Serão necessários vários meses para se conhecer ao certo o número total de vítimas, mas a devastadora onda de calor que nos últimos dias assolou a costa ocidental do Canadá e dos Estados Unidos é já um dos acontecimentos climáticos extremos mais mortíferos dos últimos tempos. As autoridades da província canadiana da Columbia Britânica e dos estados norte-americanos de Washington e Oregon — os três territórios mais afetados pela onda de calor — estão a investigar mais de 800 mortes ocorridas nos últimos dias, incluindo um número anormalmente elevado de mortes súbitas, que se suspeita estarem associadas às temperaturas recorde registadas na última semana.
Caberá agora aos cientistas que se dedicam aos estudos da “atribuição” climática investigar a fundo as causas da onda que levou a pequena vila de Lytton a desaparecer no meio de um incêndio depois de registar 49,6ºC, a temperatura mais elevada alguma vez medida no Canadá (estará na altura de rever a alcunha “Grande Norte Branco” com que o país foi historicamente batizado?), para que possamos perceber em que medida a onda de calor foi um efeito das alterações climáticas. Contudo, numa fase preliminar, os especialistas não têm dúvidas de que fenómenos extremos como a onda de calor do Canadá — mas também os fatais incêndios de 2019/2020 na Austrália, os incêndios de 2017 em Portugal ou as vagas de calor que têm afetado a Europa nos últimos anos — se estão a tornar mais frequentes porque as alterações climáticas estão a criar condições para que eles aconteçam mais vezes do que achávamos possível.
O climatologista Carlos da Câmara, professor da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, sublinha que é preciso ter em conta que não há uma, mas múltiplas razões para o problema que agora se vive no Canadá. “É um conjunto de coisas pouco frequentes”, explica ao Observador. “Quando um avião cai, nunca é apenas por uma razão. É por um conjunto de razões raras, que se conjugam e fazem uma tragédia. Quando há apenas um único extremo, a coisa é controlável”, acrescenta. No caso do Canadá, vários fatores confluíram simultaneamente para um cenário de catástrofe, especialmente uma “cúpula de calor” que se formou na região (um fenómeno que o Observador descreveu aqui ao detalhe) e uma das maiores secas da história da região.
“Qual é a probabilidade de uma heat dome surgir associada a uma seca numa altura que nem é a mais habitual? São coisas muito raras — a ‘cúpula de calor’ é rara, mas acontece —, que ocorrem simultaneamente”, explica Carlos da Câmara. “A primeira coisa que é importante perceber é o que é o clima. O clima é um conceito subtil. É aquilo que fica da meteorologia depois de nos abstrairmos dos estados do tempo que passaram. Nunca se vai poder dizer que ‘este episódio específico foi do clima’. O clima é um conjunto de coisas que só podemos ver indiretamente — e a primeira coisa que se vê como assinatura do clima é a vegetação natural. Os estados do tempo estão sempre a variar, mas dentro de toda a variabilidade, o que é que muda? Isso é uma alteração climática.”
Então, “a cúpula do calor é um efeito das alterações climáticas?”, pergunta Carlos da Câmara. “Não o posso dizer. Não posso congelar um momento do estado do tempo e dizer que é o clima”, responde, para logo alertar que a mudança climática, neste caso, tem de se averiguar pela distribuição das temperaturas ao longo das décadas e ver se “uma coisa que antes ocorria uma vez a cada 100 agora ocorre cinco a cada 100”.
Uma análise publicada no The New York Times na semana passada responde precisamente a essa questão. O jornal observou o número de dias em que a temperatura média diária esteve 20 graus na escala de Fahrenheit (cerca de 11ºC) acima da temperatura normal para as cidades de Seattle e Portland, capitais dos estados de Washington e Oregon, respetivamente, ao longo das últimas três décadas. Em ambas as cidades, o número de dias extremamente quentes tem vindo a aumentar: em 2021, ano que ainda vai a meio, as duas já registaram três destes dias. Entre 1990 e 2000 não havia sido registado nenhum dia nas mesmas condições. Entre 2000 e 2010 foi registado um dia em Seattle e três em Portland. E entre 2010 e 2020 foram registados sete dias assim em Seattle e também três em Portland. Isto significa que no primeiro ano desta nova década já se antecipa um grande crescimento do número de dias extremamente quentes naquelas cidades da costa oeste dos EUA.
