No momento de escrever uma biografia da bossa nova, o brasileiro Ruy Castro não podia ter acertado mais no título: chamou-lhe Chega de Saudade, em homenagem à canção de Tom Jobim (autor da música) e Vinicius de Moraes (autor da letra) que João Gilberto não haveria só de tornar famosa, haveria de tornar canónica e embrião de um novo género musical.

É “Chega de Saudade” que vem inevitavelmente à memória quando se pensa em João Gilberto, mas foram muitas as canções que o tornaram uma figura central da música brasileira, tão central que se tornaria mestre e referência de músicos e cantores posteriores como Caetano Veloso ou Chico Buarque.

Chico Buarque, questionado pela Rolling Stone Brasil em 2011 sobre qual foi a pessoa “musicalmente mais importante do seu percurso”, respondia assim: “Tom Jobim. Eu o situaria ao lado do João Gilberto, são os responsáveis pela minha formação. Tom foi um amigo, um parceiro com quem aprendi e de quem fui muito próximo. Vi ele compondo ‘Águas de Março’, ele tinha esse lado meio exibicionista. E o João foi a revelação, o ponto inicial.”

Morreu João Gilberto, o músico que deu o ritmo à bossa nova

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“Chega de Saudade”

1958

Tristeza solar, alegria melancólica: chame-se-lhe o que se quiser. O melhor é não ir ao engano só pelo título: “Chega de Saudade” não é samba nem alegria, não é grito de Ipiranga de felicidade e nova era, é mais um desejo no condicional: tudo estará bem “se ela [pessoa não nomeada] voltar”, até lá resta cantar as sombras para ver se se afastam. A letra e a música é de qualidade suprema, mas a interpretação de João Gilberto na sua versão (que nem foi a primeira, essa foi a de Elizete Cardoso), lançada como single em 1958 e incluída no ano seguinte no álbum de estreia de João Gilberto — com o mesmo título, tal a importância da canção –, é de beleza indiscutível. A bossa nova nascia aqui.

“Desafinado”

1959

Quando apareceu com as primeiras canções, João Gilberto já conhecia bem a história da melodia brasileira, mas a bossa nova seria um mundo inteiramente novo, a meio caminho entre o samba brasileiro e a canção íntima ancorada na guitarra acústica, aqui e ali a piscar o olho ao jazz melódico norte-americano. O dedilhado de guitarra, de grande sensibilidade melódica e com destaque na canção (a intenção tanto era essa que João Gilberto gravava, ao contrário de outros cantautores, com dois microfones, um dos quais  junto ao “violão”, para melhor registar o seu som), era tão tropical quanto delicado, tão leve quanto melancólico. Se em 1958 começou a conquistar o mundo com “Chega de Saudade”, o primeiro disco (com o mesmo título) no ano seguinte reforçá-lo-ia como coqueluche do Rio de Janeiro com fama em São Paulo — e com uma boa dose de atenção nacional. Se o principal single que deu origem ao disco já era conhecido desde o ano anterior, “Desafinado” apareceu em 1959. Composta por Jobim e Newton Mendonça, cantada por João Gilberto, apontava a mira aos “privilegiados” e eruditos que torciam o nariz à bossa-nova e à música que Gilberto fazia e lembrava que “no peito dos desafinados também bate um coração”. Claro que bate.

“Samba de Uma Nota Só”

1960

Logo a abrir o segundo disco de João Gilberto — cujo trio inicial de álbuns é considerado a santíssima trindade da sua discografia, a somar ao disco que gravou posteriormente com o norte-americano Stan Getz –, mais uma canção de Tom Jobim com letra de Newton Mendonça, mais um sucesso. Dois anos depois, Gilberto começava o seu segundo álbum, O Amor, o Sorriso e a Flor, com esta canção. Lição mais importante a retirar aqui, para João Gilberto? Isto da música é como o amor, quando se encontra o tom certo é melhor não o deixarmos fugir. O resto, enfim, são afazeres vários que ajudam a compor o quadro. Aqui Gilberto entraria em cena, romântico como era mas nem por isso ingénuo (só vivido), para nos perguntar: ajudam a compor o quadro, sim senhor, mas sobrevivem sem ele? É melhor ficarmos a pensar nisso.

