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Quando o tema é o kompromat, não importa se é verdade o que se vê. Nem se é mentira. O que importa é que se vê. E importa que alguém (tanto melhor se for da oposição política ou tão somente um crítico do regime e dos líderes deste) seja denegrido quando o conteúdo é tornado público.
No entanto, o primeiro passo não é esse, o de denegrir, mas sim a chantagem pura e dura. A expressão, e falemos dela, é russa, e à letra pode ser traduzida como “material comprometedor” — muito dele de cariz sexual e que começou a ser recolhido e utilizado na era soviética. Contudo, e mesmo tendo sido cada vez menos utilizado (entenda-se: o kompromat) após a desagregação da União Soviética, voltou a ganhar importância na Rússia com a ascensão de Putin ao poder e, antes, quando este era, na década de 1990, um dos líderes do Serviço Federal de Segurança, ou FSB na sigla original, e “protegido” de Boris Yeltsin.
O caso do procurador russo que investigava o Kremlin e acabou, ele mesmo, por se tornar no investigado
Um dos casos mais conhecidos (e até sombrios) do uso do kompromat surgiu precisamente quando Yeltsin era presidente — e Putin, por inerência, homem-forte do FSB, as secretas russas que vieram substituir o KGB. Em janeiro de 1999, recorda agora o New York Times a propósito da polémica que envolve Donald Trump, o telefone do procurador-geral Yury Skuratov tocou. Ligava-lhe o chefe de gabinete de Yeltsin no Kremlin. Encontrar-se-iam. E foi no encontro que a Skuratov foi apresentado um vídeo onde este, alegadamente, surgiria a ter relações sexuais com duas prostitutas.
À época, o procurador-geral dirigia uma investigação que se preparava para acusar Boris Yeltsin (e toda a cúpula do poder em Moscovo) de aceitar subornos vindos da Suíça, concretamente de uma empresa que procurava vencer o concurso de uma empreitada para reformar o Kremlin. A Skuratov foi-lhe exigido que desse o caso por encerrado, sem acusar Yeltsin ou alguém próximo deste. Skuratov não aceitou. E pagou o preço da recusa: as imagens comprometedoras foram emitidas dias depois na TV estatal russa, a RTR.
O procurador-geral defendeu-se e garantiu que tudo se tratava de uma montagem e que nunca teve relações sexuais com aquelas duas mulheres. Alguns duvidavam de Yeltsin, outros de Yury Skuratov. Este não se demitiria. E acabou no Conselho da Federação, a câmara alta do parlamento russo, a testemunhar em sua defesa. Pouco depois, e não havendo como Skuratov se demitir, foi o próprio Vladimir Putin quem surgiu na TV russa, garantindo que se tratava realmente do procurador-geral na gravação de cariz sexual e que esta era tão grave, que o envolvido devia ser investigado.
Pouco depois, o próprio Yeltsin demitiria Skuraov por decreto presidencial. Agradecido a Putin, o presidente faria dele primeiro-ministro ainda nesse ano. Quando o mandato de Yeltsin chegou ao fim, Putin ascenderia à presidência.
A ascensão de Putin ao poder via secretas e como eliminou os “inimigos” pela calúnia
Nem só de krompromat vive a Rússia de Putin para “eliminar” os opositores políticos. Usa-se igualmente do hacking na Internet ou da proliferação de notícias falsas na imprensa que vai controlando. Mas foi o kompromat que mais permitiu a ascensão (e sobretudo a permanência no poder) de Putin. O mais mediático de todos os casos de kompromat envolvendo o presidente russo é o de Mikhail Kasyanov, como lembra a revista Atlantic.
Kasyanov foi primeiro-ministro e braço-direito de Putin no regime. Mas afastar-se-ia do presidente e tomaria um lugar na oposição. No outono do último ano, e com a aproximação das eleições legislativas, Kasyanov desafiava o poder (e o partido) de Putin e poderia vir a ter um resultado nas eleições que, não fazendo o Kremlin tremer, lhe “beliscasse” o orgulho. Sem espanto, surgiria na Internet um vídeo de Kasyanov na cama com outra ativista russa. À parte do sexo, captou-se-lhes o discurso, crítico dos seus próprios pares. A derrota eleitoral foi estrondosa para Kasyanov, não conseguindo qualquer assento parlamentar — antes, tinha um.
