Quem chega às imediações do Hospital de São João, no Porto, já não vê televisões em direto junto ao portão de hora em hora, filas de pessoas para entrar nas tendas amarelas do INEM ou carros à espera para deixar alguém nas urgências. Sinais que parecem provar que o pico da Covid-19 já terá passado por ali. “Na última semana de março, entre dois doentes com tosse um era Covid, hoje em 100 doentes com tosse apenas um é positivo. A situação é já muito diferente”, garante Nelson Pereira, médico no serviço de urgência.
O primeiro infetado com o novo coronavírus foi registado no São João no dia 2 de março e a partir daí quase tudo mudou. Consultas foram adiadas, cirurgias remarcadas, os acompanhantes passaram a ficar cá fora e quem entra no hospital tem agora que obedecer a um novo ritual: máscara no rosto, mãos desinfetadas e temperatura corporal avaliada. À exceção dos profissionais de saúde, todos respondem a um inquérito sobre possíveis sintomas e, aos poucos, as recomendações vão deixando de ser uma novidade.
Apesar da descida do número de infetados, não há ainda motivos para relaxar. “Não podemos desarmar nada do que temos armado até agora, temos de estar preparados caso o número de infetados volte a subir. Achamos que irá acontecer, pois a doença continua a estar presente na comunidade”, alerta Cristina Marujo, diretora do serviço de urgência.
Dentro dos corredores, mais do que de adaptação, fala-se numa revolução cheia de mudanças que vieram para ficar. Todos os serviços mantêm um circuito exclusivo a doentes Covid-19, foram retiradas cadeiras das salas de espera, colocaram-se placas de acrílico em secretárias e muitos profissionais regressam gradualmente aos seus serviços habituais, ainda sem saberem se este ano vão poder tirar férias.
No centro de ambulatório, as consultas presenciais estão a ser remarcadas a conta gotas, o horário foi alargado para evitar aglomerados e a prioridade é dada a quem chega ao hospital pela primeira vez, bem como aos casos instáveis e mais graves. Também o bloco operatório tenta retomar o seu ritmo original, mas há quem se recuse a ser operado por medo. “As pessoas têm medo, estão convencidas que ao vir ao Hospital de São João aumentam o risco de serem contagiadas. Há cirurgias que ficam sem data fechada precisamente por este receio, algumas delas a precisarem mesmo de serem feitas”, garante António Sousa, diretor do serviço de ortopedia.
Os médicos garantem ser “completamente seguro” ir ao hospital e recordam que “há doentes que não podem mesmo esperar”. O São João vive agora uma “nova normalidade” com uma única certeza: enquanto não houver vacina, a doença não acaba, será preciso viver com ela.
Urgências sem filas, sem papéis e sem cadeiras
Já passava das 9h quando Marco Dias chegou de ambulância às urgências do Hospital de São João para acompanhar a mãe. “Estou à meia hora à espera da minha mãe que tem leucemia, piorou e em princípio ficará aqui.” Natural de Valongo, o destino não é propriamente uma novidade para Marco, uma vez que acompanha a mãe de 72 anos diariamente ao hospital para fazer os tratamentos de quimio. Ainda se lembra da longa fila de pessoas junto às tendas amarelas do INEM, montadas para a triagem de doentes suspeitos do novo coronavírus, e de aguardar numa sala de espera para acompanhantes, encerrada desde o dia 12 de março.
“É difícil fazer este tipo de tratamentos em época Covid, demoram muito mais tempo”, diz ao Observador, cabisbaixo e com um saco na mão com os pertences da mãe. Desta vez, Marco teve mesmo que esperar à porta. “Não me deixaram entrar com ela, estou aqui à porta, mas até me mandaram para a ponta da rampa. Custa-me ficar cá fora e vê-la a entrar sozinha e debilitada.”
Esta é apenas uma das muitas mudanças adotadas no serviço de urgência, dirigido por Cristina Marujo. De farda verde, radio intercomunicador no bolso e auricular no ouvido, para evitar mexer tantas vezes no telemóvel, conta que num dia crítico chegou a receber 600 doentes, o que obrigou a reorganizar o espaço, a pedir horas extra de trabalho e a reforçar uma equipa fixa composta por 18 profissionais. Nelson Pereira, médico no mesmo serviço, fala de uma revolução. “Mais que uma adaptação, houve uma verdadeira revolução. A pandemia trouxe necessidades que não imaginávamos. Vamos ter de aprender a lidar com a flutuação de números, quer de doentes Covid como os não Covid.”
