Agosto de 2023. Serviço de Urgência Geral do Hospital de Santa Luzia, em Viana do Castelo. A médica Helena Terleira, especialista em Medicina Interna, 60 anos, cumpria mais um turno. Na fase final da carreira, já não é obrigada a fazer “bancos”, mas ainda vê doentes na urgência externa uma vez por semana. Naquele dia de verão, e depois de meses de impasse nas negociações entre sindicatos médicos e Ministério da Saúde, Helena Terleira pensou que era preciso aumentar a pressão sobre a tutela, no sentido de se atingir um acordo. A ideia surgiu quase de imediato: uma carta, que se pretendia que fosse assinada pelo maior número de médicos possível, e que fizesse um aviso ao ministro da Saúde — ou haveria acordo com os dois sindicatos ou os médicos começariam a entregar minutas, recusando-se a fazer mais horas extraordinárias. Um ultimato inédito, com consequências imprevisíveis.
Foi dessa forma que nasceu a primeira ação do movimento que viria a ganhar o nome de Médicos em Luta. A médica Alexandra Esteves, também internista, de 33 anos, concordou com o plano de Helena Terleira. E às duas veio a juntar-se, depois, Carla Meira, internista que trabalha na Unidade de Cuidados Intermédios do Hospital de Santa Luzia. Estava constituído o núcleo duro do movimento, em Viana. Mas as consequências da carta e do movimento espalhar-se-iam “como uma mancha de azeite”, nas palavras de Helena Terleira, a todo o país.
“Nessa altura, em agosto, estava em curso uma petição pública para discutir as alterações aos estatutos da Ordens — havia uma recolha de assinaturas para o chamado manifesto de insubmissão. Pensámos que, baseados nisso e utilizando o mesmo mecanismo de recolha de assinaturas, poderíamos fazer uma carta, chamando a atenção do ministro da Saúde para o nosso descontentamento e exigindo um acordo. E, claro, avisando que as minutas iam começar a ser entregues, caso isso não acontecesse na próxima reunião”, recorda a médica ao Observador. “O médico zero fui eu”, realça, numa referência ao início de um movimento que conseguiu uma adesão sem paralelo entre os médicos, até ao ponto em que, no final deste ano, cerca de 7 mil profissionais já se tinham recusado a fazer horas extra além das legalmente estabelecidas — uma pressão que não terá sido indiferente quando, já em dezembro, ministério e sindicato chegaram a acordo para uma atualização salarial de, em média, 14,5% (apenas o SIM assinou o acordo com a tutela, ainda que o ministério tenha alargado as condições a todos os médicos do SNS).
Quando Helena Terleira, Alexandra Esteves e Carla Meira lançaram a carta, as minutas contra as horas extra já estavam a ser disponibilizadas no site da Federação Nacional dos Médicos (FNAM) desde maio de 2023, no âmbito da campanha Nem Mais uma Hora, numa ação inédita daquele sindicato. No entanto, a adesão tinha sido reduzida. Isso estava prestes a mudar.
“Fomo-nos apercebendo de que as pessoas estavam a aderir”
As três especialistas começaram a partilhar a referida carta nos respetivos grupos sociais de médicos, com colegas e amigos. “O primeiro grupo foi do Hospital de Viana do Castelo, depois fomos enviando aos nossos contactos, a colegas de curso ou de outros hospitais. Fomo-nos apercebendo de que as pessoas estavam a aderir, uns assinando a carta e outros entregando as minutas”, conta Helena Terleira. A intenção era que os efeitos da missiva se começassem a sentir a “partir do momento em que a reunião [marcada para dia 11 de setembro] ocorresse” e caso não houvesse acordo.
“As pessoas começaram a entregar as minutas, muito por sugestão nossa, uma vez que tinham assinado a carta. Às vezes, perguntava: ‘Colega, já que assinou a carta e concorda, não quer entregar a minuta?’“, diz a médica. À medida que os médicos iam aderindo, eram incluídos num grupo de WhatsApp, chamado Médicos em Luta, que depressa se revelou pequeno para tantos médicos descontentes. O passa-palavra foi fundamental, com muitos médicos que tinham sido convidados a assinar a carta e a entregar a minuta de escusas a mais horas extra a convidarem outros clínicos a fazer o mesmo.