Este ano, a temporada dos incêndios nos Estados Unidos está a ser particularmente preocupante. O Presidente norte-americano, Joe Biden, já veio dizer que o problema se está “a tornar num ciclo regular” e que “está a piorar”. Até o estado norte-americano do Havai, que é um dos lugares mais húmidos de todo o planeta, já está a enfrentar uma vaga de incêndios sem precedentes.
“Esta onda de calor é extraordinária, mas é improvável que seja a última”, disse ao The New York Times a investigadora Erica Fleishman, diretora do Instituto de Investigação em Alterações Climáticas da Universidade do Estado de Oregon. “Podemos dizer que as condições climatéricas extremas estão a acontecer mais à medida que o clima muda, e vão continuar a acontecer mais.” Ao mesmo jornal, a climatologista assistente do estado norte-americano de Washington, Karin Bumbaco, concordou: “É seguro assumir, na minha perspetiva, que o aumento dos gases de efeito de estufa tem pelo menos uma parte de culpa neste acontecimento”, afirmou. “Quando temos um ponto de partida mais quente, quando ocorrem estes fenómenos extremos, vai ficar mais quente na mesma medida.”
Na prática, sustenta Carlos da Câmara, as alterações climáticas não são diretamente responsáveis pela onda de calor no Canadá e nos EUA — ela é fruto de uma multiplicidade de fatores climáticos que se conjugaram para dar lugar a um momento trágico. Mas as alterações climáticas são responsáveis por, a montante, tornar mais frequentes os fatores que podem conduzir a catástrofes como esta. “Há vários indicadores que mostram que o mundo está a aquecer”, aponta o climatologista, para desfazer equívocos: “O mar está a subir, as calotes polares estão a diminuir.” Além disso, continua Carlos da Câmara, a Amazónia está a atravessar “a maior seca de sempre” e, nos primeiros 15 anos do século XXI, já passou três vezes por aquilo que foi considerado “a pior seca do século”. Ao mesmo tempo, “a Austrália tem tido uma seca tão prolongada que até houve uma epidemia de ratos, porque desapareceram os predadores — e, lá, os incêndios foram aterradores”.
Embora cada um destes fenómenos não possa ser individualmente atribuído às alterações climáticas — uma vez que se trata de episódios pontuais —, o aumento da sua frequência ao longo dos últimos anos é um sintoma de como as alterações climáticas estão a transformar o planeta num lugar mais quente. Em consequência, torna-se mais provável que vários destes fatores ocorram em simultâneo e resultem em situações trágicas de grande intensidade, como a onda de calor no Canadá. Na prática, “está-se a alterar a distribuição normal” dos acontecimentos extremos: a mudança climática não causa cada um dos fenómenos extremos, mas cria condições para que eles sejam mais frequentes.
Portugal mais quente e mais seco
É aqui que entra em jogo a grande complexidade da nada certa ciência da atribuição de responsabilidades às alterações climáticas. “Isto é muito fácil de negar”, assume Carlos da Câmara, assinalando que os fenómenos climáticos extremos podem ser explicados pela conjugação de um conjunto de fatores. O problema surge quando se tenta explicar a frequência crescente destes fenómenos. “Pergunto a quem nega se consegue arranjar um modelo que, seguindo as leis da matemática e da física, sustente as observações. Pode conseguir explicar um fenómeno, mas não consegue integrá-lo dentro de um corpo formal e teórico.”
O climatologista recorre a um gráfico elaborado pela NOAA (a agência governamental norte-americana responsável pelos oceanos e atmosfera) com base no conhecimento científico mais recente para explicar como a atividade humana tem tido um papel no aumento da temperatura do planeta. O gráfico compara dois modelos de previsão da variação da temperatura em relação à média 1881-1920, um período tomado como a referência antes do século XX — um deles que tem em conta os fenómenos naturais do planeta e outro que conjuga os fenómenos naturais e a influência humana. Ambos os modelos explicam as variações de temperatura até meados da década de 1950, mas a partir daí só o modelo que inclui a influência humana consegue explicar as temperaturas observadas no planeta.
