[Especial publicado a 9 de abril, altura em que diversos analistas ouvidos pelo Observador previam que a invasão da região de Donbass começasse dentro de poucas semanas. Volodymyr Zelensky anunciou a 18 de abril que a invasão do Leste do país começou.]
É preciso traçar uma linha entre Kharkhiv e Mariupol. Não tem de ser à régua, não tem de ser um eixo de simetria, pode ir serpenteando, seguindo as curvas das estradas ucranianas. Essa linha, de mais de 400 quilómetros, pode passar por Sloviansk, onde se espera o próximo grande ataque dos russos, e pode passar por Kramatorsk, onde um ataque a uma estação de comboios fez dezenas de mortos no 44.º dia de guerra.
Essa linha traçada sobre o mapa da Ucrânia é a que os analistas acreditam estar a ser desenhada na cabeça de Vladimir Putin, o Presidente russo, enquanto ordena às suas tropas que retirem de Kiev e arredores. Ao mesmo tempo, o reposicionamento de tropas russas, e a paragem na Bielorrúsia para se abastecerem, marca a segunda fase da guerra que será inaugurada, acredita a comunidade internacional, com um ataque monumental no Leste do país.
Donbass, a região onde ficam os oblast (regiões) de Lugansk e de Donetsk, vive sem paz desde 2014, ano em que a Crimeia foi anexada pela Federação Russa. Desde então, ucranianos e separatistas pró-russos encontram-se em lados opostos das trincheiras e o conflito naquele local fez mais de 14 mil mortos. Ao longo de 8 anos, os separatistas ocuparam um terço do território de Donbass, sendo essa fatia de terra liderada pelas auto-proclamadas Repúblicas Populares de Donetsk e Lugansk, reconhecidas em fevereiro deste ano como Estados legítimos pela Rússia.
O movimento de pinça, o clássico que Sun Tzu não recomenda
Foi aperfeiçoado pelos nazis durante a Segunda Guerra Mundial. O movimento de pinça, ou duplo envolvimento, é a manobra militar que os russos estarão a preparar para cercar as tropas ucranianas na região de Donbass. Em que consiste? O exército atacante, neste caso o russo, enfrenta o inimigo pela frente, nos dois flancos e na retaguarda, como Michael Clarke, analista militar já tinha explicado ao Observador.
Curiosamente, o general chinês Sun Tzu (544-496 a.C.), autor do tratado militar “A Arte da Guerra”, era contra a sua aplicação, por considerar ser mais provável que o exército conseguisse retirar antes de o cerco estar completo.
Num dos seus comentários televisivos mais recentes, Michael Clarke, consultor especializado do Comité de Defesa da Câmara dos Comuns desde 1997, volta a insistir que essa será a estratégia usada, no momento em que o conflito se desloca para Leste. “Temos certeza bastante absoluta de que os russos querem traçar uma linha de Kharkhiv até Mariupol e apanhar todos os ucranianos que estejam do lado errado da linha. E se puderem, vão fazê-lo.”
O problema? A Rússia ainda não tem força militar para o fazer e, nesta frase, o “ainda” é para ser sublinhado. “Como ainda não conseguem fazer isso, estão a centrar-se em Izyum, que é o centro da resistência ucraniana e já o é há 8 anos. É lá que está a maior parte das suas forças. Também estão a ameaçar Kramatorsk e Sloviansk, que são muito próximos, onde os moradores já estão a ser retirados.”
A intervenção de Michael Clarke, na Sky News, parece quase premonitória. As declarações foram feitas no 40.º dia de guerra. A morte de dezenas de civis na estação de comboios de Kramatorsk aconteceu quatro dias depois.
O analista prossegue: “As tropas russas estão a reposicionar-se para criar esta linha, que não será bem uma linha, mas o objetivo será esse. A batalha pelo Leste está prestes a acontecer, mas talvez não seja tão fácil quanto os russos imaginam, porque eles não são tão móveis quanto acham.”
Outro problema que terão de enfrentar é a primavera. À medida que a neve derrete, o solo amolece, o que inviabiliza algumas rotas para carros blindados e tanques. “Vão ter de seguir por estradas, e não espalhados pelo país, e os ucranianos vão atacá-los. E eles vão estar a tentar atacar o melhor das forças ucranianas e que estão ali há 8 anos. Será uma batalha e tanto que se avizinha”, conclui Clarke, antigo diretor-geral do Royal United Services Institute (RUSI), think tank britânico de defesa e segurança.