“Chegámos rapidamente às 1200 assinaturas e tivemos de criar o Médicos em Luta 2 e o Médicos em Luta 3 [os grupos de WhatsApp têm um limite de 1024 membros], que também encheram”, conta Helena Terleira. Rapidamente o movimento atingiu grandes proporções, numa primeira fase com especial incidência na região do Minho e depois estendendo-se a toda a zona Norte. Foi necessário, por isso, transferir os médicos para um grupo de Telegram, com um limite de membros muito mais alargado.
A carta, subscrita por mais de mil médicos, acabaria por ser enviada para a sede do Ministério da Saúde, no número 9 da Avenida João Crisóstomo, no centro de Lisboa. Mas da tutela não chegou qualquer resposta ou reação. “No entanto, o Ministério antecipa a reunião de dia 11 de setembro para o dia 8, o que pensámos poder ser um efeito da nossa carta”, diz a internista.
Helena Terleira e Manuel Pizarro chegaram a trabalhar juntos. Mas tutela ignorou o Médicos em Luta
Mas, nesse dia, voltou a não haver entendimento. Pior: as posições extremaram-se, com a Federação Nacional dos Médicos a considerar a proposta apresentada pelo ministro da Saúde (um aumento salarial de 3,6%) “um insulto a toda a classe” e o Ministério da Saúde a decidir encerrar as negociações. Sem acordo, e sobretudo sem perspetivas de que um entendimento pudesse ser alcançado a curto prazo, o protesto do movimento Médicos em Luta seguiu a todo o vapor. Em outubro, já se começariam a sentir os efeitos da escusas, previa a médica. E assim aconteceu.
“Muitos médicos começaram a entrar em contacto connosco para perceber como estávamos a organizar as escalas, por exemplo. Tínhamos estas conversas também no WhatsApp, entre todos. Aconselhávamos os médicos a colocarem as minutas e a cumprirem a escala do mês em curso. E o protesto foi alastrando como uma mancha de azeite. Encerrou a Medicina Interna de Viana e a seguir em Barcelos”, recorda Helena Terleira, acrescentando que depressa hospitais de maiores dimensões, como os hospitais de Braga, Póvoa do Varzim e Matosinhos, começaram a sentir as repercussões dessas limitações e enfrentaram também problemas de preenchimento de escalas.
SNS com 33 unidades com urgências limitadas na próxima semana
Nesta altura, entre setembro e outubro, o movimento ganhou proporções que as próprias médicas fundadoras não imaginavam. “Este movimento nasceu espontaneamente e tomou proporções que nenhuma de nós imaginou. Eu achava que se escrevêssemos a carta e que se tivéssemos duas ou três mil assinaturas, o senhor ministro, ao lê-la, poderia considerar sentar-se connosco e ouvir-nos e não deixar que algum urgência encerrasse”, diz a médica. Numa fase inicial, as “pessoas tinham um pouco de receio mas também pensaram que, ao colocarem as minutas, o ministro consideraria ceder às exigências. Ou, caso contrário, na primeira vez em que um serviço encerrasse por falta de médicos, o ministro iria perceber que era a sério e iria resolver o problema”, recorda ao Observador.
Nenhuma das médicas que estiveram na origem do protesto contra as horas extraordinárias sabe se Manuel Pizarro chegou a ler a carta enviada pelo movimento. Certo é que, com vários serviços de urgência encerrados e limitados na região Norte (pelo menos 21), no final de setembro, o Ministério não tomou qualquer posição oficial sobre o tema, desvalorizando o impacto que o protesto já estava a ter. “Nunca tivemos qualquer contacto da tutela. Eu e o ministro da Saúde somos da mesma idade e chegámos a trabalhar juntos durante seis meses no Hospital de São João quando éramos médicos internos. A única interação que tive com ele foi num fórum da TSF”, lamenta Helena Terleira.
