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No dia 24 de março, o Presidente dos Estados Unidos da América alertou o Kremlin para uma resposta da NATO caso a Rússia utilizasse armas químicas na Ucrânia. “A natureza dessa resposta dependerá da natureza da sua utilização“, explicou na altura Joe Biden.
O seu homólogo polaco, Andrzej Duda, afirmou mesmo que Vladimir Putin seria capaz de utilizar armas químicas no conflito ucraniano — um tipo de arma que é proibida desde 1925. Quais os motivos que levaram a essa proibição? Porque razão uma arma química é diferente, por exemplo, de um bombardeamento de uma cidade?
Para perceber a origem da interdição de armas químicas em conflitos, é necessário primeiro tentar compreender o que são estas armas, para que servem, e qual a sua evolução ao longo do tempo.
O que são as armas químicas?
Segundo a Organização para a Proibição de Armas Químicas (da sigla em inglês OPCW), uma arma química é todo e qualquer químico que seja utilizado para causar intencionalmente a morte ou para ferir alguém através das suas propriedades tóxicas.
Na categoria de armas químicas entram tanto os compostos químicos propriamente ditos, como as munições e peças de artilharia utilizadas para libertar os químicos tóxicos. Assim como o equipamento que, em conexão com as munições, é projetado para desencadear um determinado ataque químico.
O gás lacrimogéneo, que tem a designação técnica de “agentes de controlo de motins”, não é considerado uma arma química. Isto porque podem, e devem, apenas produzir irritação nos seres humanos ou incapacitar fisicamente o manifestante de um modo estritamente temporário. O uso de agentes de controlo de motins em táticas de guerrilha, contudo, é proibido pela OPCW.
As armas químicas são de quatro tipos, dependendo do modo como atuam e as áreas do organismo que afetam maioritariamente:
- Os agentes de asfixia são responsáveis por induzir danos ao nível do sistema respiratório. Quando inalados, estes químicos levam os alvéolos, pequenas bolsas de ar que constituem os pulmões, a produzir fluídos que acabam, em última instância, por asfixiar as pessoas afetadas. Deste grupo fazem parte, por exemplo, o cloro e fosgénio (cloreto de carbonilo).
- Os agentes corrosivos, normalmente substâncias oleosas, atuam não só nas vias respiratórias, através da sua inalação, como também através do contacto com os olhos e a pele, causando primeiro irritação agravada da pele e posteriormente o envenenamento das células. São exemplos deste tipo de agente o Sulfato de Mostarda e o Nitrogénio de Mostarda.
- Os agentes sanguíneos são aqueles que, através da inalação, penetram na corrente sanguínea, e que impedem as células de usar ou de transportar oxigénio. Arsénio, cianeto de hidrogénio e cloreto de cianogénio compõem a lista destes agentes.
- E, por último, os agentes neurotóxicos, responsáveis por bloquear a enzima acetilcolinesterase (AChE) no sistema nervoso. Estes químicos atuam no corpo causando uma hiperestimulação dos músculos e das glândulas, o que pode resultar em vómitos, dores de cabeça, visão entorpecida, dificuldade em respirar e, em doses mais elevadas, febre, perda do controlo do corpo e paralisia muscular — incluindo o coração e o diafragma, resultando em morte. O gás sarin entra nesta categoria.
As armas químicas antes da I Grande Guerra
Embora este tipo de armas tenha ficado popular com a I Grande Guerra, através, por exemplo, do uso de gás mostarda contra os soldados que habitavam as trincheiras dos conflitos na Europa, existem já evidências de que vários métodos similares eram já aplicados na Antiguidade.
Em 2009, um investigador da Universidade de Leicester, Simon James, descobriu, de acordo com a Time, provas físicas do uso de armas químicas utilizadas numa batalha na antiga cidade romana de Dura-Europos — cujas ruínas se localizam atualmente na Síria — que se terá desenrolado no ano de 256 D.C.