EUA, UE, NATO: o grande ataque está perto (com data de fim, mas sem data de início)
John Kirby disse-o. Jens Stoltenberg disse-o. Emmanuel Macron disse-o. Os dois primeiros, o porta-voz do Pentágono e o secretário geral da NATO, falaram na quinta-feira. O Presidente francês falou no dia seguinte, 44.º dia da guerra. Em comum, os seus discursos têm o mesmo aviso: um grande ataque vai acontecer na região de Donbass. Macron, inclusive, datou o momento em que os russos querem decretar vitória total sobre a região, da qual controlam atualmente cerca de metade do território: 9 de maio. Nesse dia comemora-se o Dia da Vitória Soviética, quando os russos celebram a capitulação da Alemanha nazi na Segunda Guerra Mundial.
Quanto ao início, ninguém arrisca uma data e entre analistas militares tanto há quem acredite que vai acontecer em poucos dias como há quem defenda que são precisas semanas para os russos estarem a postos para uma grande ofensiva.
“Eles vão concentrar todos os esforços em Donbass, vamos enfrentar situações muito difíceis nas próximas semanas”, frisou Macron numa entrevista à rádio francesa RTL. “Na Rússia, o 9 de maio é um dia nacional com paradas militares importantes e é quase certo que, para o Presidente Putin, o 9 de maio deve ser um dia de vitória.”
As dúvidas do Pentágono são outras. Se a vitória for russa, o que se seguirá na cabeça de Putin? “Não está claro se é esse o objetivo final — se quer ocupar Donbass e ficar por aí”, explicou John Kirby, em entrevista ao canal norte-americano CNBC. Ou se, em alternativa, a Rússia quer usar uma potencial vitória para, nas negociações diplomáticas, chegar ao acordo de paz que mais lhe convém. Há uma terceira opção: “Ficar com esse território para tentar entrar ainda mais no Leste da Ucrânia. Não é claro. Mas vimos sinais claros de que vão dar prioridade a essa zona do país.”
Mesmo que não os tivessem visto, o Kremlin não esconde que, agora, Donbass é o troféu que quer levar para casa. A 25 de março, 30.º dia da guerra, o ministro da Defesa russo afirmou que a primeira fase da “operação especial militar” estava “praticamente concluída”. Sergey Rudskoy acrescentou que a “libertação completa” de Donbass passa a ser prioridade.
O porta-voz do Pentágono fez ainda questão de lembrar que os russos, até à data, não conseguiram tomar Mariupol, cidade que se mantém cercada e sob intensos bombardeamentos, e que é fundamental para a estratégia russa ter uma linha de terra que ligue a Rússia à Crimeia, facilitando rotação de tropas e abastecimentos. De resto, Kirby partilha a ideia de Michael Clarke de que não é absolutamente segura uma vitória russa. “Pensamos que eles pensam que terão mais sucesso ali, mas estão a lutar na região há 8 anos e não há sinal de que os ucranianos vão desistir.”
Ao jornal The Times, um dos analistas do Instituto Internacional de Estudos Estratégicos (IISS), um think thank com sede em Londres, defendeu que Kiev precisa de armas enviadas pelo Ocidente para poder vencer. “A Ucrânia pode alcançar uma vitória árdua contra a Rússia em Donbass com armas substanciais do Ocidente”, defendeu Franz-Stefan Gady. Na lista de material enviado deveriam constar “tanques de batalha, veículos de combate de infantaria, sistemas de defesa aérea de médio alcance, artilharia, munições ociosas [drones suicidas] e apoio contínuo dos serviços secretos”.
Contactado pelo Observador, o IISS remeteu para as páginas oficiais de Twitter dos seus analistas, já que nesta fase não conseguem dar resposta a todos os pedidos da imprensa.
Ukraine can achieve a hard fought victory of attrition against Russia in the Donbas with substantial arms from the West.
Ukraine needs battle tanks, infantry fighting vehicles, mid-range air defence systems, artillery, loitering munitions and continuous intelligence support.