“Nem um presidente de Câmara quis reunir connosco. Vê-se que a política é mais importante que as pessoas”
Em Viana do Castelo, praticamente todo o serviço de Medicina Interna apresentou escusas. E, como seria de esperar, refere a médica, a reação da direção de serviço e do Conselho de Administração, foi “má”. “Todas as pessoas colocaram minutas, à exceção da diretora de serviço e de uma colega mais velha. Quando perceberam que haveria dias sem urgência de Medicina, a direção de serviço optou por reduzir os rácios [com menos médicos escalados em cada turno]. Os diretores não queriam assumir que o seu serviço não iria conseguir assegurar escalas. O conselho de administração tentou demover-nos e teve atitudes pouco adequadas“, lembra a especialista, com 35 anos de carreira.
Helena Terleira lamenta que a população da cidade onde nasceu o movimento Médicos em Luta não se tenha manifestado contra o encerramento das valências do serviço de urgência, o que poderia ter sido mais um fator de pressão para o poder político chegar a um acordo com os sindicatos médicos, realça. Já os presidentes de Câmara do distrito colocaram a política à frente dos interesses das populações, acusa a médica. “Uma das coisas que fizemos quando tudo começou foi mandar uma carta aberta a todos os presidentes de Câmara do distrito para os informar de que a sua população iria ficar desguarnecida de cuidados nas áreas de Medicina, Cirurgia, Obstetrícia e Pediatria. A nossa ideia era que os presidentes de Câmara fossem também um fator de pressão sobre o Ministério da Saúde. E não houve um único presidente a querer reunir-se connosco. Vê-se que a política é mais importante que as pessoas, uma vez que a maior parte das autarquias são do PS“, defende.
No terreno, o protesto alastrava, alimentando pelo arrastar das negociações no Ministério da Saúde, que terminavam sempre sem acordo. “Cada insucesso negocial levava a que mais pessoas aderissem ao movimento. Foi a nossa força que levou o ministro a sentar-se à mesa das negociações“, diz a médica, lembrando que “só quando os serviços começaram a fechar é que se retomaram as reuniões [em meados de outubro], mas com pouca seriedade. Numa reunião acordavam uns pontos e, na reunião seguinte, nada se confirmava”.
Nessa altura era já quase inevitável que o “caos” atingisse todo o país, com especial impacto na região de Lisboa, cujos hospitais têm uma falta crónica de recursos humanos e onde o funcionamento em rede dos hospitais não é tão eficiente como a norte. No final de outubro, hospitais como Santa Maria e o Amadora-Sintra começaram a sentir os efeitos do protesto, cujas consequências se iriam consolidar durante o mês de novembro. Terá o impacto das escusas na região de Lisboa sido o fator decisivo para Manuel Pizarro ter começado a ceder às exigências dos sindicatos? Helena Terleira não tem dúvidas. “Tenho a certeza absoluta. Enquanto não chegou a Lisboa, praticamente nem se falava, era raríssimo aparecer alguma referência na televisão, por exemplo. E no Norte já havia urgências encerradas e utentes transferidos de um lado para outro”, recorda.
“Os colegas mais novos dizem-me: ‘Descobri que há vida para além do trabalho'”
Em novembro, cerca de 40 hospitais já estavam a sentir os efeitos do protesto, com mais de 3500 médicos a recusarem a realização de mais horas extraordinárias para além das 150 anuais previstas por lei. As especialidades de Medicina Interna, Cirurgia, Pediatria, Obstetrícia e Ortopedia eram — e são ainda — as mais afetadas, uma vez que o acordo alcançado entre o Ministério da Saúde e o Sindicato Independente dos Médicos não fez desmobilizar o protesto.
À medida que os órgãos de comunicação social davam cada vez maior cobertura ao protesto, e aos constrangimentos nas urgências, também o núcleo central do movimento Médicos em Luta ia sendo alargado. “Por uma questão de respeito, e por eu ser a mais velha do grupo, as pessoas diziam-me que tinham sido contactadas pelo jornal x e perguntavam se podiam falar em nome do movimento. Eu dizia ‘à vontade. Podes falar’. Íamos percebendo quem estava mais por dentro dos assuntos e quem não se importava com a exposição pública e distribuíamos tarefas. Em Penafiel, a Susana [Susana Costa, cirurgiã], na área de Lisboa, o Carlos [Carlos Meneses-Oliveira, intensivista do Hospital de Loures]”, detalha Helena Terleira.