O novo coronavírus levou a que muitos deixassem de procurar as urgências por medo ou receio, uma quebra que Cristina Marujo considera positiva. “Precisávamos de ter alguma margem de manobra para tratar e proteger doentes Covid. Temos noção de que não terão vindo alguns doentes que se calhar deviam ter vindo, sobretudo com patologias crónicas que agudizaram e houve algum receio de se colocarem nestes ambientes.”
Atualmente, acredita que as coisas estão mais calmas, mas diz existirem ainda muitos desafios pela frente. “Vamos tentar voltar a uma normalidade, mas não será a normalidade que tínhamos. Há que manter as áreas dedicadas a doentes suspeitos e a doentes positivos e ao mesmo tempo absorver todos os doentes que não são Covid.” Pelas urgências entram agora uma média de 350 pessoas por dia e além da dor abdominal e das doenças cardíacas e respiratórias, Cristina Marujo identifica um aumento das agudizações das patologias psiquiátricas. “Admitimos que seja uma consequência desta nova realidade.”
Numa altura em que se respira “um pouco melhor”, os profissionais não esquecem a incerteza relativamente ao futuro. “Não podemos desarmar nada do que temos armado até agora. Temos de estar preparados caso o número volte a subir. Achamos que irá acontecer pois a doença continua a estar presente na comunidade.”
Outra das angústias da diretora daquele serviço é redimensionar o espaço, procurando alternativas dentro do próprio hospital para receber doentes não infetados, e redimensionar equipas a longo prazo. “Todas as urgências viviam apinhadas de gente e, por muito organizados que todos nós estivéssemos, isso não pode voltar a acontecer. Já fomos fazendo algumas alterações nas nossas salas, coisas mínimas que fizemos nesta fase, mas temos noção que serão para manter.”
O percurso, que pode ser ajustado a qualquer altura, começa num dos três balcões de atendimento disponíveis. No chão há linhas vermelhas a marcar a distância obrigatória e todos os papéis, incluindo o cartão do cidadão, são agora mostrados pelo vidro, à distância, para evitar contágios. Ao lado, a sala de espera de acompanhantes está vedada com uma fita de segurança e completamente vazia. Foram retiradas algumas cadeiras e ainda não se sabe se irá ser ocupada por doentes ou acompanhantes, tudo dependerá da procura.
Apenas uma dezena de pessoas aguarda pela sua vez para se dirigir à sala de triagem. A porta é automática, vêem-se macas, cadeiras de rodas e botijas de oxigénio, mas também secretárias onde enfermeiras comunicam através de uma placa de acrílico transparente. Ali são avaliados todos os sintomas e decide-se o destino do doente: de um lado os suspeitos de Covid-19, no outro os doentes com outras patologias. No parque de estacionamento, a tenda do INEM foi desativada por falta de procura, mas não será desmontada até ao próximo inverno. Já os 34 contentores de triagem para suspeitos pelo novo coronavírus continuam a funcionar, mas agora apenas durante o dia.
“Na última semana de março, entre dois doentes com tosse um era Covid, hoje em 100 doentes com tosse um é positivo. A situação é já muito diferente, isso descansa-nos no imediato, mas não nos permite relaxar porque não sabemos a evolução. Da mesma maneira que no início o crescimento foi de um dia para outro, ao fim de um dia em vez dos dois casos podemos ter 10, então aí teremos que trabalhar de uma forma diferente”, afirma Nelson Pereira, médico no serviço de urgência.
Sem saber o que irá acontecer “para a semana ou no próximo mês”, o profissional reconhece o cansaço dos colegas e revela que uma das coisas que mais preocupa médicos, enfermeiros e auxiliares é o facto de não saberem quando vão poder descansar. “Se as coisas nos meses de verão se mantiverem assim, podemo-nos libertar progressivamente de forma faseada, mas se daqui a duas semanas existir uma segunda vaga, provavelmente não vai haver férias para ninguém.”
20 consultas por hora, casos prioritários definidos e custos médicos acrescidos
Tal como nas urgências, o ambiente no centro de ambulatório médico do Hospital de São João é calmo e silencioso. Antes do novo coronavírus chegar a Portugal eram realizadas 60 mil consultas em várias especialidades e circulavam por estes corredores cerca de duas mil pessoas todos os dias. “Destas 60 mil, só desmarcamos 10 mil, as restantes mantiveram-se por teleconsulta”, explica Xavier Barreto, coordenador daquele espaço, reforçando a ideia de que este tipo de acompanhamento resolve a maioria dos problemas e vai continuar a existir.
No entanto, Xavier Barreto defende que deve haver mais investimento na teleconsulta. “A vídeochamada não está totalmente disseminada, é necessário mais investimento, meios, equipamentos de hardware e software e até biossensores que nos permitam monitorizar alguns doentes à distância, de forma a receber informação clínica e antecipar determinadas agudizações.”