No entanto, o kompromat não se cinge só aos adversários políticos em eleições, mas também aos oposicionistas na sociedade, dentro e fora da Rússia. Viktor Shenderovich, por exemplo, é humorista. E certo dia troçou de Putin, recorda igualmente a Atlantic. Em má hora o fez. Poucos dias antes do casamento da filha, Shenderovich viu um vídeo em que tinha relações sexuais com uma prostituta ser divulgado. Sim, era Viktor Shenderovich nas imagens — o próprio nunca o negou. Mas nem sempre é necessário captar uma situação comprometedor para denegrir. Nem tão pouco viver à beira de Putin e do FSB na Rússia.
Vladimir Bukovsky vive exilado em Londres e é ativista. Por via do hacking, ou seja, de pirataria informática, o computador de Bukovsky foi “impregnado” de pornografia infantil. E criminosa, portanto. Bukovsky, 74 anos, seria denunciado e investigado pelas autoridades britânicas. Apesar de garantir que todo o caso é “kafkiano” e uma “mentira”, o ativista continua a ser investigado. “Hoje, não só tenho que provar que não sou culpado, mas também que sou inocente”, lembraria ao New York Times.
добро пожаловать (que é como quem diz, “bem-vindos”) à era soviética
Foi sob a égide de Estaline e na ex-URSS que o kompromat surgiu. E surgiu sobretudo em hotéis frequentados por turistas estrangeiros, maioritariamente políticos ou empresários de relevo. Todos quantos neles trabalhavam, do paquete à empregada de limpeza, do motorista ao chef de cozinha, foram recrutados pelo KGB. Os serviços secretos russos utilizavam ainda prostitutas para atrair estas vítimas do kompromat a quartos de hotel que eram, afinal, uma cilada, repletos de microfones e máquinas fotográficas escondidos.
Uma das vítimas mais conhecidas do kompromat e do KGB foi Joseph Alsop, um influente colunista norte-americano. De visita a Moscovo, conta o New York Times, Alsop instalar-se-ia num hotel da capital russa e acabaria por ter relações sexuais com um jovem prostituto — que trabalhava a mando das “secretas”, claro. Assim que estes se despediram, dois agentes do KGB bateram à porta do quarto e interpelaram Joseph Alsop. Alsop revelaria mais tarde que durante a breve conversa estes lhe disseram: “Terá que nos ajudar se quiser que o ajudemos”. Queriam que Joseph Alsop se tornasse espião russo quando voltasse aos Estados Unidos. Recusou. Procurou a Embaixada norte-americana em Moscovo e retornou a casa o quanto antes, denunciando tudo quanto vivera em Moscovo.
Outros houve que não resistiram à chantagem soviética. Como é o caso de John Vassal, agora recordado pela CNN. Vassal era à época um funcionário da embaixada do Reino Unido em Moscovo. Estávamos também na década de 1950. E tal como Joseph Alsop, também Vassal era homossexual e envolveu-se com um prostituto-espião num quarto de hotel. “Os russos encontraram uma fenda na minha armadura antes de qualquer outra pessoa”, recordaria na sua autobiografia, “Vassall: The Autobiography of a Spy”. Sim, John Vassal aceitou ser espião. Sobretudo porque, à época, a homossexualidade (e a prática de sexo homossexual) era criminalizada no Reino Unido. Temia ser preso.
Mas acabaria por sê-lo, anos mais tarde, quando o caso finalmente deu à estampa no Reino Unido. Cumpriria quase duas décadas na prisão por causa da espionagem — e não da opção sexual. Vassal recordaria assim o dia que mudou por completo a sua vida: “Lá estava eu: nu, a sorrir para a câmara sem saber”.
“Moomoo”, uma prostituta-espia ao seu dispôr
Dela pouco ou nada se sabe. Quem com ela se envolveu — e hoje lamenta tê-lo feito, certamente –, recorda-lhe sobretudo a beleza. E mais do que a beleza, recorda-lhe o encanto que tinha. Tratavam-na apenas por “Moomoo”, como recorda a revista Atlantic. Não era uma prostituta como outras que o KGB e, mais tarde, o FSB utilizaram para perpetrar o kompromat. Mas era espia como as demais. Uma espia que utilizava as redes sociais para atrair homens que Putin e o regime queriam ver caídos em desgraça.
Uma dessas vítimas é Ilya Yashin, ativista próximo da oposição encabeçada por Boris Nemtsov. E não, Yashin não caiu em desgraça, mesmo tendo-se envolvido com “Moomoo”. Porquê? É que muitas das vítimas do kompromat preferem, hoje, que se divulgue o que deles há de comprometedor, sendo reconhecidos na sociedade como alguém que não cedeu à chantagem. Foi esse o caso de Ilya Yashin.
