A linha é “ténue” entre a utilização das subvenções públicas dos partidos dentro da lei ou fora dela. Quando um partido contrata um assessor para a Assembleia da República, através dos dinheiros públicos que lhe são atribuídos para esse efeito, não pode usufruir dos seus serviços no partido. Mas a regra é seguida à risca pelos partidos ou há desvios que podem colocar em causa a legalidade?
As buscas em casa de Rui Rio, de funcionários do PSD e em sedes do partido chamaram a atenção para um tema que não é novo, mas que ganha dimensão quando há suspeitas de peculato e abuso de poder a assombrarem um dos maiores partidos portugueses. A lei mudou há poucos anos, a forma de fiscalização também e este caso pode ter aberto a porta a uma atenção redobrada a dinheiros públicos que têm uma finalidade e que podem estar a ser usados para outra. Aliás, foi o próprio Rui Rio a dizer que acontece em todos os partidos.
Quais as diferentes subvenções recebidas pelos partidos?
Os partidos políticos têm direito a três subvenções públicas — eleitorais, partidárias e parlamentares — e todas são atribuídas consoante o número de votos obtido nas eleições. Se as subvenções para a campanha apenas são pagas em atos eleitorais e consoante os gastos do partido (podem receber menos do que gastaram e se a subvenção for superior o Estado apenas cobre os gastos), as duas últimas são cruciais para o dia a dia dos partidos e dos grupos parlamentares, já que, à exceção de donativos, angariações e quotas, é com o dinheiro das subvenções que os partidos sobrevivem.
O que é que o partido pode fazer com cada um dos valores que recebe?
A lei do financiamento dos partidos esclarece que a subvenção atribuída aos partidos por via da Assembleia da República, ou seja, a cada grupo parlamentar, deputado único ou deputado não-inscrito, serve para “encargos de assessoria aos deputados, para a atividade política e partidária em que participem e para outras despesas de funcionamento” — à primeira vista é fácil de perceber: tudo o que sirva para apoio do trabalho dos deputados pode entrar nas despesas.
Além desse valor, os partidos recebem a subvenção partidária que pode ser utilizada para despesas extra Parlamento, ainda que com o mesmo fim. Por outras palavras: o partido pode contratar um assessor em nome próprio para não utilizar os meios atribuídos à Assembleia da República.
Há clareza na distinção entre as várias subvenções?
Margarida Salema, antiga presidente da Entidade das Contas e Financiamentos Políticos, considera que “sempre houve alguma confusão entre as verbas usadas para assessoria parlamentar, destinadas apenas aos deputados, e as verbas destinadas aos partidos”. A especialista alerta para o facto de serem “subvenções diferentes”, “calculadas de modo diferente”, “com fins diferentes” e que chegaram até a ser fiscalizadas por órgãos de controlo distintos. “As verbas provenientes da Assembleia da República para encargos de assessoria parlamentar estavam previstas na lei sobre organização e funcionamento da AR, enquanto as subvenções estavam previstas na lei sobre financiamento partidário”, diz Margarida Salema.
Ou seja, só depois de a lei ter sido alterada em 2018 é que a Entidade das Contas passou a ter a responsabilidade desta pasta e “este problema nunca foi analisado no prisma que está a ser analisado agora”, já que quem fiscalizada era o Tribunal de Contas por se tratar de uma verba atribuída dentro da Assembleia da República.
No livro que publicou sobre o tema, intitulado “O financiamento político e o direito”, Margarida Salema explica que tanto no âmbito do parlamento nacional, como no plano dos parlamentos regionais, “a jurisprudência do Tribunal Constitucional sempre foi clara na necessidade da destrinça entre o financiamento destinado à atividade e aos fins próprios dos partidos políticos e as subvenções atribuídas às representações parlamentares destinadas à atividade parlamentar”. Apesar de reconhecer que pode ser “difícil estabelecer uma fronteira exata e precisa entre essas atividades”, a antiga presidente da Entidade das Contas e Financiamentos Políticos sublinha que “essa destrinça deve ser sempre feita”.
Um partido pode ter um assessor parlamentar a trabalhar para o partido?
Aos olhos da lei a resposta seria simples: não. “Um partido pode ter quem quiser a trabalhar para ele, mas tem de ser por conta do partido e cumprir a lei dos partidos políticos”, pelo que para cumprir esta premissa de forma legal não seria possível um assessor parlamentar cumprir funções ou realizar tarefas cujo foco é o partido e não o Parlamento. A questão está na “linha ténue” que separa as duas realidades. Margarida Salema reconhece que as dúvidas se multiplicam com casos práticos, desde logo nos momentos em que x pessoa se desloca, acompanhado pelo assessor, para uma determinada atividade em que “não se percebe muito bem se está a agir como líder, dirigente de uma distrital ou como deputado”.