— Franz-Stefan Gady (@HoansSolo) April 7, 2022
Para vencer a segunda fase da guerra são precisas armas, armas, armas
Na véspera da reunião da NATO, o seu secretário-geral deixava no ar o que se podia esperar do encontro de quinta-feira. Da parte dos ucranianos, o pedido tinha sido feito com clareza, pela voz de Dmytro Kuleba: armas, armas, armas. O chefe da diplomacia ucraniana esteve presente na reunião da Aliança Atlântica e saiu com o que pretendia: a promessa de a NATO armar os soldados ucranianos até aos dentes.
“Estamos a ver uma nova fase da guerra, porque a Rússia está a sair não apenas de Kiev, mas também da maior parte do Norte, ou, pelo menos, a reduzir significativamente a sua presença. Porque eles falharam. O Presidente Putin não conseguiu atingir os objetivos que estabeleceu para a sua operação militar”, disse Jens Stoltenberg, na quinta-feira, 7 de abril, 43.º dia da guerra.
E lembrou aquilo que todos os analistas e comentadores repetem em uníssono: o objetivo era tomar Kiev em poucos dias e esse plano falhou. “Ainda não foi capaz de tomar Kiev nem muitas outras cidades do Norte. E está a reposicionar muitas dessas tropas do Norte para a Bielorrússia, para o Leste, para a Rússia.” Nesses locais, as forças russas irão preparar-se com material e militares renovados para regressar em força ao cenário de guerra.
“Esperamos uma nova ofensiva russa muito concentrada em Donbass, para tentar ocupar e tomar toda a região. Essa também é a mesma área onde a Ucrânia tem a maioria de suas forças armadas”, frisou Stoltenberg, que recorda que juntar tudo o que é necessário leva tempo. “Tudo isso levará algum tempo, o reposicionamento das tropas russas levará algum tempo, algumas semanas, mas depois disso temos medo de ver uma grande ofensiva russa em Donbass com o objetivo de tomar Donbass. Nessa janela, é extremamente importante que os Aliados da NATO forneçam apoio. Assim, somos capazes de rearmar e de reabastecer as forças ucranianas.”
No dia seguinte, o mesmo Stoltenberg confirmou o que era esperado. A Aliança Atlântica aprovou o envio de um novo pacote de ajuda à Ucrânia. O que faz parte dele? O secretário-geral da NATO preferiu não levantar muito o véu. O argumento é de que militarmente não é prudente dizer em voz alta o tipo de armamento que vai ser usado. Os russos podem ouvir.
Por que motivo o Donbass e onde vão atacar a seguir?
O antigo piloto da Força Aérea britânica Sean Bell faz a pergunta e lança a resposta. “Por que motivo Donbass? Há três razões principais”, disse em declarações à Sky News, passando de imediato a explicá-las. “A Rússia investiu durante os últimos dez anos numa insurgência naquela região e estará ansiosa para concluí-la. Em segundo lugar, todas as linhas de abastecimento serão muito mais fáceis de trazer da Rússia — sejam tropas, combustível, armas, material”, argumentou, lembrando que a coluna militar de 64 quilómetros, que ficou parada nas estradas ucranianas, não teria esse problema ali.
O último ponto tem a ver com o poder aéreo. “Ainda não vimos o poder aéreo russo muito envolvido no combate na Ucrânia. E isso deve-se ao facto de que a Ucrânia têm conseguido abatê-los com sucesso. Mas, mais perto da fronteira russa, estarão mais confiantes e veremos mais poder aéreo dos russos a ser utilizado”, argumentou Sean Bell que para Mariupol não vê solução à vista. “Vão continuar as lutas. A situação está muito sombria.”
Falando ao Observador sobre o futuro da batalha, Michael Clarke é cauteloso. “Os russos têm mais números que podem trazer e têm mais poder de fogo — mais artilharia, mais rockets, e por aí fora. Se eles forem fazer isto bem, o facto de os ucranianos se terem saído tão bem no primeiro mês não quer necessariamente dizer que os russos vão perder no terreno. Eles podem atolar a Ucrânia com forças militares”, diz, se continuarem com o conflito durante vários meses.
