Como é que se reconstrói um país devastado pela guerra? Como é que se varre o entulho de uma terra bombardeada em contínuo e se confia a tarefa de reerguer uma sociedade a um povo que não foi apenas oprimido por um ditador; a Alemanha cooptou Hitler, esteve entusiasticamente com ele em vários momentos, pelo que a história dos seus sobreviventes enovela uma complicada teia de cúmplices e vítimas, opressores e oprimidos, que tiveram de reconstruir o país na altura em que o vento da história mudou.
Mais, não se trata apenas da coexistência entre velhos nazis agora envergonhados e resistentes divididos entre o júbilo e a raiva por verem os cúmplices do Reich passearem livremente pela nova Alemanha; a escassez é tal, a fome, o frio, o caos, que se instala uma espécie de luta hobbesiana, em que mesmo esses que resistiram à desordem hitleriana são capazes de roubar, perseguir, e do que quer que lhes permita ganhar um prato de comida.
A história da reconstrução da Alemanha é, ao mesmo tempo, um dos maiores exemplos de cooperação e de divisão. As mesmas pessoas que se viam obrigadas a trabalhar juntas e a sarar feridas para reconstruírem as suas casas, que trabalharam com afinco na limpeza do entulho ou na reabilitação dos acessos, ocuparam e roubaram aqueles com quem, horas, dias ou semanas antes, eram capazes das maiores generosidades.
Do ponto de vista psicológico, trata-se então de uma altura riquíssima. Um momento fundacional minado pelo desalento, a desesperança misturada com o alívio, a vontade de vingança refreada pelo cansaço da guerra, tudo isto faz daqueles anos um tempo capaz de nos dar uma combinação invulgar das paixões humanas mais fortes.
No entanto, não é só do ponto de vista psicológico que este é um tempo incomum. Trata-se também de um terreno, do ponto de vista intelectual, muito fértil, como todos aqueles que surgem a seguir a um grande terramoto. Que fazer com uma terra destruída? Construí-la de novo, igual, condenando-a a ser uma imitação de si própria, uma mentira? Dresden deve surgir com o esplendor de outrora, quase como se quiséssemos esquecer que foi destruída e aquilo que levou ao seu bombardeamento? O lugar da memória, no pensamento sobre a reconstrução, é muito complexo, sobretudo quando uma memória tende a apagar outra. A Alemanha pode ser reconstruída sem marca do nazismo, apagando-o, ou devem ser deixadas as marcas do III Reich, quando essas marcas apagam aquilo que existia? Ou seja, não se trata apenas de apagar ou não apagar a História; trata-se de escolher que História deve subsistir no património, quando uma elimina outra.
A grande tensão que se encontra em A Hora dos Lobos, o problema que atravessa todas as histórias de um quotidiano atípico, é precisamente esta. Quando se reconstrói um país, está-se a fazer uma escolha sobre o passado. O problema é que este passado pode ser visto como aquilo que um passado mais recente destruiu, ou como aquilo que levou a esse passado recente. O modo de um povo lidar com o seu próprio crime coletivo é complexo, sobretudo quando se baseia nestes termos. Foi o orgulho nacional que levou ao delírio nazi; mas é esse mesmo delírio que impede, agora, o orgulho nacional. Como é que se constrói uma identidade a partir daqui? Como é que se constrói uma identidade a partir da culpa, como é que há um futuro construído a partir de tantas pessoas tão comprometidas com aquilo que agora se rejeita?
O modo como a Alemanha lidou com os escombros da Segunda Guerra torna-se um caso importante porque não diz respeito apenas a ela própria. Aquilo que está em causa na reconstrução é aquilo que surge depois de qualquer guerra civil, ou de qualquer revolução, ou de qualquer mudança política. Como é que surge a mudança a partir dos mesmos agentes, do mesmo povo? Depurando e abrindo mais feridas, ou deixando cozer o ressentimento? A opção alemã é particularmente delicada porquanto, todos os analistas o dizem, a situação em causa surge, também ela, de um modo de lidar com uma ferida análoga. Ou seja, depois de o desastre da Primeira Grande Guerra provocar a ascensão do nazismo, o ponto capital da política alemã tem de estar em não fazer surgir nada do mesmo género. O que Harald Jahner nota é que esse processo também se fez a partir de uma operação cosmética que, embora possa ter algo de injusto – ao esquecer o envolvimento de tantos naquilo que se passou – permite, de alguma maneira, ir lavando o ar.
