“Haverá um dia, seguramente, em que o ordenado mínimo estará bastante acima do mínimo de existência, como deve ser.” O desejo foi manifestado por António Costa durante a polémica recente que recolocou no centro do debate a possibilidade de o salário mínimo vir a pagar IRS. Só que foi acompanhado por uma conclusão: “Ainda não é o caso“. A posição, que representa uma mudança de opinião face ao que o próprio primeiro-ministro fez aprovar no ano passado, traz uma dúvida: como determinar o patamar a partir do qual é aceitável que o salário mínimo deixe de pagar imposto?

Num debate sem respostas certas, a posição é mais política do que matemática e divide os especialistas ouvidos pelo Observador. Nas declarações que proferiu em setembro, na Nazaré, numa iniciativa do “Governo Mais Próximo”, António Costa colocava uma distância entre o país real e o ideal. Essa divergência é também sublinhada pelo fiscalista da Deloitte Ricardo Reis.

“O que queremos ter é um país em que o salário mínimo é alto, em que toda a gente ganha um valor alto, tem condições para pagar impostos e, ainda assim, tem uma vida perfeitamente digna e com acesso a todos os direitos fundamentais. Nesse país de sonho, o salário mínimo pagava IRS”, diz, em declarações ao Observador, concordando que o país real ainda não coincide com essa idealização.

Afinal, quem ganha o salário mínimo pode pagar IRS em 2024? Sim (mas o primeiro-ministro garante que não)

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Na opinião do especialista, a tributação não deve depender do valor do salário mínimo em si, mas das “condições de vida das pessoas que o auferem”. “A questão é saber a partir de que valor, em função dos custos de vida, é que se deve pagar imposto. E acho que ninguém tem uma resposta concreta para essa pergunta”, afirma, em declarações ao Observador. O fiscalista admite, tal como o primeiro-ministro, que essa questão venha a ser colocada no futuro, mas se o salário mínimo subir acima da inflação e for suficiente “em função dos custos de vida”.

“Haverá um ponto em que faz sentido tributar”, não tem dúvidas. Coisa diferente é se “o salário mínimo cresce ao ritmo da subida dos custos de vida”. Para 2024, a trajetória do aumento do salário mínimo definida no acordo de rendimentos aponta para uma subida de 6,6%, acima da projeção para a inflação que inscreveu no Programa de Estabilidade, de 2,9% para esse ano.

O fiscalista Luís Leon, fundador da consultora Ilya, entende que, por definição, o salário mínimo “deve ser o salário mais baixo que uma pessoa deve poder ganhar no país”, um “patamar mínimo do limiar de existência que a economia portuguesa consegue pagar”. Por isso, deve estar isento. Para o especialista, desligar o mínimo de existência do salário mínimo e ligá-lo ao Indexante de Apoios Sociais (o IAS), como o Governo fez, é um “reconhecimento” do Executivo em como o salário mínimo deve estar sujeito a tributação.

Luís Leon entende que o salário mínimo tem subido acima da capacidade da economia, composta sobretudo por pequenas empresas, e defende que a manutenção da isenção de IRS até funcionaria como uma espécie de mecanismo de controlo para a tomada de decisão do Governo tendo em conta a perda de receita com a isenção do imposto. “É importante que o salário mínimo continue a não pagar IRS, para que, do lado do decisor político, haja um impacto negativo de quem tem de gerir as contas públicas. Para que possa haver um equilíbrio de forças dentro do próprio governo, que tem de gerir com base na economia real e não com base em filosofia política”, argumenta o fiscalista, que sugere um salário mínimo por região, setor de atividade ou dimensão da empresa.

Paulo Núncio, que foi secretário de Estado dos Assuntos Fiscais durante o governo de Pedro Passos Coelho, também argumenta que o salário mínimo representa “o mínimo dos mínimos” e deve corresponder ao mínimo de existência. “A minha tese é de que, a partir do momento em que se chama salário mínimo, o Estado não deve cobrar imposto”, defendeu, ao Observador.

Travão às rendas, salário mínimo e pensões. O que Costa promete para o próximo ano

O Governo, e o Ministério das Finanças em particular, já sinalizou que tem uma visão diferente e distingue aquilo que é o salário mínimo do que é o “mínimo indispensável para sobreviver“. Ao Jornal de Negócios, em setembro, defendeu que “não se pretende que o salário mínimo nacional corresponda ao que é o mínimo indispensável para sobreviver (ou seja, ao mínimo de existência que, por isso mesmo, não é sujeito a qualquer imposto), mas pretende-se, sim, que atinja um valor superior“.

Quem tem uma visão diametralmente oposta é o empresário Rodrigo Moita de Deus que, no programa “Causa Própria”, da Rádio Observador, defendeu a taxação do salário mínimo como forma de inclusão no sistema de todos trabalhadores, por “princípio”. “O que fazemos com esta isenção é dizer a 800 mil famílias que não interessam para as contas do país”, argumentou, sugerindo um “valor simbólico” de contribuição.