Para Sean Bell, o que ainda não está na mira dos russos é Odessa, a cidade banhada pelo Mar Negro e onde, a 3 de abril, uma refinaria foi atingida por mísseis — essa terá sido uma mensagem estratégica para lembrar o Ocidente de que a cidade está ao seu alcance. “Odessa ainda será uma ambição, mas não no curto prazo”, diz, lembrando que está demasiado longe da zona onde os russos estão focados no momento. “Mas vamos ser muito claros: militarmente, os russos são dez vezes maiores, se focarem os seus esforços num pequeno pedaço de terra isso tornará a vida muito difícil para as forças ucranianas. Acho que ainda estamos para ver todo o poderio russo nesta batalha. Até que os objetivos de Putin sejam alcançados não vamos ver negociações significativas.”
Quanto ao primeiro alvo provável, a resposta vem do think tank Institute for the Study of the War, que diariamente disponibiliza um relatório sobre o estado das operações. A conclusão do dia 6 de abril, 42.º dia da guerra, é que os russos irão tomar Sloviansk. “Os esforços das forças russas que avançam a partir de Izyum para capturar Sloviansk serão provavelmente a próxima batalha crucial da guerra na Ucrânia”, lê-se no documento, onde os analistas preveem que esse conflito vá acontecer nos próximos dias.
Izium está na província de Kharkiv, que faz fronteira com a região de Donbass, onde se encontra Sloviansk, cidade com 100 mil habitantes. Kramatorsk, onde os russos bombardearam uma estação de comboios a partir da qual refugiados procuravam abandonar o país, fica a 25 quilómetros de Sloviansk.
Outro dado importante, no relatório seguinte, do 43.º dia, é que os analistas daquele think thank acreditam que “as forças russas provavelmente completarão a captura de Mariupol nos próximos dias” — os russos já reclamaram tê-lo feito, mas o ISW não conseguiu verificar essa informação. Em contrapartida, é “improvável que as unidades danificadas redistribuídas do nordeste da Ucrânia permitam um avanço russo bem-sucedido”, e as forças ucranianas repeliram os contínuos ataques russos de Izyum a sudeste em direção a Slovyansk e Barvinkove. “As sanções ocidentais provavelmente interromperam com sucesso a base militar-industrial da Rússia.”
Como pode a Ucrânia defender-se?
Um dos analistas militares que explica o movimento de pinça é o norte-americano Mark Hertling, antigo comandante do Exército dos EUA. No Twitter, onde diariamente analisa os desenvolvimentos estratégicos da guerra, frisa que os russos irão reforçar as linhas da frente, e os flancos no Norte e no Sul, esperando realizar ataques frontais em Donbass enquanto cercam as forças ucranianas a norte e a sul.
O problema? A forma como a Rússia atua quando encontra um ponto fraco: “A sua doutrina é usar artilharia para aumentar o ponto fraco e, em seguida, enviar muitas forças de movimento rápido (isto é, tanques), segurando os flancos com outras forças”, tal como os alemães fizeram na Segunda Guerra Mundial com o blitzkrieg.
What's going on now in eastern Ukraine? A new ????
Many reports suggest RU has shifted their next fight to the Donbas.
What can we expect to see in the coming days/weeks/months?
Here's a thread of my "guesses." 1/17
— Mark Hertling (@MarkHertling) April 6, 2022
“Mas, pelo que tenho visto, a Rússia não treinou nem praticou este tipo de manobra”, diz o analista militar, frisando que não só as suas capacidades de executá-la são fracas como nunca tentaram o movimento de pinça durante os oito anos de conflito em Donbass.
O que deve a Ucrânia fazer? “Ser forte em todos os lugares (difícil de fazer); ter uma boa reserva (possível, mas também difícil); ser capaz de se mover rapidamente para combater qualquer ataque”, defende o militar. Para Mark Hertling, este terceiro ponto é fundamental: as tropas ucranianas têm de encontrar formas de ser muito móveis nesta nova fase da guerra.
“Primeiro, vão precisar de informações muito boas sobre para onde se deslocam as forças russas”, explica. Nesse momento, os tanques serão fundamentais. “A Ucrânia continuará a contar com armas tecnologicamente avançadas para fechar quaisquer lacunas na linha de frente e concentrar-se em derrotar a artilharia da Rússia.”
Além disso, termina o analista Mark Hertling, a Ucrânia não pode descurar a defesa da sua linha de abastecimento, enquanto tenta interferir com a logística russa. “A Ucrânia deve ainda lidar com assistência civil, catalogar crimes de guerra, combater ataques na Crimeia, Mykolaiv, Kharkiv, etc. Donbass será uma batalha de atrito. A Ucrânia está preparada para isso.”