Com um planeta mais quente e mais seco, estes fenómenos climáticos extremos só tendem a tornar-se mais frequentes — e Portugal não está livre. “Comparo o Canadá com o 15 de outubro de 2017 em Portugal”, explica Carlos da Câmara. “Teve uma circunstância que foi ter o Ofélia, um ciclone tropical que normalmente não chegaria aqui, a que se junta uma seca e os ventos extremamente fortes, mais as ignições provocadas por humanos. Isso levou a uma tragédia. Foi um conjunto de coisas que não são habituais, mais o ingrediente humano. É como a tal cúpula de calor do Canadá. É rara, mas acontece. Tem lá uma espécie de bolha, com ar a circular que não se renova, como numa panela, e com altas pressões por cima a comprimir o ar. Isso é chato, mas juntou-se uma coisa chatérrima: uma seca antes. Juntam-se as duas coisas e tem-se um aquecimento numa zona com pouca água. E chegamos a temperaturas de 49 graus. Este género de eventos vão ser muitíssimo mais frequentes. Não digo habituais. Em vez de uma vez a cada 100 anos, são duas ou três vezes a cada 100 anos.”
Com efeito, já há estudos que comprovam este aumento de frequência. Uma investigação publicada em 2020 na revista da Academia Nacional das Ciências dos EUA concluiu que a probabilidade de ocorrência de ciclones tropicais que originem tempestades de categoria acima de 3 tem vindo a aumentar a um ritmo de 8% por década devido às alterações climáticas.
É verdade que, embora menos raros, estes fenómenos vão continuar a ser a exceção — mas “são os extremos que afetam as pessoas”, continua o climatologista português. “Os desgraçados de Lytton tinham o recorde de temperaturas e, no dia seguinte, ardeu tudo. O problema nas alterações climáticas, como quando se diz que o nível do mar vai subir um metro até ao final do século, não é a média. São os extremos.”
No caso português, é certo que os incêndios de junho e outubro de 2017 em Portugal, que mataram mais de uma centena de pessoas, resultam de uma confluência de vários fatores — mas também se enquadram no contexto de um país cada vez mais quente.
Carlos da Câmara chama a atenção para um estudo recente realizado por investigadores portugueses sobre o aquecimento global na Península Ibérica. Na prática, os cientistas olharam para o período entre 1901 e 2016 para observar os períodos de maior seca e os períodos de maior humidade ao longo do último século. Os resultados são reveladores do percurso que a península tem feito no que toca às condições do clima: dos 24 períodos de seca mais intensos, 17 verificaram-se depois de 1992; já no que toca aos 24 períodos de maior humidade, só dois ocorreram nos últimos trinta anos. Mesmo que, em cada momento, as condições do tempo se expliquem por um conjunto de fatores, as alterações climáticas estão a transformar Portugal num país mais quente e mais seco. Em maio, numa entrevista ao Observador, a escritora Isabel Lindim, autora do livro Portugal, Ano 2071, traçava um cenário concreto do país dentro de 50 anos: praticamente sem praias e com temperaturas a atingir rotineiramente os 50ºC em lugares como Beja.
Um planeta mais quente e mais seco vai ser palco de um número cada vez maior de episódios climáticos extremos, com potencial para causar danos consideráveis nas povoações humanas e para provocar vítimas. Assim, defende Carlos da Câmara, a prioridade deve ser a adaptação: uma vez que é inevitável que aumente a frequência das ondas de calor mortais, dos incêndios ou das grandes tempestades, impera que as sociedades sejam capazes de se adaptar à nova realidade. “É preciso acreditar na ciência e conhecer os vários cenários para os podermos preparar. Mais do que a mitigação, é preciso adaptação. Vamos ter de aprender a viver num mundo em que o clima não vai ser simpático em algumas zonas. Em Portugal podemos ficar tipo Marrocos.”
A mensagem, porém, não passa sempre com o mesmo grau de eficácia — e isso deve-se ao próprio fenómeno: “Se isto fosse periódico, as pessoas acreditavam mais facilmente, pensavam ‘vem aí o calor’. Mas são fenómenos vacilantes. Como um bêbado que vai numa direção, mas dá três passos para a direita, dois à esquerda, um atrás. Mas tem uma direção. Nós estamos a ir para pior, mas há momentos mais curtos em que parece que vamos para melhor.” Resignado, o climatologista encontra esperança nas palavras do físico alemão Max Planck, o pai da física quântica, galardoado em 1918 com o Nobel da Física: “Uma nova verdade científica não triunfa porque os seus oponentes ficam convencidos e veem a luz, mas porque os seus oponentes acabam por morrer e aparece uma nova geração familiarizada com ela.”