Haveria formas de contornar o problema de forma legal: o assessor podia ter um contrato de part time como parlamentar e outro com o partido, bem como poderia ter um contrato como assessor do Parlamento e passar recibos ao partido sempre que fizesse um serviço extra e sem ligação ao gabinete na Assembleia da República.
“O problema está quando uma verba que é para um efeito é usada para outro efeito totalmente distante, que uma verba parlamentar que serve para assessores de deputados e de grupos parlamentares sirva para pagar funcionários do partido. O que acontece é que o partido não tem dinheiro para pagar ao funcionário e usa o dinheiro da subvenção parlamentar, mete a pessoa como assessor e paga-lhe através dessa verba quando afinal o que a pessoa faz é trabalhar para o partido”, esclarece a especialista, que considera fundamental que haja “transparência” no uso de dinheiros públicos.
O caso que envolve Rio pode constituir uma ilegalidade?
Margarida Salema não tem conhecimento do caso em específico, mas deixa claro que se se confirmassem as suspeitas que foram noticiadas isso representaria uma “ilegalidade flagrante” por se tratar de um “desvio de verbas”.
Tem de haver “muita atenção” em tudo o que diz respeito a um assessor parlamentar porque na opinião da professora “há uma grande tendência para não se perceber que quando estamos a falar de financiamentos públicos todas estas atividades têm de estar muito claramente discriminadas, têm de constar das contas de forma muitíssimo detalhada e têm de ser objetos de controlo por parte dos órgãos de fiscalização”.
Que crimes podem estar em causa?
As buscas feitas às sedes do PSD e a várias residências foram justificadas com a investigação de “factos suscetíveis de integrar a prática de crimes de responsabilidade de titulares de cargos políticos, de peculato e de abuso de poderes”. Até ao momento não se conhece a existência de arguidos no caso e o próprio Hugo Carneiro, ex-secretário-geral do PSD e atual deputado, assegurou que não lhe foi “indiciado que ia ser constituído arguido”.
Neste momento Rui Rio já não é deputado e não tem imunidade parlamentar, ao contrário de Hugo Carneiro que se mostrou disponível para “prestar contas” caso o Ministério Público peça o levantamento desse estatuto que possui enquanto deputado.
Há exemplos de partidos que incumpriram a lei ao usarem o dinheiro da subvenção do Parlamento para uso de gestão partidária?
A lei mudou em 2018 e antes dessa altura não era possível a Entidade de Contas analisar estes casos em específico, já que era o Tribunal de Contas quem fiscalizava a questão das verbas atribuídas à Assembleia da República. Com as alterações estas passaram a estar integradas na lei de financiamento dos partidos.
Tal como considera que deve ser sempre feita uma destrinça entre a atribuição e uso das subvenções, a autora do livro “O financiamento político e o direito”, também defende que “tal fronteira marcaria a diferença entre a própria competência do Tribunal Constitucional para apreciar as contas dos partidos e a do Tribunal de Contas de avaliação da conta da Assembleia da República ou das Assembleias Legislativas Regionais”.
Ou seja: até ao momento não há conhecimento de casos idênticos ao que está alegadamente em causa no PSD e em que tenha havido uma condenação. Ainda assim, Margarida Salema recorda que nos tempos em que esteve a liderar a Entidade de Contas foram “pagos milhões de euros em coimas” por incumprimentos nos financiamentos dos partidos.
Com ou sem condenação, ainda antes dos resultados da investigação, Rui Rio usou como arma de defesa um ataque generalizado que não o inocenta: “Está em causa uma prática na Assembleia, dos partidos todos, as pessoas podem considerar bem ou mal.”
O que mudou na lei em 2018?
Margarida Salema destaca aquilo que considera ser “três passos atrás”: “Retirar ao Tribunal de Contas a competência de fiscalização; retirar à Entidade das Contas o poder de emitir regulamentos e pegar nos processos de fiscalização das contas que estavam em curso declará-los prescritos.” Aos olhos da antiga presidente da Entidade das Contas e Financiamentos Políticos, Portugal estava desde o início do século XXI “a seguir num caminho de democratização, transparência, clareza, qualidade da democracia representativa partidária” e a alteração da lei inverteu-o.
Para defender a tese, a especialista escuda-se em relatórios do GRECO (Grupo de Estados Contra a Corrupção), em que foi feita “a análise da legislação portuguesa sobre financiamento público” e o organismo “retirou todas as recomendações e observações a partir de 2016” por considerar que não havia “qualquer observação” a fazer ao percurso que estava a ser feito a nível nacional.