Dois anos depois, este segundo disco de João Gilberto chegaria aos Estados Unidos, país que lhe serviria de morada e palco musical de excelência. Inesperado, só o foi para os menos atentos, até porque nesse ano de 1962 esta canção que Gilberto cantava  ficaria mundialmente conhecida na versão do disco Jazz Samba, que juntou o saxofonista norte-americano Stan Getz ao guitarrista também norte-americano Charlie Byrd. A bossa nova, irresistível, já era pop nos Estados Unidos. Ou simplesmente, como cantava Caetano Veloso há bem pouco tempo no seu último disco de originais (o magnífico Abraçaço), “a bossa nova é f#da”.

“Coisa Mais Linda”

1961

Incluída no terceiro álbum de João Gilberto, homónimo (João Gilberto) e editado em 1961, deu até título a um documentário sobre a bossa nova, em 2005. Lição 1: não é preciso ser-se muito palavroso, a simplicidade na escrita de canções é subvalorizada. Lição 2: as canções de amor podem ser ridículas como as cartas mas também podem ser magníficas (e ao mesmo tempo). Aqui, o Brasil já estava rendido, os Estados Unidos já estavam atentos, os fãs de música estavam seguramente deliciados. A canção é de Carlos Lyra e Vinicius de Moraes, os arranjos (que tinham ficado a cargo de Jobim neste disco) são pensados ao detalhe, o coração arrebatado era de João Gilberto mas passou a ser de muitos mais.

“Samba da Minha Terra”

1961

Dúvidas ainda existissem sobre o apreço de João Gilberto pelo samba, bastava ouvi-lo a cantar este tema de Dorival Caymmi: “Eu nasci com o samba / No samba me criei / E do danado do samba / Nunca me separei”. Jazz samba, assim lhe chamariam muitos americanos, e bem, mas o samba não se tira nunca da equação da canção. Quem não gostasse de o ouvir, “bom sujeito não é / é ruim da cabeça / ou doente do pé”. Ora embrulhem.

“Insensatez”

1961

Jazzística, incluída no mesmo disco do tema anterior mas esta composta por Jobim e Vinicius de Moraes, é mais um belíssimo reflexo da qualidade do terceiro álbum de João Gilberto, que o confirmava, como se ainda fosse preciso, como monumento nacional, com um culto enorme a segui-lo no Brasil e sobretudo em São Paulo, onde era já adorado.

“The Girl From Ipanema”

1964

Tomados pelos habituais excessos destes momentos lúgubres, apetece dizer: se só desse para ouvir um único disco na vida, ficaríamos bem entregues com Getz/Gilberto, o álbum gravado em 1963 em Nova Iorque e editado no ano seguinte, que juntou o percursor da bossa nova ao saxofonista norte-americano Stan Getz. O disco, indiscutível obra-prima da bossa nova mais jazzística, começava com esta versão de “Garota de Ipanema”,  da grande dupla Tom Jobim-Vinicius de Moraes. A interpretação vocal de Astrud Gilberto, grande cantora brasileira nascida em Salvador, Bahia, filha de mãe brasileira e pai alemão e então mulher de João Gilberto, é um bom começo de conversa. Astrud entrou no disco como convidada e sairia dele como nova estrela com o mundo aos pés. Stan Getz já não precisava de muito mais fama, mas o seu saxofone  a acompanhar o (e dialogar com) o ritmo tropical de Gilberto e companhia só merece um qualificativo: génio. Sinatra, um dos fãs norte-americanos de João Gilberto, também cantaria bem esta versão, claro. Para se aferir da fama de Tom Jobim e João Gilberto por estes tempos, dois anos antes, na sala de espetáculos Carnegie Hall, os dois davam um concerto esgotado — na plateia estavam  Tony Bennett, Peggy Lee, Miles Davis, Dizzy Gillespie…

“Só Danço Samba”

1964

A canção tinha dois anos de existência, era da autoria de Jobim e dificilmente fazia alguém dançar. Bem se podia tentar mas só mesmo com esforço e mesmo assim era o que era. Bom, não importa, claro que era boa mesmo que não tivesse acertado inteiramente no objetivo. Esta versão, gravada no mesmo disco Getz/Gilberto que contou com produção de Creed Taylor, edição da Verve Records, engenharia de som de Phil Ramone e participação de Jobim (ao piano e como autor dos arranjos), Sebastião Neto (baixo) e Milton Banana (bateria), tem méritos jazzísticos evidentes. Foi lançada quando a bossa nova era (mesmo) pop nos Estados Unidos, é uma espécie de música lounge (portanto de elevador) mas em bom e foi um dos trunfos de um disco que venceu quatro prémios Grammy em 1965.