À época, e quando foi contactado por “Moomoo”, tinha 25 anos e era solteiro. Ao fim de algumas semanas de troca de mensagens, resolveram encontrar-se. Yashin aceitou o convite para ir até à casa (repleta de material de espionagem do FSB) dela e, assim que lá chegou, foi surpreendido. Ou melhor, “assustado”. E recordaria: “Quando lá cheguei, encontrei outra mulher. Elas atacaram-me sexualmente assim que entrei pela porta”. Yashin não desconfiou logo do que se tratava — de espionagem –, mas desconfiaria mais tarde. “Fiquei desconfiado quando uma delas foi buscar uma mala com brinquedos sexuais, enquanto a outra me começava a chicotear. Pedi-lhe que guardasse tudo”, lembra, citado pelo New York Times. Ainda lhe ofereceriam cocaína. Voltaria a recusar. Vestiu-se e abandonou a casa.
“Moomoo” terá sido a “responsável” pela recolha de material para kompromat de pelo menos três jornalistas críticos de Putin e três elementos da oposição ao regime.
Os diplomatas norte-americanos na teia do kompromat (ou como Trump pode ter sido a vítima certa no local errado)
Dois ex-espiões britânicos que hoje trabalham como consultores do setor privado são os autores do relatório sobre as ligações à Rússia do Presidente norte-americano eleito, Donald Trump. O relatório, segundo o qual Moscovo conspirou durante anos para estabelecer relações com Trump — e tem vídeos chocantes de sexo entre Trump e prostitutas no hotel Ritz de Moscovo –, teve origem na empresa Orbis Business Intelligence, sediada em Londres. O documento de 35 páginas, que Trump classificou como “uma impostura” e “informação falsa”, foi escrito pelo diretor da Orbis, Christopher Steele, e pelo seu codiretor, Christopher Burrows, e entregue aos serviços de informações norte-americanos no ano passado. O mesmo serviu de base a uma adenda de duas páginas que foi entregue pelos responsáveis destes serviços a Trump e Barack Obama.
Ao Observador, Peter Rutland, especialista em relações EUA-Rússia, recorda como a Rússia recolhe habitualmente informações sobre aliados e adversários. “É importante perceber que, ao mais alto nível, o sistema político russo depende muito profundamente da recolha de material comprometedor [kompromat] relativo a figuras de liderança política, tanto aliados como adversários. Podem ser tanto informações financeiras, como indícios de corrupção, como atividades sexuais. Esse tipo de informação pode ser divulgado através dos meios de comunicação — se e quando necessário. Por isso, tendo em conta este uso doméstico de kompromat, é perfeitamente possível que eles usem técnicas semelhantes com figuras estrangeiras que tenham um interesse político e que visitem a Rússia”, explicou.
A informação pode até ser falsa. E Trump pode nunca ter sido vítima de kompromat por parte da Rússia e de Putin. Mas não seria o primeiro norte-americano (e falando dos que têm ligações ao Estado) a sê-lo.
Kyle Hatcher trabalhava à época na Embaixada norte-americana em Moscovo. O ano era o de 2009. E um vídeo onde Hatcher tinha relações sexuais com uma prostituta começou a circular na Internet — concretamente num site russo, uma espécie de “YouTube”, que faz a divulgação de vídeos de kompromat. O funcionário da Embaixada negou que fosse ele nas imagens. E o próprio embaixador veio a terreiro, e concretamente ao canal ABC News, defender Kyle Hatcher. “Claramente, o vídeo que vimos foi uma montagem de vários clips diferentes, alguns deles claramente fabricados”, disse o então embaixador John Beyrle.
Fabricado ou não, a verdade é que Beyrle surge no quarto de hotel e olha em volta, vasculhando tudo em busca de uma câmara escondida e de um microfone. Estranho? Não. Não na Rússia. Não entre gente da diplomacia. À CNN, o ex-embaixador do Reino Unido em Moscovo, Tony Brenton, explica que os funcionários das embaixadas estrangeiras são alertados, assim que chegam à Rússia, para os riscos do kompromat. E lembra: “É assim que a Rússia trabalha. A ‘inteligência’ russa recolhe informação comprometedor sobre os indivíduos e vai usá-la contra eles”.
A propósito do caso que envolverá Trump, o ex-embaixador Brenton lembra à CNN que “é muito provável que a Rússia recolha material comprometedor sobre políticos dos Estados Unidos”. Mas será o presidente eleito uma vítima?
Ouvido também pela CNN, Mark Galeotti, um perito em serviços secretos russos no Instituto de Relações Internacionais de Praga, explicou que a situação, a ser verdade, é mais “arriscada” para Putin do que para Trump. E lembra: “Se algum dia os russos emitissem tal vídeo, isso poderia ser visto como uma declaração de guerra a Trump [e aos Estados Unidos]. E isso não é definitivamente algo que Putin queira”.