Luís Leon, no mesmo programa, rebateu, lembrando que o salário mínimo já paga TSU (e todos os outros impostos indiretos, como o IVA): “Quem recebe o salário mínimo basta que se levante de manhã para pagar impostos indiretos”. Moita de Deus viria a responder: “O Estado recebe de IVA 22 mil milhões de euros e de impostos sobre o trabalho 16 mil milhões de euros. Quer dizer que o país consome mais do que trabalha. O dinheiro não chega para tudo o que estamos a fazer”.

A discussão que, afinal, “não faz sentido”

A reforma do mínimo de existência — que levaria a que o salário mínimo começasse a ser sujeito a IRS em 2024 —, já estava prevista no Orçamento do Estado para este ano, mas com o aproximar da entrega do documento referente ao próximo ano ganhou outro fôlego e a polémica voltou a instalar-se. Num artigo de opinião muito crítico no Observador, o ex-secretário de Estado dos Assuntos Fiscais Paulo Núncio criticava a opção numa altura “em que aumenta o custo de vida e diminui o rendimento disponível das famílias”. “[…] E significa que, por decisão do PS, muitos milhares de famílias vão ficar com rendimento líquido inferior àquele que é considerado indispensável para conseguir viver de forma digna”, salientava. A mesma linha de argumentação foi seguida pela maior parte dos críticos.

O Governo — António Costa, em particular, já que o Ministério das Finanças, nas primeiras respostas à comunicação social, defendeu a opção tomada no ano passado— acabaria por dar um passo atrás, com Costa a garantir que a possibilidade de a atualização do salário mínimo levar os trabalhadores que auferem esse valor a pagar IRS é “um problema que não se põe e uma discussão que não faz sentido”.

O mínimo de existência é o patamar até ao qual não há lugar ao pagamento de IRS (há, no entanto, de Segurança Social). Com a reforma prevista, deixou de estar indexado ao salário mínimo nacional e passou a ficar ligado ao IAS (o indexante de apoios sociais, que serve de referência às prestações sociais). A reforma foi defendida pelo Governo como uma resposta à penalização que então apanhava cada vez mais pessoas à medida que o salário mínimo subia, o que fazia com que quem ganhava ligeiramente acima do mínimo, por ser taxado, ficava a receber em termos líquidos menos do que quem estava nesse patamar. Mas a reforma fez com que, em 2024, o salário mínimo passasse a pagar imposto. E as despesas gerais, mesmo que utilizadas na totalidade na dedução ao IRS, não seriam suficientes para escapar ao pagamento.

Para que um contribuinte que ganhe o salário mínimo permaneça livre de imposto, o Governo terá de mexer nas deduções ou na fórmula de cálculo do mínimo de existência. O primeiro-ministro já deu entender que prefere a segunda opção: o mínimo de existência está fixado “no valor correspondente precisamente a 14 vezes o valor do salário mínimo nacional” de 2023 (760 euros), disse, durante o debate da moção de censura do Chega ao Governo, acrescentando: “Não é entendimento do Governo que se deva alterar essa situação“. O Quadro de Políticas Invariantes entregue no Parlamento contabiliza em 100 milhões o impacto da medida do mínimo de existência antes da mudança de posição do Governo. Segundo o Eco, a manutenção da isenção de IRS custará 250 milhões de euros.

Quem ganha salário mínimo precisa de deduzir despesas para não pagar IRS a partir de 2024

Mas António Costa ainda não explicou, ao certo, o que vai fazer nesta matéria. Nem tão pouco é certo o valor do salário mínimo para 2024. No acordo de rendimentos assinado na concertação há um ano, o Governo previa uma subida para os 810 euros em 2024, mas na entrevista desta segunda-feira à CNN Portugal, António Costa admitiu ir mais além. As confederações patronais já se mostraram disponíveis para ultrapassar a meta dos 810 euros, mas têm contrapartidas fiscais que não é certo que o Executivo acompanhe. À CNN, Costa mencionou a proposta da UGT, que pede 830 euros em 2024.

A questão está a ser discutida na concertação social. Se o Governo decidisse alinhar com a UGT teria também de alterar a proposta que apresentou aos sindicatos da função pública para o salário mínimo no Estado. Na semana passada, propôs uma subida de 52 euros, o que significa que o salário base no Estado se fixaria nos 821 euros. Esta quarta-feira há nova reunião com a secretária de Estado da Administração Pública, Inês Ramires, e os sindicatos, que esperam desfazer as dúvidas sobre o valor final que a entrevista de António Costa levantou.

Os dados mais recentes do Ministério do Trabalho revelam que, no segundo trimestre do ano, recebiam o salário mínimo 838.111 trabalhadores por conta de outrem (que, por isso estão isentas de IRS), quase mais 184 mil do que há sete anos. O peso do salário mínimo representa 20,8% do total do emprego. Ainda assim, o valor mais baixo desde 2016, segundo o Ministério.