O responsável pelo centro de ambulatório admite que o Ministério da Saúde “tenha um plano de investimentos para esta área”, mas neste momento o São João está a fazê-lo com recursos próprios, “porque os doentes não podem esperar”.
No final da semana passada, uma equipa de 20 colaboradores remarcou várias consultas e exames, dando prioridade às primeiras consultas, onde o médico não estabeleceu ainda qualquer contacto com o doente, e a consultas de doentes mais instáveis ou com sintomas mais graves. É o caso do filho de Sílvia Andrade, a única sentada na sala de espera. “Vim acompanhar o meu filho que tem de tomar todos os meses uma vacina para a asma e para alergias.”
Durante dois meses, o jovem de 20 anos deixou de tomar esta medicação, “mas felizmente os valores não subiram”, o que lhe permitiu esperar pela chamada telefónica a remarcar o tratamento continuado. “Estou a aguardar que ele termine a segunda dose para voltarmos para casa. Com dificuldades respiratórias, agora todos os cuidados são poucos”, diz Sílvia ao Observador, acrescentando que a próxima visita ao hospital já está marcada para o dia 3 de junho.
O reagendamento da atividade programada não urgente é feito semanalmente, o horário de atendimento estendeu-se até às 20h, eventualmente também aos fins de semana, e os acompanhantes passaram a ficar cá fora. “Isso tem sido um problema, as pessoas insistem em levar os acompanhantes mesmo nos casos em que aparentemente não acrescentam valor à consulta. Existe esse hábito, mas estamos num período em que vamos ter que desconstruir alguns hábitos instalados”, refere Xavier Barreto.
Nas salas de espera há cadeiras sinalizadas com o sinal de proibido para que seja possível cumprir a distância social recomendada pela Direção Geral de Saúde e quem ali chega só poderá ser atendido com uma marcação prévia. “Foram também criadas salas de espera novas, dentro dos corredores, para antecipar alguma sobrecarga e direcionar melhor os doentes para cada serviço”, explica o coordenador do centro de ambulatório médico.
Se no período de contingência apenas circulavam 150 doentes por dia, no regresso ao funcionamento normal de consultas, a zona de ambulatório recebeu 800 doentes no dia 4 de maio e 700 no dia seguinte. “O número que estimamos é este, pois tem sido suficiente para permitir o distanciamento na sala de espera e nos consultórios. Não iremos ultrapassar os 20 doentes por hora”, garante o responsável, acrescentando que esta nova realidade traz “perda de produtividade e custos acrescidos”. “A prestação de cuidados ficou mais cara, já temos um acréscimo de limpeza, de equipamentos médicos e de recursos humanos.”
Xavier Barreto acredita que esta era a altura certa para voltar à normalidade. “Estamos há um mês e meio parados, não podíamos esperar mais. Claro que o risco não vai ser zero, mas não é zero aqui nem na comunidade ou na rua.”
O serviço de cardiologia foi um dos mais afetados pelo adiamento de consultas. “Presumo que algumas pessoas acabaram por falecer quando não tinham que falecer. Tivemos no serviço doentes que chegaram tarde. O enfarte do miocárdio ou o acidente vascular cerebral têm momentos de necessidade absoluta para o doente ser transportado e tratado, como muitos tinham receio ficavam em casa mais horas que o necessário”, explica Filipe Macedo, diretor daquele serviço no Hospital de São João.
Para o profissional, a doença “ainda não acabou”, está apenas “relativamente controlada”, por isso, continua a justificar-se, também aqui, uma área exclusiva para infetados Covid-19. “Temos medo que as pessoas comecem a pensar que a doença está terminada e não está. A doença não terminou, não há vacina, portanto, quantos mais cuidados tivermos com os outros melhor”, defende Filipe Macedo, sublinhando que o país tinha “um excesso de consumo de saúde” e que a situação atual pode “disciplinar” isso mesmo.
Com menos 40% das consultas programadas, o cardiologista viu mais de 30 enfermeiros e assistentes operacionais do seu serviço a migrarem para outras áreas, mas que entretanto já regressaram à casa de partida. “Temos ainda alguns enfermeiros que a garantir testes no Covid drive e fazer consultas a domicílios a doentes infetados.” O Hospital de São João tem até ao momento 85 pessoas internadas com o novo coronavírus, 1.800 a serem seguidos em abulatório e 386 recuperados.
