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© mariamacomk/Instagram

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A herança guineense, a luta contra o cancro e a moda acima de tudo. Morreu a apresentadora Mariama Barbosa

Escapou à guerra civil na Guiné-Bissau e, já em Lisboa, vendeu sandes e foi porteira na noite boémia. Distinguiu-se por tesouradas e "pau pau pau". Aos 47 anos, não resistiu a um tumor no estômago.

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O arranque do mês de fevereiro trouxe más notícias para as mais de 100 mil pessoas que a seguem no Instagram, com a apresentadora e trendsetter Mariama Barbosa a partilhar que, algumas semanas antes, o seu mundo “virou-se ao contrário”. Numa publicação, admitiu ter descoberto um tumor maligno no estômago, estando a ser acompanhada “por uma equipa incrível do IPO de Lisboa”. “Sei que o que aí vem não vai ser fácil, mas também sei que ter fugido de uma guerra no meu país me ensinou a olhar as dificuldades olhos nos olhos e seguir em frente”, escreveu. A notícia e as palavras de força que a acompanharam despertaram uma onda de solidariedade entre os colegas mais e menos conhecidos — de Leonor Poeiras e Júlia Pinheiro a Joana Cruz, que foi diagnosticada com cancro da mama no início de 2021. Antes e depois das mensagens de carinho, Mariama garantiu sempre: “É só o Amor que interessa…”, uma frase repetidas vezes sem conta nas legendas instagramáveis.

A viagem eclética de Mariama começa na Guiné-Bissau e aterra em Lisboa, passa da telefonia para o pequeno ecrã, onde expressões como “coroa”, “chupa limóns” e sobretudo “pau pau pau” a popularizaram. Porque a moda, o estilo ainda mais, sempre foram, neste caso, parte do seu ADN.

Em junho, informava nas suas redes ter sido de novo hospitalizada no Instituto Português de Oncologia. No começo de julho, partilhava vídeo do momento em que se despedida de “algo muito importante”, o seu cabelo. A apresentadora morreu esta noite, uma notícia confirmada ao Observador por fonte da agência onde trabalhava. “É com profundo pesar que a SIC lamenta a morte de Mariama Barbosa. Uma mulher e apresentadora notável, com um talento ímpar na arte de comunicar. Vivemos momentos felizes e inesquecíveis, que ficarão para sempre na memória de todos.”, divulgou a estação em comunicado. “A toda a família e colegas, endereçamos as nossas sentidas condolências. A apresentadora participou em projetos da SIC e SIC Caras como Passadeira Vermelha e Tesouras e Tesouros. Obrigada Mariama”, despedem-se.

A vinda para Portugal e a infância na casa da tia com “uma energia fabulosa”

A herança cultural era presença constante, seja nas expressões omnipresentes em crioulo da Guiné-Bissau que introduzia nas conversas, seja nas referências públicas que fazia vezes sem conta ao país que a viu nascer — na verdade, antes de ser convidada para embaixadora do Turismo e Artesanato da Guiné-Bissau já o era. Mesmo que aos cinco anos tenha deixado a terra natal rumo a Portugal para viver na casa de uma tia em Queluz. Desse dia em concreto pouco se recorda, embora reconhecendo, em entrevista ao podcast Vidas com História, que já tivera mais memórias do derradeiro momento. Mais nítido foi o impacto, a diferença de um país para o outro e o eventual choque cultural, bem como a certeza que já antes tinha andando de avião — de helicóptero até —, embora nunca tivesse voado uma distância tão longa. Foi a mãe que a trouxe para Portugal. O pai ficou para trás. “Por acaso foi a minha mãe, o meu pai ficou em Bissau. Na altura, os meus pais estavam separados e decidiram que seria melhor começar aqui a minha escolaridade. Foi uma decisão para um futuro melhor”, recorda.

