre a festa de lançamento não havia nenhuma sugestão do caminho árduo percorrido pelo autor para chegar até ali. Era tudo glamour. Convidados, foram mais de uma centena, entre os quais os companheiros de escrita Alexandre O’Neill, Carlos de Oliveira, Maria Teresa Horta e Alves Redol (sem a icónica boina), os jornalistas Afonso Praça, Edite Soeiro, Baptista-Bastos e Maria João Avillez, os pintores João Abel Manta e Sá Nogueira, os homens da rádio Luís Filipe Costa e João Mendes Martins, o banqueiro Cupertino de Miranda, o grande cronista brasileiro Otto Lara Resende, na altura adido cultural da Embaixada do Brasil em Lisboa, o músico José Cid e os actores Raul Solnado, Fernando Gusmão, Carmen Dolores e Rui (ainda não era Ruy) de Carvalho, estes três últimos que tinham levado à cena a peça O Render Dos Heróis três anos antes.
Houve vinho tinto e pastéis de bacalhau para todos. Alçada Baptista saudou os convidados e anunciou a publicação exclusiva das obras de Cardoso Pires que se iniciava com O Delfim. Só que a Moraes, onde o director enterrou uma fortuna, não teria uma vida longa. Fernando Gusmão e Rui de Carvalho leram trechos do romance. Este confessou que não o tinha lido todo e que, por isso, não conseguira “integrar-se no espírito da obra.” A leitura angustiou o actor e, também, o autor, que, ainda assim, conseguiu retirar daí algo positivo. Afinal, a dificuldade na leitura significava uma ruptura com o estilo anterior, o anúncio de uma nova fase, a reinvenção da sua prosa: “Fiquei com a convicção de que é uma prosa estritamente literária e que quando os críticos dizem que tenho uma prosa com muita oratoridade [sic] se verifica neste livro não ser assim. Repare que é muito difícil ler isto. Há toques de humor muito subtis que estão mais no clima da prosa do que propriamente na sua expressão oral”, disse ao “Diário de Lisboa”.
O processo de desamericanização da sua escrita, nos temas e no estilo, estava completo. Os diálogos ágeis e as pinceladas bruscas que davam uma impressão de urgência e vivacidade aos contos dos seus dois primeiros livros e, em certa medida, ao Anjo Ancorado e ao Hóspede, eram aqui substituídos pelas descrições atmosféricas, divagações eruditas, jogos meta-literários e, pela primeira vez, pela narração na primeira pessoa. Maria Teresa Horta questionou o autor sobre as possíveis consequências de uma mudança tão evidente. Não tinha ele medo de chocar os leitores com “um estilo tão inesperado”? Foi a oportunidade para expressar uma ideia antiga e que haveria de repetir muitas vezes, em várias entrevistas –- quem corre atrás dos leitores acaba a levar pedradas:
“A verdade é que quem corre atrás do público nunca se encontra com ele. Não sei se estás de acordo, mas um livro é a trajectória de uma voz pessoal, uma trajectória que vem de outro lado qualquer que não é o do leitor mas que se choca com a dele. Para ser livro tem de contar com a experiência do leitor e com a capacidade que ele também tem de criar lendo. E isto só se consegue se houver personalidade de parte a parte, troca empenhada. Um debate, em certa medida.”
Os leitores aceitaram o repto para o debate: durante quinze semanas, O Delfim ocupou o top de vendas, tornando-se no maior sucesso editorial daquele ano.