A internista acredita que o movimento Médicos em Luta “foi decisivo” para o aumento concedido aos médicos (entre 11 e 14%). No entanto, a médica frisa que o salário, apesar de importante, terá de ser acompanhado por outras alterações na carreira, nomeadamente pela questão da diminuição do horário de trabalho e pela redução do trabalho no serviço de urgência (medidas que acabaram por não ser concretizadas no acordo). “Não é só uma questão de dinheiro. Tão importante como o salário é o tempo, que também é dinheiro”, realça Helena Terleira. “Os colegas mais novos dizem-me: ‘Ao fim destes meses, descobri que há vida para além do trabalho. Não me lembrava do que era ter dois ou três fins de semana livres num mês'”, conta a médica.
“O nosso pensamento é muito transversal, queremos melhores condições de trabalho para reter médicos no SNS. É tão básico. Deparamo-nos com horas de trabalho infinitas, exigências infinitas, salários baixos e desiguais“, sublinha, criticando aquilo a que chama o “sistema de prémios” que foi sendo instituído pelos sucessivos governos, e que, diz, majoram o vencimento de alguns médicos, em detrimento de outros. “É fácil majorar o salário de um cirurgião ou de um médico de família. Mas como vamos majorar o salário de um patologista clínico ou de um imuno-hemoterapeuta? Tem de haver um salário base com dignidade”, defende.
Sem “remorsos”, mas com preocupação pelo previsível aumento da mortalidade
Quando o tema das consequências para os utentes é levantado, Helena Terleira demora-se mais nas respostas e admite que os efeitos do protesto nas populações são “motivo de preocupação”. Vários médicos, entre os quais Carlos Cortes, que ocupa o cargo de bastonário da Ordem dos Médicos, têm admitido que a mortalidade pode estar a aumentar em resultado do mau funcionamento do serviço de urgência, que impacta diretamente, por exemplo, no tempo de intervenção cirúrgica, piorando os resultados clínicos.
“Isso preocupa-me”, diz a médica, realçando, todavia, que o movimento nunca funcionou como “um grupo de pressão” no sentido de os médicos entregarem ou retirarem as minutas de escusa. Para além disso, acrescenta a especialista, “apesar de os utentes terem de esperar mais e estarem a ser transferidos de um lado para o outro, não lhes tem faltado assistência” e “as situações mais graves têm sido atendidas”.
Mais de 100 dias depois dos primeiros encerramentos, e sabendo das dificuldades de muitos utentes em aceder a cuidados de emergência, Helena Terleira não sente “remorsos”. “Se tivesse havido, da parte da tutela e dos conselhos de administração, uma atitude de menos afronta para com todos nós, era diferente. Mas nunca ouvimos da boca do senhor ministro a admissão de que a situação era má e a intenção de resolver ou amenizar o problema. Acho que é por isso que não temos remorsos“, refere.
No dia 1 de janeiro, o ‘contador’ das horas extra volta ao zero, mas o movimento Médicos em Luta não se irá extinguir. “O movimento vai continuar a existir como fórum de discussão, para mudar o que é necessário, vai continuar a ser um local de partilha de experiências, de denúncias de situações menos corretas. Em março, muitos hospitais chegarão às 150 horas e em abril poderemos ter de recomeçar tudo isto em hospitais mais pequenos”, avisa a médica.
“Vejo com muita tristeza a saída diária de médicos do SNS. Este ano, Viana do Castelo formou quatro especialistas em Medicina Interna. Nenhum ficou. Quem vai ficar a formar os novos colegas e a segurar o SNS?”, questiona Helena Terleira.
Ao Observador, a médica Carla Meira deixa também uma reflexão, com foco nas próximas eleições legislativas. “Se não houver um investimento sério, o SNS vai acabar e as pessoas vão perder um bem valioso. Todos os que forem votar no dia 10 têm de pensar nisto”, sublinha.