O arqueólogo britânico descobriu que 20 soldados romanos, cujos restos foram desenterrados no local arqueológico, terão morrido, não de feridas de armas físicas, mas sim pelo uso de gás tóxico.
Na altura da batalha de 256 D. C. os romanos encontravam-se cercados pelo invasores persas. Depois de saberem que os persas estariam a escavar túneis por baixo das muralhas para penetrar na cidade, os romanos escavaram outro túnel que serviria de contra-medida face ao assalto dos persas. Estes, contudo, preparam “uma surpresa desagradável”, segundo explicou Simon James: bombearam para os túneis fumo letal, com a ajuda de braseiros, onde queimaram uma mistura que consistia em cristais de enxofre e uma substância semelhante a alcatrão.
Também em 332 A.C., os fenícios da cidade costeira de Tiro usaram catapultas para lançar areia a arder contra o exército de Alexandre o Grande, conta a Time. Esta arma teria o mesmo efeito que o fósforo branco, um agente químico utilizado nos bombardeamentos de Israel a Gaza.
Durante a Idade Média, era comum, segundo explica o canal História, os cavaleiros medievais utilizarem substâncias como o enxofre para distrair e repelir os inimigos.
O aperfeiçoamento das armas químicas, contudo, deu-se apenas durante o século XIX, com o advento da Revolução Industrial. O aprimoramento deste tipo de armas no final deste século viria a culminar, anos mais tarde, no uso massivo de armas químicas durante a I Guerra Mundial.
Conferências de Haia: a última esperança no virar do século
Com o aproximar de um novo século, em 1899, realizou-se a primeira Conferência da Paz em Haia (Países Baixos). Tanto esta conferência, como a realizada em 1907, explica o Ministério dos Negócios Estrangeiros, tiveram como objetivo “estabelecer mecanismos de resolução pacífica de conflitos e restringir as ações militares, com ênfase na criação de normas multilaterais capazes de regular as relações internacionais em tempos de guerra e paz. “, lê-se no documento do Portal Diplomático.
Embora a primeira Conferência da Paz tenha resultado em avanços importantes na regulação do “tratamento pacífico de conflitos e registado avanços em matéria de direito humanitário”, foi na segunda Conferência da Paz (1907) que se estabeleceram alguns pontos referentes à utilização de armamento em conflitos.
Desta conferência resultaram três medidas:
- a “proibição do lançamento de projéteis e explosivos de balões ou por meio de novos métodos semelhantes”;
- a proibição do “uso de gases asfixiantes e deletérios [corrosivos] lançados através de projéteis que permitissem a sua difusão”;
- e a “proibição do uso de balas cujos estilhaços se espalhassem pelo corpo”.
Esta regulamentação do uso de armas bélicas, nomeadamente as armas químicas, não impediu que tais mecanismos fossem utilizados de uma forma alargada durante a I Guerra Mundial, sendo, à data, o material bélico mais importante que os soldados poderiam utilizar no que diz respeito à capacidade destrutiva em massa de soldados entrincheirados.
I Grande Guerra: o clímax do armamento químico
Com o início da guerra, foram os franceses os primeiros a utilizar as armas químicas no conflito mundial. De facto, em 1912, o bromoacetato de etilo tinha já sito utilizado em França como arma das autoridades contra distúrbios e protestos civis. Foi esta mesma substância química aquela escolhida pelos gauleses para obrigar as tropas alemãs a sair dos bunkers, conta a ABC. Nesta fase da guerra, contudo, o uso de armas químicas era feito de modo irregular e pouco eficaz.
Foi em 1915 — mais precisamente a 22 de abril — que foi utilizada uma arma química de forma massiva na I Guerra Mundial. Na noite de dia 22, durante a Segunda Batalha de Ypres, os alemães descarregaram, em cinco minutos, 168 toneladas de gás cloro nas trincheiras dos aliados. Proveniente de quatro mil cilindros, o gás cloro foi utilizado contra duas divisões francesas e contra tropas britânicas.