O rigor dentro da vertigem
A resposta da crítica e do público não se deveu apenas à máquina de promoção editorial e à notoriedade do autor. O Delfim era o culminar dessa trajectória que se vinha a consolidar desde O Anjo Ancorado. Mário Dionísio, melhor do que ninguém, estava capacitado para a avaliar. A 3 de Julho de 1968, publicou uma extensa recensão n’”A Capital”, onde enumerou os aspectos de continuidade e de novidade do romance no contexto da obra de JCP: libertação total das influências que tinham ameaçado asfixiar os seus primeiros livros (“o ter-se libertado totalmente de certas influências estranhas, nomeadamente americanas, que inicialmente embaraçavam o encontro da sua voz autêntica”); a exploração das construções meta-literárias, que já vinham das notas de rodapé a O Anjo Ancorado (notas que tanto irritaram Gaspar Simões), mas que aqui assumiam uma dimensão completamente nova com a “simulação da realidade” nos livros tão bem inventados que dir-se-iam verdadeiros; a filiação definitiva numa tradição que vinha de Camilo, passava por Aquilino e também alcançava contemporâneos como Carlos de Oliveira (o lado lúdico das notas de rodapé era de Camilo que vinha.
Em Sobre o Lado Esquerdo, de Carlos de Oliveira, Cardoso Pires detectou uma “afinidade inesperada”. A Casa Grande de Romarigães, de Aquilino, era um modelo para O Delfim e para a linhagem dos Palma Bravo, como notou Natália Nunes, num ensaio de Abril de 1970: “A obra de Aquilino que provavelmente mais teria influenciado Cardoso Pires, que teria sido para este como que uma ordinatrix, julgo ser A Casa Grande Romarigães. Desconfio até que o Abade Agostinho Saraiva, autor da ‘Monografia do Termo Gafeira’ pode corresponder a uma transposição da pessoa de escritor do próprio Aquilino Ribeiro, que este seria, na visão crítica de Cardoso Pires, o ‘zelador de antiquitates lusitanae, instalado na sua prosa cuidada’”); e os cortes no plano narrativo (“outra novidade há, e decisiva, que consiste na substituição do estilo sobretudo linear de narração pela adesão a modernos processos de corte, retrocesso, saltos no tempo e no espaço (transição do capítulo III para o IV) assimilados tão de dentro que, em muitos casos, o leitor menos atento talvez não dê por eles.”)
Neste último aspecto, as influências de Cardoso Pires não eram tanto as literárias, como as musicais e as cinematográficas. Numa entrevista vinte anos depois da publicação d’O Delfim, ao “Semanário”, Cardoso Pires diria que o que o interessava mais no cinema era a montagem. Em várias ocasiões referiu a influência dos filmes de Antonioni, do “Chelsea Girls”, de Warhol, e do filme de Alain Resnais, “O Último Ano em Marienbad”, cujo argumento era do Papa do nouveau roman, Alain Robbe-Grillet, o que poderá explicar a associação de Cardoso Pires por alguns críticos a esse movimento, visto que nenhuma outra característica justifica.
Porém, a maior influência viria da música. Era com recurso à música que explicava a inflexão estílistica. A concepção do tempo impunha “o recorte da prosa, o andamento, como na música. Forma e ritmo, isto é, marcação de tempo, são duas condições determinantes inseparáveis. […] Ornette Coleman e o free jazz são um exemplo cimeiro, a lição de uma das maneiras de criar. Tocar ad libitum… Escrever ad libitum, ou seja, sem tempo marcado. Quando ouço isto penso na maravilha que é o rigor dentro da vertigem”, disse na entrevista a Maria Teresa Horta.
Quanto à continuidade, Mário Dionísio, como outros críticos da época, sublinhou que O Delfim era uma espécie de prolongamento da Cartilha por meios ficcionais, sob a égide de Roger Vailland: “A crítica do marialva e da sociedade que o produz e alimenta continua, agora de dentro, no plano da criação.”
Mas também encontrava indícios d’O Delfim em O Anjo Ancorado. Para ele, o narrador de O Delfim era o protagonista de O Anjo Ancorado, dez anos depois. Prova evidente da ligação entre os dois livros é a frase que surge logo no início do Anjo para caracterizar João, o protagonista: “Este ar de terra-a-terra é fácil de perceber-se nalguns infantes da lavoura que gastam a maior parte da vida nas grandes capitais. Nesses, as falas provincianas e o tom com que se dirigem aos criados são coisas cultivadas, uma espécie de marca de estirpe para os diferenciar do resto dos mortais que não têm terras nem passado para lá da cidade.” A descrição assentaria que nem uma luva ao engenheiro, o delfim, Tomás da Palma Bravo.