“O GRECO tinha dito que Portugal estava a seguir no bom caminho na matéria da transparência do financiamento partidário, Portugal ficou sem nenhuma recomendação de alteração legislativa a fazer e mal terminou a auditoria, eu saí da Entidade das Contas e o legislador alterou a lei completa e totalmente”, sublinha, justificando que se tratou de uma “tentativa de mascarar o problema que havia nos Açores e na Madeira”.
Margarida Salema explica que estava em causa um esquema em que “os encargos parlamentares eram objeto de acordos escritos entre os grupos parlamentares e os partidos em que o dinheiro recebido era transferido e usado pelo partido”. O caso foi “objeto de fiscalização do TdC anos a fio, sempre disse que era uma prática ilegal”, mas acabou por conseguir a solução na lei aprovada: “O que fez foi que essas subvenções que eram ilegais e inconstitucionais foram introduzidas na lei do financiamento partidário. Ou seja, as subvenções que eram ilegais estão legalizadas com esta lei.”
Como foram as buscas e qual o intuito?
Na manhã do dia 12 de julho, 100 inspetores da Polícia Judiciária foram mobilizados para um caso que investiga a alegada prática dos crimes de peculato e abuso de poder. Os alvos das buscas foram Rui Rio, ex-presidente do PSD, Hugo Carneiro, ex-secretário-geral adjunto do partido e atual deputado, e mais 12 funcionários do PSD e ex-assessores do grupo parlamentar do partido, nomeadamente Florbela Guedes, ex-assessora de Rio, foram alvo de buscas domiciliárias.
Telemóveis e discos rígidos de computadores foram apreendidos e os alvos das buscas foram obrigados a dar as respetivas passwords e pins para que os investigadores acedessem às clouds e copiassem todos os ficheiros eletrónicos relevantes para a investigação.
Em causa estão suspeitas de que, para reduzir os custos salariais, o PSD colocou funcionários na lista do pessoal de apoio ao grupo parlamentar e o DIAP de Lisboa e a PJ entendem que os mesmos não realizavam qualquer trabalho parlamentar, o que vai contra a lei.
Que resposta deu o partido?
O PSD foi parco nas palavras, porém confirmou que a sede nacional e a sede distrital do Porto foram objeto de buscas por parte da Polícia Judiciária. Além de referir que os factos em investigação remontam ao período de 2018 a 2021, o partido agora liderado por Luís Montenegro assegurou que prestará “toda a colaboração” solicitada pelas autoridades judiciais.
Como reagiu Rui Rio?
Da varanda e em jeito de ironia, foi assim que o ex-presidente do PSD resolveu dirigir-se pela primeira vez aos jornalistas que estavam à porta da casa que foi alvo de buscas. “Vão descobrir os crimes todos que eu cometi, estou lixado”, atirou o social-democrata entre sorrisos e afirmações sarcásticas. “Vou daqui para o médico porque me estou a sentir muito mal. Muito mal. Estou cheio de medo”, foi acrescentando em resposta às perguntas, assegurado estar “muito calmo e sereno”.
Mais tarde, no carro quando regressava a casa, disse que a investigação foi feita para “afetar” a sua imagem, uma vez que as práticas de que a sua gestão é suspeita são feitas por “todos os partidos”. “Está em causa uma prática na Assembleia, dos partidos todos, as pessoas podem considerar bem ou mal”, indicou, aos jornalistas.
“Tudo isto é para afetar a minha imagem, se afeta ou não, não sei”, reiterou. Rui Rio acredita que se trata de uma investigação “para produzir uma notícia” e assegura que não está a preparar um regresso à vida política: “Estou fora da política, não conto voltar a política de certeza, estou farto disto. Nem percebo do que é que andam à procura.”
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O que pensam os apoiantes de Rui Rio?
Rioistas tranquilos destacam falhas da justiça e normalizam atos para conter “bomba” das buscas
Se a manhã foi marcada pela revolta e incertezas iniciais (as notícias caíram como uma “bomba atómica”), o núcleo duro de Rui Rio está agora tranquilo. A ala rioista optou por criticar a ação da Polícia Judiciária e do Ministério Público, insistiu que este é um ataque ad hominem e normalizou os factos que são, até agora, conhecidos. Apesar de considerarem que o caso será arquivado em breve, os apoiantes do ex-presidente do PSD também admitem que este processo “tornou a hipótese de uma candidatura a Belém impossível”.
Se Rui Rio desvalorizou a questão que alegadamente o torna suspeito, os rioistas desdobram-se em justificações e, em declarações ao Observador, não só explicaram que os funcionários que estavam naquela situação também eram remunerados, parcialmente, pelo PSD, como reiteraram que esta é uma prática “corriqueira nos partidos”.