Segundo a ABC, o ataque foi desencadeado numa frente de batalha com cerca de seis quilómetros e meio, e teve efeitos devastadores. O chefe da Força Expedicionária Britânica, John French, informou na altura o secretário de Estado de Guerra, Herbert Kitchener, de que “centenas de homens entraram em coma ou morreram“.
Uma das divisões francesas fugiu do local, deixando uma abertura de cerca de 700 metros na frente aliada. Do lado das divisões britânicas, que não tinham máscaras de gás, mais de sete mil soldados ficaram feridos e 1.100 terão morrido asfixiados, conta o canal História. Os soldados alemães, munidos de máscaras de gás, conseguiram capturar dois mil prisioneiros e 51 peças de artilharia.
Também em a 30 de abril de 1916, o exército alemão iniciou outro ataque, com recurso a armas químicas, contra as divisões britânicas. O gás prolongou-se até 10 quilómetros para lá das linhas defensivas britânicas, e as plantas “tornaram-se amarelas por causa do gás, inclusive a um quilómetro da linha da frente”, deu conta um relatório realizado na altura. Desse ataque resultaram 89 soldados mortos e 500 feridos.
Gás Mostarda: a receita que veio alterar toda a guerra em ebulição
A partir de 1917, passou a ser aplicado na I Grande Guerra um gás cujo objetivo era causar o máximo dano ao adversário e que não se limitava apenas a incapacitar quem o respirasse. Enquanto agente corrosivo, o gás mostarda é “extremamente perigoso e o seu contacto ou exposição podem causar queimaduras graves nos olhos, danos oculares permanentes, queimaduras graves na pele e bolhas“, conta o departamento de Saúde de Nova Jersey. Além disso, respirar este agente tóxico “pode irritar os pulmões causando tosse extrema ou, com maior exposição, acumulação de fluídos nos pulmões“.
Assim, mesmo que os soldados utilizassem máscaras de gás para proteger os seus pulmões, o gás mostarda infiltrava-se igualmente nas fardas de lã, e podia inclusive passar a sola das botas dos soldados aliados, explicou a professora de História da Universidade de Nova Hampshire, Marion Dorsey.
Em meados de 1918, o gás mostarda era já apicado pelos dois lados do conflito, tendo sido utilizado pelos aliados numa última tentativa de romper as linhas alemãs em Ypres. Adolf Hitler, na altura um soldado alemão nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial, fez parte do número de tropas alemãs que ficaram temporariamente incapacitadas por causa desta arma química.
Criado sobre a alçada da então nova Sociedade das Nações, o Protocolo de Genebra foi assinado em 1925 com um foco claro: promover a “proibição do uso, na guerra, de gases asfixiantes, tóxicos, de entre outros”, além de “métodos bacteriológicos de guerra”, explica a Nuclear Threat Initiative.
O tratado, contudo, não abordava o fabrico e armazenamento deste tipo de armas, algo que foi apenas mais tarde abordado com a Convenção de Armas Tóxicas e Biológicas, em 1972, e a Convenção de Armas químicas, em 1993.
II Guerra Mundial: o massacre do Zyklon B
Durante a II Grande Guerra, tanto as potências do Eixo como os Aliados excluíram as armas químicas das suas táticas de combate. Apesar da existência de rumores, conta o canal História, de que a Alemanha Nazi estivesse a armazenar gás sarin, esta substância nunca foi utilizada de forma massiva durante o conflito.
“O uso de tais armas foi banido pela opinião geral do humanidade civilizada. Afirmo categoricamente que sob nenhuma circunstância recorreremos ao uso de tais armas [químicas] a não ser que sejam utilizadas primeiro pelos nossos inimigos“, afirmou o então Presidente norte-americano Franklin D. Roosevelt em 1943.