No “Jornal de Notícias”, Serafim Ferreira também notava que O Delfim era o regresso, “por outro caminho (ou talvez pelo mesmo)”, ao tema do Anjo Ancorado, o que nos parece ser apenas válido para aquela descrição visto que o tema da novela –- um olhar de relance sobre a chamada geração de 45, geração que, com o fim da guerra, esperava o fim da ditadura, mas que, perante o reforço da repressão e a manutenção do estado de coisas, se refugiou num diletantismo moral, se acomodou ao conforto permitido pela classe a que pertencia e, desde então, viveu umas tréguas amargas e inofensivas com o regime –- não é o mesmo de O Delfim, ainda que sobre ambos os livros pairem o odor pútrido de uma sociedade pantanosa e os miasmas da estagnação, numa fase incipiente em O Anjo Ancorado, com o seu quê de revolta e de impaciência, e numa fase já de podridão absoluta – a “agonia de um Portugal tradicionalista” –, n’O Delfim. Foi como se Cardoso Pires, após ter constatado o fracasso da geração de 45 (a sua geração, note-se) e de o ter examinado, tivesse preferido o estudo da sociedade, do mundo e do tempo que o produziram e que permaneciam em vigor, mas já não vigorosos. Houve quem dissesse que, nesse processo de aproximação, o próprio Cardoso Pires –- o escritor burguês malgré lui –- se enamorara do marialvismo.
Serafim, Pacheco e Saramago: o outro lado da crítica
A recepção crítica ao Delfim foi bastante entusiástica. Óscar Lopes afirmou que nenhum ficcionista português contemporâneo escrevia melhor que Cardoso Pires. Ainda mais hiperbólico, Alexandre Pinheiro Torres disse que o livro talvez condensasse “tudo o que de positivo a nossa ficção inventou desde que existe”. O próprio Mário Dionísio, apesar de algumas cautelas, arriscou o veredicto após uma segunda leitura: obra-prima.
Para alguns, estes entusiasmos eram fruto de alguma turvação do raciocínio ou do mais cristalino amiguismo. Foi o caso de Serafim Ferreira que, no “Jornal de Notícias”, não criticou apenas os outros críticos, mas também lançou farpas à máquina que promovera o “lançamento editorial inteligente, bem comandado”. Para o crítico, que fazia parte de uma facção lusa de cultores do nouveau roman, não estava em causa a qualidade da escrita de Cardoso Pires, “que em muitos aspectos nos agrada e satisfaz”, mas o que lhe parecia ser um pastiche sofrível de autores, esses sim, verdadeiramente originais, como Laclos, Hemingway e o bom Vailland, “disfarçad[o] numa couraça de extracção nacional, portuguesa, pseudo-erudita, que se fundamenta numa falsa monografia da Gafeira”.
O Delfim ainda não era “o” romance e, para Serafim, nem se poderia esperar que Cardoso Pires o viesse a escrever algum dia: “Escritor fragmentado, que com dificuldade encadeia os capítulos uns nos outros, Cardoso Pires não conseguiu, quanto a nós, estruturar ainda um verdadeiro romance; existem páginas e páginas onde apenas se vislumbra um discorrer desnecessário à natural narração da história, enchem-se páginas e páginas com descrições que não importam, que somente perturbam o fio narrativo do livro, como se isso fosse mero propósito do autor.” Não havia recurso possível para a sentença: Cardoso Pires estava “longe de ser um “grande” escritor, mesmo à nossa escala portuguesa.”