Daí que esta seja uma História organizada a partir das grandes imagens da reconstrução, mostrando também aquilo que há nelas de romântico ou idealizado. Uma História destas tem sempre um lado etnográfico forte – porque se trata de um tipo de vida atípico, que vê surgir profissões, processos de organização social, etc, incomuns e que vale a pena conhecer. O que Jahner mostra é que esses modos de vida também foram aproveitados para dar um novo carácter à Alemanha, e que por isso não escaparam a uma pintura publicitária.
O livro está organizado à volta de alguns dos principais problemas do pós-guerra: a limpeza dos escombros, o regresso dos soldados, o mercado negro – isto do ponto de vista social – e a reforma monetária e o reposicionamento estratégico da Alemanha, do ponto de vista político.
Ou seja, está em causa, por um lado, a vida quotidiana das pessoas, o surgimento de pequenos negócios num país sem infraestruturas, o crime por necessidade em tempos de escassez, os bodes expiatórios transformados em trabalhadores forçados, mas também as reformas que permitiram recuperar a indústria alemã – nomeadamente a indústria automóvel, com o famoso carocha – e que devolveram o país ao palco dos decisores internacionais.
Ora, neste aspeto, a Guerra Fria teve um papel crucial, não só porque os Estados Unidos precisavam de um aliado forte no seio da Europa, capaz de criar, pela sua importância económica e posição geográfica, uma zona de influência estratégica, como pelo facto de se dar, dentro da própria Alemanha, com a divisão, uma competição visível entre dois modelos económicos. Isto é, numa Alemanha a começar a partir do zero, o país era uma montra ideal para aferir a real valia dos modelos económicos em disputa. A indústria estava a começar do zero, a agricultura a começar do zero, pelo que não se podiam alegar condicionantes históricos que atrasassem ou desenvolvessem um dos lados – era precisamente uma corrida em que ambos partiam do mesmo nada, e que se tornou por isso um foco de investimento necessário.
Uma Europa com uma Alemanha voltada para o socialismo invalidaria, do ponto de vista Americano, a existência de um bloco Ocidental, pelo que o destino da Alemanha se torna crucial no desenrolar da Guerra Fria. França e Itália têm partidos comunistas fortes, Portugal e Espanha não são o modelo democrático que os Estados Unidos pretendem apresentar, pelo que a Alemanha se torna a chave mais importante do bloco, e o ponto a partir do qual se tecem as grandes alianças europeias. Esta necessidade junta-se à tese de que o apoio é a única forma de aplacar o ressentimento que se seguiu à primeira guerra mundial, tornando assim a reconstrução da Alemanha um tópico essencial, não só do próprio país, mas de todo o bloco Ocidental.
O livro de Jahner é também, assim, uma tentativa de travar uma imagem romântica, de um país reconstruído a partir de baixo, num exemplo de boa-vontade e de expiação voluntária da culpa. Não, trata-se de um exemplo de cooperação entre as nações, numa espécie de apologia indireta do mundo macroeconómico e do mercado-livre. É claro que nem todos os países têm as circunstâncias da Alemanha do pós-guerra e que o exemplo alemão não é o de um mercado-livre, mas sim de um esforço voluntário, estatal (de vários estados, aliás) para ganhar e reforçar um aliado. Ainda assim, moldou o imaginário do capitalismo e transformou o país numa das grandes experiências sociais do nosso tempo. Se há obsessão contemporânea com a prosperidade de um país, muito dela se deve à imagem trazida pela Alemanha, de que a criação de riqueza e segurança sara feridas que à partida pareciam impossíveis de curar. Se elas reabrirão, isso é outra História, que não está contada em A Hora dos Lobos.