Mas, se por um lado, os soldados na linha da frente foram poupados ao uso desse tipo de armas, o mesmo não se pode dizer da população civil. Nos campos de concentração nazis, palco das maiores atrocidades do Holocausto, o gás Zyklon B — um pesticida industrial fabricado à base de cianeto — ou monóxido de carbono eram usados em larga escala para terminar com a vida de milhões de judeus, homossexuais e ciganos, assim como outros alvos da “visão ariana” de Adolf Hitler.
No pós-II Grande Guerra, as armas químicas foram usadas diversas vezes. Os Estados Unidos da América foram os protagonistas desses abusos cerca de 15 após a II Guerra Mundial.
EUA pintaram de arco-íris os céus (e as florestas) durante a Guerra do Vietname
No Vietname, durante a década de 1960, um arco-íris no céu representava a morte tanto das pessoas, envolvidas ou não na guerra, como das colheitas agrícolas. A arma química mais popular da Guerra do Vietname, o Agente Laranja, fazia parte de todo um leque de substâncias conhecidas como os Herbicidas Arco-íris.
Estas substâncias, um conjunto de agentes químicos nomeados segundo a cor dos barris onde eram armazenados, foram libertadas no Vietname do Sul. Ao todo, mais de 90 milhões de litros destes herbicidas foram lançados durante o início da Operação Ranch Hand. O objetivo era destruir os solos e as colheitas existentes nas florestas vietnamitas.
Para tal, explica o canal História, eram primeiro bombardeadas as florestas onde estavam refugiados os vietcongues com bombas de napalm, ao que se seguia uma chuva de herbicida sobre as densas florestas vietnamitas.
Embora o objetivo desta arma fosse, inicialmente, o de destruir as fontes de abastecimento alimentar das tropas vietcongues, os agentes arco-íris acabaram por revelar-se tóxicos para a população vietnamita. Entre 2,1 e 4,8 milhões de pessoas terão sido atingidas pelos herbicidas, sendo que 65% destas substâncias, de entre elas o Agente Laranja, apresentavam na sua composição dioxinas, que são elementos cancerígenos.
Segundo um relatório realizado pelo Serviço de Pesquisa do Congresso norte-americano em 2012, três milhões de cidadãos vietnamitas continuam a sofrer, atualmente, de problemas de saúde causados pela exposição ao Agente Laranja.
A Guerra na Síria e a negação russa dos ataques químicos
Mais recentemente, durante a guerra civil na Síria, o gás sarin foi utilizado mais de 30 vezes, segundo um relatório das Nações Unidas citado pelo Daily Sabah, pelas tropas de Bashar Assad. O ataque mais letal, realizado no dia 4 de abril de 2017 contra a cidade de Khan Sheikhoun, matou pelo menos 83 civis.
“As forças governamentais continuaram o padrão de utilizar armas químicas contra civis em áreas dominadas pela oposição. No incidente mais grave, a força aérea síria usou gás sarin em Khan Sheikhoun, Idlib, matando dezenas [de pessoas], sendo a maioria mulheres e crianças“, afirmou o relatório, que declarou o ato como um crime de guerra. À data, tinham sido documentados 33 ataques com recurso a armas químicas na guerra civil da Síria.
Em 2013, segundo a ABC, as forças opositoras ao regime de Bashar Assad acusaram as autoridades sírias de terem matado pelo menos 1100 pessoas num ataque realizado na periferia de Damasco com recurso a armas químicas.
Na passada terça-feira, dia 29 de março, a Rússia vetou uma resolução do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas que aumentaria os esforços para apurar responsabilidades em relação aos ataques químicos realizados na Síria.
“Esta é a nona vez que a Rússia protege Assad e a sua equipa de assassinos ao bloquear a ação do Conselho de Segurança”, afirmou Nikki Haley, embaixadora norte-americana nas Nações Unidas. “Ao fazê-lo, a Rússia aliou-se uma vez mais aos ditadores e terroristas que utilizam estas armas.”