Serafim Ferreira não foi o único a embirrar com as lateralizações “desnecessárias” do Delfim. Gaspar Simões, como se disse, já tinha desgostado das notas de rodapé do Anjo por cortarem a magia da leitura de ficção, por atrapalharem a naturalidade narrativa a que aludia o crítico do JN. Também Fernando Namora, em carta datada de 4 de Julho de 1968 enviada a Cardoso Pires, louvava a depuração, a segurança, o rigor e a modernidade, mas apresentava uma objecção:
“Algumas vezes, senti (como explicar?) que o ritmo era prejudicado por certas especulações marginais, que, apesar de prenderem sempre pela sua agudeza e interesse, nos conduzem a um confronto com o escritor ágil de livros anteriores”.
Mas houve duas críticas em particular que, por razões diferentes, entraram para a história. Em Outubro de 1968, no número 1476 da “Seara Nova”, saiu uma recensão assinada por um crítico que publicara o seu único romance havia mais de vinte anos, trabalhava na Editora Estúdios Cor e fazia traduções. Naquela altura, destacava-se em Lisboa pela boina à Che Guevara, a bolsa à tiracolo e pela relação que mantinha com a escritora e colunista Isabel da Nóbrega, ex-mulher do crítico João Gaspar Simões. Embora tivesse estabelecido uma certa reputação como crítico, o seu nome era absolutamente secundário no panorama literário em Portugal. Talvez por isso, José Saramago –- assim se chamava o crítico -– desferiu um violento ataque ao livro de Cardoso Pires e à posição deste enquanto intelectual comprometido, pondo em causa a sinceridade das suas propaladas convicções.
Saramago acusava Cardoso Pires de uma certa ambiguidade moral, de não condenar abertamente o marialvismo, representado no livro pelo Engenheiro Tomás Palma Bravo:
“Intromete-se constantemente (pelo menos assim nos parece) uma certa tinta de simpatia, um odor de saudade dos bons tempos antigos, como se em Cardoso Pires lutassem, qual de baixo, qual de cima, a sua opção de intelectual e a sua íntima natureza, numa complicada relação de amor-ódio, responsável pela ambiguidade patente na sua obra.”
Anos depois, quando já ocupava o trono da literatura portuguesa, o futuro Nobel penitenciou-se: “Apesar da minha inexperiência, e tanto quanto sou capaz de recordar, creio não haver cometido grossos erros de apreciação nem injustiças de maior tomo. Salvo o que escrevi sobre O Delfim do José Cardoso Pires: muitas vezes me tenho perguntado onde teria eu nesse momento a cabeça, e não encontro resposta…” Cherchez la femme, diriam alguns que acompanharam o caso de perto.
No entanto, ainda mais contundente que a crítica de Saramago foi a que Luiz Pacheco, amigo de Cardoso Pires dos tempos de liceu, no Camões, publicou no jornal “Notícias”, de Luanda, a 4 de Janeiro de 1969. Os dois tinham-se iniciado quase ao mesmo tempo nas lides literárias, em jornais e numa revista do Instituto Francês, a “Afinidades”, onde faziam crítica e onde Cardoso Pires publicou, em 1946, um dos seus primeiros contos, “A Esta Hora”, que não voltou a ser editado. Pacheco deu explicações aos irmãos mais novos de Cardoso Pires e, segundo contou muitos anos depois, até teria estado noivo da irmã do escritor, Maria de Lurdes. Com o tempo, afastaram-se. Pacheco tornou-se paulatinamente no maldito oficial enquanto Cardoso Pires, sempre profissional, ascendia ao cargo oficioso de “integrado marginal”, como o próprio se definia. Apesar disso, mantiveram algum contacto, geralmente quando Pacheco precisava de dinheiro. Por todas estas razões, Cardoso Pires terá ficado desgostoso, embora não propriamente surpreendido, ao ler a crítica.