Menos salas no bloco, altas precoces e cirurgias adiadas por quem tem medo do vírus
No bloco operatório central o silêncio nos corredores só é fintado pelo barulho das obras que se fazem ouvir da nova ala pediátrica. Susana Vargas, diretora deste serviço, já está habituada ao ruído, pois no seu gabinete este ambiente sonoro é ainda mais intenso. Vestida a rigor, com uma máscara no rosto, uma touca na cabeça, uma farda de algodão e um par de crocs nos pés, Susana conhece os cantos à casa, afinal há 29 anos que trabalha aqui.
Houve uma diminuição de 40% do volume de cirurgias, mas a especialista garante que a atividade “nunca esteve suspensa”. “A atividade do bloco nunca esteve suspensa, foi restringida porque se fizeram apenas os doentes mais urgentes. Os planos cirúrgicos foram diminuídos, deixamos de trabalhar com toda a capacidade deste bloco e passamos fazer só os doentes oncológicos urgentes e todo o hospital ficou direcionado para a Covid-19.”
No pico de pandemia, “os próprios doentes não quiserem ser operados em ambiente Covid”, por isso o adiamento e a suspensão de cirurgias foi inevitável e acabou por engrossar a lista de espera. “Num período normal temos 12 a 14 salas a funcionar 12 horas por dia. Neste momento, temos seis salas a funcionar de 11 possíveis e na próxima semana espero ter mais uma a operar”, sublinha a diretora clínica, enquanto ao seu lado é retirado um tumor no esófago. Na primeira semana de retoma há 150 cirurgias agendadas, menos 100 do que a média habitual.
O aumento progressivo da capacidade de atividade no bloco depende dos profissionais que regressem a este serviço. “Tinha uma equipa de 74 enfermeiros que passaram a 20, foram deslocados para internamentos com a Covid-19 ou nos cuidados intensivos. São profissionais que vão sair das suas tarefas relacionadas com o vírus para começar intensivamente as suas rotinas, sem nenhum tempo de descaso.”
Outras das condicionantes para o bloco voltar a funcionar a 100% é, segundo Susana Vargas, o comportamento de cada um, fora daquelas portas. “Existe agora a possibilidade de as pessoas saírem de casa, mas se não tiverem consciência que têm de manter algumas restrições, daqui a 15 dias vamos ter os números a aumentar outra vez, o que irá condicionar o nosso trabalho. Se tudo correr como até agora, dentro de um mês penso que tenhamos a capacidade total para oferecer aos doentes não Covid a possibilidade de serem internados.”
António Sousa é diretor do serviço de ortopedia do São João e em seis semanas viu cerca de três mil consultas e mais de 700 cirurgias serem adiadas, num serviço que anualmente realiza 40 mil consultas e perto de cinco mil cirurgias. “Temos normalmente 48 períodos semanais de bloco operatório e durante o período de contingência tivemos menos de oito. Foi uma redução brutal.”
O regresso à normalidade está a ser feito gradualmente, nota-se um ligeiro aumento, ainda longe dos níveis a que estava habituado. A sua ação dentro do bloco pouco mudou. “Nós, cirurgiões, anestesistas e enfermeiros, já estamos habituados a esterilizar tudo. O modo de triagem dos doentes mudou, o nosso dia a dia não”, refere António Sousa.
O cenário altera-se quando opera doentes infetados com o novo coronavírus. Aí o equipamento é diferente, a higienização é redobrada, a equipa médica fica reduzida a sete elementos séniores, mais experientes, e há um tempo máximo para permanecerem dentro do bloco. “Em ortopedia estabeleci como limite máximo entre 1h a 1h30, a partir dessa altura as dificuldades são muito grandes. Em cirurgias prolongadas temos sempre duas equipas preparadas.”
O grande desafio agora, diz, é contrariar a resistência de alguns doentes em regressarem ao hospital. “Está esta a ser a nossa grande dificuldade. As pessoas têm medo, estão convencidas que ao vir ao Hospital de São João aumentam o risco de serem contagiadas. Há cirurgias que ficam sem data fechada precisamente por este receio, algumas delas a precisarem mesmo de serem feitas.”
O diretor do serviço de ortopedia lamenta esta atitude e dá mesmo um exemplo concreto. “Há cinco minutos uma doente de neoplasia, que precisava de fazer uma biópsia, pediu para adiar a cirurgia para depois do verão. Isto não é aceitável, as pessoas têm que confiar, têm que vir, se não vão prejudicar claramente o seu estado de saúde.”
António Sousa não esconde a preocupação e adianta que até as altas estão a ser mais rápidas. “É preciso deixar claro que os circuitos estão perfeitamente definidos, os doentes são testados com 24h a 48h de antecedência, é absolutamente seguro, neste momento, ser internado, fazer uma cirurgia e ter alta. Temos protocolos que nos permitem dar altas mais precoces e colocar os doentes em casa o mais rapidamente possível.”