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A apresentadora quando tinha entre três e quatro anos (mariamacomk/Instagram)

Não foi fácil vir de um clima quente para um mais frio, mas Mariama adaptou-se. Os tempos seguintes foram passados em casa da tia que, anos antes, educou a sua mãe, pelo menos até ao dia em que, aos 19 anos, saiu de casa para casar. A tia “rigorosa”, com uma “educação à antiga”, é também descrita como “uma mulher muito à frente do seu tempo”, moderna até, dona de uma “energia fabulosa” e capaz de dançar “se for preciso”. Foi a pandemia que a travou, disse Mariama no podcast já citado, caso contrário continuaria a bailar (talvez ao som de ritmos africanos) ad aeternum. A ela, e às pessoas com quem viveu debaixo do mesmo teto, a apresentadora com um olho afinado para a moda assegurava que devia muito da sua personalidade e também a forma como sempre encarou a vida.

Os “piores momentos” em casa da tia foram ditados pelas saudades, mas não há dúvidas que recordava esta fase com gosto — as edições da revista Bravo e os telediscos são ainda imagens do passado que lhe vinham à memória, mais presentes do que eventuais episódios de racismo, diz. Membro de uma família alargada — tem oito irmãos, filhos de outros casamentos de ambos os pais —, nunca gostou muito de estudar, mas era boa aluna, daquelas que “resolvia tudo na aula”. Já na altura do liceu vivia com outra tia, desta vez em Santo António dos Cavaleiros, no município de Loures. Dessa fase, recordava o facto de ser namoradeira (faceta que levou consigo vida afora) e algumas asneiras, embora sem especificar quais: “Numa escala de 0 a 5, cheguei aos 3, à vontade”. Diria ainda: “Continuo a mesma tolinha de sempre”.

"Deixei de estudar aos 17 anos porque achava que era a dona do mundo. (...) Se soubesse o que sei hoje, ainda continuaria a estudar."

A promessa de Paris e os sete anos na Guiné-Bissau: “Fez de mim a pessoa que sou”

Ainda era adolescente quando voltou à Guiné-Bissau com a promessa de ir estudar para Paris, um plano que saiu furado e a deixou, à época, chateada e até envergonhada, um estado de espírito que atribui à falta de maturidade — só mais tarde teria noção que, por vezes, “um passo atrás podem ser cinco à frente”. Paris foi desculpa para voltar à terra natal e castigo dos pais de Mariama após um ano letivo quase perdido. “Quase matei os meus pais, no sentido figurado [quando descobriu a verdade]. Agora, agradeço-lhes e abraço-os mentalmente porque foi numa altura em que não quis estudar mais, achava que a noite era tudo”, chegou a comentar, para depois acrescentar: “Deixei de estudar aos 17 anos porque achava que era a dona do mundo. (…) Se soubesse o que sei hoje, ainda continuaria a estudar.”

O primeiro mês de regresso à Guiné-Bissau foi “ótimo” e marcado por alguma vaidade, com Mariama a desenhar em conversas, sempre que podia, a imagem da Torre Eiffel na linha do horizonte. Só depois o pai contou-lhe que, afinal, ficaria onde estava. Caiu-lhe tudo e chorou durante uma semana, mas a decisão dos pais haveria de fazer sentido. “Estive sete anos na Guiné e foi ótimo, fez de mim a pessoa que sou hoje, percebi que não preciso de muito para ser feliz”, diz no podcast já citado. No país que a viu nascer perdeu, pela última vez, uma oportunidade, quando passou ao lado da hipótese de apresentar notícias num telejornal.

Mariama, em adolescente, em África (mariamacomk/Instagram)

A guerra civil na Guiné-Bissau, que se prolongou de 7 de junho de 1998 a 10 de maio de 1999, fez parte do álbum de memórias: “Tínhamos saído na noite anterior. As discotecas não acabavam às seis da manhã, era impensável, às seis já estava um sol… Estávamos a caminho de casa, deviam ser umas duas e tal, já era tarde, éramos três amigas (…) Saímos, estávamos com os nosso respetivos — que saudades dessa época —, cada um no seu cantinho, a despachar os dez minutos [que tínhamos] antes de irmos dormir e ouvimos assim como se fosse trovoada… Nunca na nossa cabeça acharíamos que seriam tiros e bombas. Comentámos por alto que amanhã ia chover e nem nos percebemos que não era a época das chuvas (…) Quando chego a casa, acho que tinha fechado o olho, o meu pai diz: ‘Vai para casa da tua amiga, porque vêm a minha casa de certeza’. O meu pai é político, então tive de sair sem nada”.