“Corcovado (Quiet Nights of Quiet Stars)”

1964

Todas as canções do disco Getz/Gilberto poderiam estar aqui (a sério, vão lá ouvir “O Grande Amor” ou “Para Machucar Meu Coração”, por exemplo), mas a importância desta “Corcovado (Quiet Nights of Quiet Stars)” é demasiado grande para não merecer menção especial. Para já, a voz de Astrud Gilberto. E é melhor ficarmos por aqui. Para a cantora e então mulher de João Gilberto, foi mais uma ajuda (a somar à versão de “Garota de Ipanema”) para se tornar pop star nos EUA. Para a carreira do então marido, também fica como momento áureo. A partir daqui, a relação do músico e cantor com os EUA estreitou-se, passando a residir longas temporadas neste país.

“Eu Vim da Bahia”

1973

Incluída naquele que é quase consensualmente considerado o melhor álbum de João Gilberto nos anos 1970 — homónimo e editado em 1973 –, “Eu Vim da Bahia” está aqui como poderiam estar outras, nomeadamente a versão de “Águas de Março”, de Tom Jobim (não está porque Elis Regina a tornou sua quando a cantou no ano seguinte), “Undiú” — uma bela aventura de João Gilberto na composição musical — ou a versão de “Avarandado”, de Caetano Veloso. Esta é de Gilberto Gil, mas ninguém a canta como João Gilberto, que também a tornou sua neste disco, considerado mais descarnado e ao mesmo tempo mais hipnótico do que os jazz sambas dos anos 1960.

“Estate”

1977

Consta que a ouviu pela primeira vez ainda nos anos 1960, numa bôite italiana onde passou uma temporada artística. Gravou-a na década seguinte, lançando-a em 1977, no disco Amoroso. Já não exatamente um bolero, difícil de caracterizar, esta versão do tema de Bruno Martino (que viria a ser interpretada, por exemplo, por Chet Baker) fica como um dos bons marcos de João Gilberto da segunda metade da década de 1970. O mérito? A interpretação do cantor de “Chega de Saudade” e os arranjos orquestrados de Claus Ogerman.

“Aquarela do Brasil”

1981

Já regressado ao Brasil para morar em definitivo no país, depois de muitos anos a divulgar a bossa nova e a sua música nos EUA, João Gilberto gravou um dos seus melhores álbuns no início da década de 1980. Chamou-lhe simplesmente, de certeza nada inocentemente, Brasil. No álbum colaborativo em que teve a companhia de Caetano Veloso, Gilberto Gil e Maria Bethânia, e em que Gilberto funcionou como líder tanto quanto possível com parceiros deste gabarito, está condensada parte da história musical do Brasil das décadas imediatamente anteriores. A versão do tema de Ary Barroso, que também foi cantado por Frank Sinatra, Carmen Miranda e Elis Regina (entre outros), serve de arranque ao disco. Bossa nova no seu melhor, com samba no coração.

“Malaga”

1991

De volta aos boleros. A canção era antiga: fora lançada pelo cantor e compositor italiano Fred Bongusto em 1963. É provável que João Gilberto a tivesse ouvido, nesses anos 1960, na “bôite” Bussola, em Viareggio, Itália, onde passou uma temporada como artista residente . Foi aí também que conheceu o bolero “Estate” — como já referido –, pelo que não seria de estranhar se tivesse dado conta da existência de “Malaga” durante essa estadia em Itália. Gilberto gravaria uma bela versão deste bolero no disco João, de 1991, em que também cantou temas em outras línguas estrangeiras como o inglês, com uma versão de Cole Porter, e o francês, com uma interpretação de um tema de Charles Trenet. Os arranjos de orquestra, acrescentados à versão inicialmente “voz e guitarra” de João Gilberto, foram delineados por Clare Fischer.