Desde a primeira linha, Pacheco deu-lhe um tom chocarreiro e maldoso, condição de maldito oblige, mas não gratuito. Tal como Saramago e Serafim Ferreira, Luiz Pacheco censurava Cardoso Pires por poupar o protagonista ao seu látego moral. Se não havia chicotadas é porque havia enlevo:
“Com efeito, a figura do Engenheiro (o marialva típico) nunca resulta caricata. É aquela que mais se aproxima do leitor, que mais cuidados parece ter merecido a Cardoso Pires. Diríamos, aqui e ali, que o autor (sem bem a consciência disso) se identifica com ela… pelo menos no-la consegue transmitir com um sopro, um calor de humanidade que as outras (pobres títeres!) estão longe de possuir.”
[trailer do filme “O Delfim”, de Fernando Lopes:]
E, ao contrário de outros críticos que sublinharam a continuidade e a coerência d’O Delfim no contexto da sua produção mais recente, na opinião do autor de Comunidade o facto de o livro ser a corporização romanesca das teses da Cartilha não merecia elogios. Pelo contrário, fazia daquele um romance programático porque dependia do quadro ideológico de uma referência exterior, neste caso, de um livro do mesmo autor. Além disso, Pacheco não tinha em grande conta, para usar um eufemismo, o Cardoso Pires ensaísta. Para justificar a sua opinião, aduzia como prova a Cartilha, as colaborações esporádicas com a revista “Vértice” e um malfadado prefácio a Histórias de Amor, unanimente criticado, unanimidade a que nem escapou o próprio autor que, mais tarde, confessou que as palavras não lhe tinham chegado para tantas ideias. De facto, o prefácio era extraordinariamente confuso e até retirava força aos contos do volume, alguns entre o que de melhor Cardoso Pires escreveu. Por essa razão o editor Nelson de Matos não o incluiu numa edição do livro publicada em 2008.
O Voo do Delfim
Algumas destas críticas foram rebatidas por Natália Nunes, quer numa recensão de Abril de 1969, intitulada “O Delfim: uma personagem marialva?”, quer no já referido ensaio de 1970, “Delfim e Serafim.” No entanto, o romance já voava sozinho, muito para lá do alcance das críticas paroquiais. Em Janeiro de 1970, o “Times Literary Supplement” dedicava um quarto de página ao livro, antes sequer de haver tradução inglesa. Era a primeira vez que a publicação destacava um autor português vivo, como noticiaram com orgulho pátrio alguns periódicos da época.
Nesse ano, o livro foi traduzido em Espanha, numa edição da Seix-Barral, e em França, na Gallimard, com tradução de Robert Quemserat, tendo sido considerado um dos livros do ano. Em 1971, foi lançado no Brasil, pela Editora Civilização Brasileira, e obteve um sucesso assinalável junto da crítica e do público, para o que contribuiu a presença do escritor nos lançamentos no Rio e em São Paulo, como se lia numa coluna social no “Correio da Manhã”:
“Há quem tenha ido ontem ao lançamento de O Delfim, porque estava interessado no livro, mas há quem tenha ido também porque estava muito interessado no charme de José Cardoso Pires, escritor.”
Nessa altura, o escritor também já tinha voado. Logo em 1969, tinha partido para Londres, para leccionar Literatura Portuguesa no King’s College. A 18 de Maio de 1971, deu uma conferência sobre o processo de escrita de O Delfim, que originou um ensaio posteriormente incluído no livro E Agora, José? Cardoso Pires também escreveu um guião para uma produção cinematográfica que não avançou. O Delfim só chegaria ao grande ecrã em 2002, já após a morte de Cardoso Pires, num filme do amigo Fernando Lopes, com argumento de Vasco Pulido Valente.
Hoje, cinquenta anos após a publicação, o livro, esse, continua a pairar sobre nós, menos esquecido do que alguns pensam, como retrato lúcido do estertor de uma sociedade com sonhos apodrecidos de um lado e privilégios moribundos do outro.
Bruno Vieira Amaral é crítico literário, tradutor e autor de “As Primeiras Coisas”, vencedor do prémio José Saramago em 2015, e de “Hoje estarás comigo no paraíso”