O pai deu-lhe 100 contos para vir para Portugal, dinheiro que foi quase todo ele gasto na Guiné-Bissau. Quando finalmente aterrou neste país, Mariama procurou teto na tia que vivia em Queluz, “a única morada que tinha em mente”. Sobre a guerra civil, dizia que isso muda uma pessoa e dá mais bagagem. “Prepara-nos para outras coisas, para nos levantarmos. Mas não quer dizer que não vergas.”

Mariama na Moda Lisboa (mariamacomk/Instagram)

"Estava na minha vida quando recebo uma mensagem do meu querido Daniel Oliveira a pedir-me uma reunião. Como trabalho em moda e em guarda-roupa, julguei que seria para vestir alguém ou dar uma participação de vez em quando. Quando lá chego ele conta-me que vai haver um novo programa sobre moda para avaliar as pessoas que são figuras públicas com vários convidados”

Os bastidores da moda e a “loira” da rádio

Educada para apreciar as coisas boas da vida, como arte e gastronomia, a queda para a moda, tal como contou no programa da RTP Àfrica “Conversas ao Sul”, pode ter um quê de herança familiar, já que mãe e tio estavam ligados ao sector. O tio “assumidamente gay” foi manequim e sofreu de bullying, mas a maneira e transparência como encarou (e encara) a vida serviu de ferramenta para Mariama se tornar “numa pessoa muito franca, direta e verdadeira”, disse em conversa com a radialista Catarina Miranda. Características essas que põe em prática sempre que é preciso analisar um look — atualmente, ao nome e sobrenome Mariama Barbosa é colada a etiqueta trendsetter.

A experiência no universo da moda, sobretudo por influência maternal, levou-a a ser assistente do designer Dino Alves, com quem esbarrou pela primeira vez no bar Majong, no Bairro Alto, numa década em que a noite era um encontro permanente de personalidades, mas também de culturas e ocasião para “entrevistas informais”. A amizade com o designer partiu de uma crítica, quando Mariama apontou o dedo ao corte de cabelo fracassado de um amigo que encontrou nesse bairro lisboeta — o cabeleireiro de serviço tinha sido Dino Alves, que ouviu os comentários pouco simpáticos da apresentadora. Mas nem por isso as palavras incómodas o incomodaram: “Nunca mais nos largámos”, diz sobre aquele que é o seu “padrinho da moda”.

Mariama no set do programa “Passadeira Vermelha” (mariamacomk/Instagram)

Foi também aderecista da ModaLisboa, evento com o qual tem uma ligação de mais de duas décadas. Nos respetivos bastidores aprendeu de tudo um pouco: vestiu manequins, coseu peças de roupa, passou a ferro, limpou camarins e fez amigos, muitos amigos. Foi, inclusive, modelo “quando quis”, tendo desfilado para a Adidas ou para Filipe Faísca, a título de exemplo. Mariama chegou a aconselhar várias figuras públicas no que à imagem diz respeito.

Do estilo visto ao estilo falado, teve ainda um rubrica de moda na rádio Oxigénio. Sobre esses tempos recorda-se do nervosismo antes de falar ao microfone, da responsabilidade de ser a sua voz a chegar às pessoas e de se fazer passar por uma mulher loira. “No fim [da rubrica] dava sempre uma sugestão de uma festa, o que me apetecesse, e dizia ‘Quando encontrarem uma loira linda e maravilhosa, sou eu, podem vir dar-me um beijinho’”. A rádio, diz, permitia-lhe ser quem quisesse. Mais tarde, a transição para a televisão foi uma surpresa e veio a convite de Daniel Oliveira: “Estava na minha vida quando recebo uma mensagem do meu querido Daniel Oliveira a pedir-me uma reunião. Como trabalho em moda e em guarda-roupa, julguei que seria para vestir alguém ou dar uma participação de vez em quando. Quando lá chego ele conta-me que vai haver um novo programa sobre moda para avaliar as pessoas que são figuras públicas com vários convidados”, recorda Mariama que não percebeu logo que aquela era uma entrevista para se estrear nas lides da apresentação.

"Ninguém é feio, toda a gente é bonita, depende do gosto de cada um."

“Pau pau pau”: passadeiras vermelhas, tesouras e línguas afiadas

Há quem considere as suas análises estilísticas implacáveis. Mariama assegurava que dizia pouco, mas muito, e que ser direta era um “dom” que foi aperfeiçoando com a passagem do tempo. Mas nem por isso se sentia capaz de dizer a alguém que estava mal vestido, preferindo, ao invés, fazer sugestões. No programa “Tesouras e Tesouros”, na SIC Caras, diz-se mais “acutilante” do que no formato “Passadeira Vermelha”, no qual foi presença assídua até ao final do ano passado. Sobre o primeiro dizia que, apesar de ser um programa em que analisava o outfit das pessoas e o estilo, tentava fazê-lo “sempre com muito cuidado”. “Faço-o de uma forma profissional, brincalhona, como sou naturalmente.” E é por lá que vai usando expressões que, de certa forma, já a popularizaram: “chupa limóns” para quando o estilo de alguém lhe passa ao lado e merece uma nega ou “pau pau pau” para quando, sim senhora, o look é digno de elogios (o mesmo para “coroa”).

© mariamacomk/Instagram

“Pau pau pau” chegou a sair da boca de Pedro Abrunhosa, durante um episódio do “5 Para a Meia Noite”, um “sonho tornado realidade” para Mariama, formato onde também admitiu já ter escrito num livro de reclamações, ter provado um space cake e ter andado “à porrada” com o “mauzão da escola” — o pontapé certeiro foi uma “sorte” e deu-lhe desde logo fama no liceu. Mais ninguém se meteu com ela.

Ainda sobre o “Tesouras”, como gosta de abreviar, garante que avalia as pessoas como se fossem suas clientes, sempre de uma forma positiva, e que o maior prazer é “que a moda seja levada a sério”. O programa é um “serviço público”, mas ao fim de mais de cinco anos no ar “ainda há quem não se saiba vestir”.

Mariama Barbosa é ainda relações públicas da empresa Showpress, que representa vários designers e marcas da moda, e autora do livro “Só em Feio Quem Quer”, uma espécie de mantra que vai usando e reciclando ao longo da vida, mas também um convite para que todo e cada um acredite no respetivo potencial — afinal, “a beleza é uma questão de gosto”. “Ninguém é feio, toda a gente é bonita, depende do gosto de cada um”, reitera. Ainda que o mau gosto — que, sim, existe — passe por não se estar “minimamente asseado”. Em outubro do ano passado, Mariama não descartava a ideia de uma segunda publicação em nome próprio: “Acho que sim, é uma das surpresas que quero dar a mim própria”.

(mariamacomk/Instagram)

O seu percurso profissional é, sem dúvida, eclético — antes do sucesso no pequeno ecrã chegou a vender sandes, primeiro no Monumental e depois no Atrium Saldanha, adorou a experiência e “metia-se com toda a gente”. Trabalhou também na discoteca-bar Três Pastorinhos e no Lux Frágil, ambos em Lisboa. Na entrevista no programa “Conversas ao Sul”, lembra como no último “deixava toda a gente entrar, expeto quem cheirasse mal”. E recorda: “Havia um grupo de porteiros reais, nós éramos mais as carinhas que davam as boas vindas e serviam os shots”. Já nos Três Pastorinhos esteve sobretudo no bar. Com a noite, já antes disse, aprendeu muito, sobretudo a não acreditar em tudo o que ouve e que a bebida “transforma as pessoas”. Apesar disso, “a noite é muito bonita”.

A maternidade foi capítulo que arrancou aos 35 anos, com a chegada de Zé Maria, o filho pré-adolescente que é a “melhor parte do dia” e cuja imagem vai populando na conta de Instagram da mãe, a mesma que soma mais de 100 mil seguidores. Ser mãe “não foi pensado”, mas a notícia e o bebé foram recebidos em festa pela família. Ao podcast “Vidas com História”, garantia em maio do ano passado que mantém uma boa relação com o pai do filho e partilhava projetos futuros: desde voltar a estudar, a começar por Comunicação, a um dia abrir uma academia no país onde nasceu. Se dúvidas houvesse, já Mariama as esclareceu: “Tenho 50% da Guiné, 25% de Cabo Verde e 25% de Portugal”.

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