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A privacidade ou as crianças? Como a UE quer conversas vigiadas para combater abuso de menores

Proposta deu entrada esta semana e obriga redes sociais a vigiar todas as comunicações, incluindo conversas privadas. A ideia é legal mas abre o dilema: a nossa privacidade ou segurança das crianças?

“Esta proposta é sobre a proteção das crianças, para resgatá-las e ajudá-las”. Foi desta forma que a comissária europeia dos Assuntos Internos, Ylva Johansson começou na quarta-feira a apresentação da proposta de regulamento 2022/0155 da Comissão Europeia. O objetivo é claro e consensual — combater o abuso sexual de menores e a divulgação de pornografia infantil. Mas a ideia para chegar a esse objetivo não é tão unânime: a Comissão quer obrigar as plataformas digitais a monitorizar todas as “comunicações interpessoais”, para detetar possíveis abusos. Ou seja, quer vigiar e passar a pente fino todas as mensagens enviadas e recebidas pelos cidadãos europeus.

Uma ideia que fez soar os alarmes, principalmente entre os defensores dos direitos digitais. Isto porque a proposta de regulamento da Comissão Europeia não tem medo de dizer ao que vem: na página 13 do documento — e de resto, em várias passagens do texto –, o organismo admite que a proposta “resulta em níveis variados de intrusão em relação aos direitos fundamentais dos utilizadores”. E que direitos? À cabeça o direito à privacidade, contemplado no artigo 5.º. da Diretiva 2002/58 da Comissão Europeia, que garante a “confidencialidade das comunicações”, bem como a proibição de “dispositivos de escuta, armazenamento ou outras formas de interceção ou vigilância de comunicações”, que podem agora ficar em risco. Pelo menos é o que receia a comunidade digital.

Bruxelas quer vigiar comunicações online para combater abuso de menores

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“Fica difícil escapar à analogia do Big Brother”

Ricardo Lafuente, vice-presidente da D3, a associação portuguesa de Defesa dos Direitos Digitais, reconhece a importância da proteção das crianças, mas não tem dúvidas: a proposta europeia pode levar a uma “grande catástrofe” em termos de direitos de privacidade, que podem mesmo chegar ao fim se o plano for aprovado. “O abuso sexual de menores é um problema gravíssimo e delicado, mas está a ser aqui usado apenas como pretexto político para mais uma vez tentar enfraquecer a privacidade da comunicação das pessoas”, diz ao Observador.

UE quer ver chats: “É difícil escapar à analogia do Big Brother”

Mas, afinal, segundo a proposta da Comissão Europeia, quem é que pode vir a ler as nossas mensagens? A resposta até pode ser “ninguém”, pelo menos de carne e osso e numa primeira instância. De acordo com a proposta, a análise das comunicações vai ser feita por softwares de inteligência artificial através do fenómeno de “hashing“, que no fundo compara as mensagens analisadas com abordagens de abusos sexuais reais. Diz a proposta europeia que vão ser usadas “tecnologias confiáveis de deteção automática”, o “menos intrusivas à privacidade possível” e que todas as monitorizações necessárias vão ser feitas “de forma anónima”. A parte humana chega depois: enquanto estas inteligências artificiais são uma espécie de antivírus, que serve para lançar um alerta de suspeição sobre conteúdos de abuso, a filtragem destas suspeitas vai ser feita por pessoas. E é aí que entra o “Big Brother”, uma analogia a que Ricardo Lafuente diz ser difícil de escapar.

Na proposta de regulamento, a Comissão Europeia garante que a monitorização vai ser “o menos intrusiva possível” e que vai ser feita “na base de revisões anónimas aos perfis”

Esse “Big Brother” é uma entidade independente — feita por pessoas –, que vai ser criada em cooperação com a Europol, para analisar, com olho humano, todas as mensagens suspeitas sinalizadas pelas inteligências artificiais. Chama-se Centro UE e diz o jornal Político que deve custar cerca de 26 milhões de euros. É aqui que, em teoria, haverá pela primeira vez pessoas reais a ver correspondência privada… mas que pode ser ou não realmente suspeita.

O Observador falou com o eurodeputado alemão e ativista pelos direitos digitais Patrick Breyer, que abre a hipótese de chegar muito material inocente, de qualquer um de nós, às mãos e olhos deste Centro UE: “Para uma máquina, é realmente impossível identificar com segurança que imagens são de um abuso e que imagens são, por exemplo, de uma família na praia, ou de uma foto íntima que partilhamos com um parceiro”. Ou seja, diz o eurodeputado dos Grupo dos Verdes, há um risco elevado de que cheguem aos analistas humanos do Centro UE fotos ou mensagens privadas — e inocentes — de qualquer cidadão europeu. Isto porque, diz, a inteligência artificial é “propensa a erros”, ainda que se saiba muito pouco sobre qual vai ser utilizada.

"Para uma máquina, é impossível identificar com segurança que imagens são de um abuso e que imagens são, por exemplo, de uma família na praia."
Patrick Breyer, eurodeputado e ativista de direitos digitais

“Estes algoritmos são ainda experimentais, sabemos muito pouco sobre eles. Não são públicos e não sabemos absolutamente nada sobre a margem de erro que podem conter. Por isso, é provável que muitas conversas inocentes entre adolescentes ou entre adultos sejam falsamente divulgadas”, avisa o eurodeputado, que acrescenta que “é muito perigoso não sabermos nada sobre as tecnologias que podem vir a ser usadas para monitorizar as comunicações”. Por enquanto, sabe-se apenas que as empresas de comunicação vão ser parte importante no desenvolvimento dos softwares, até porque vão ser obrigadas a fazer esta monitorização. Até agora, e desde julho de 2021, está em vigor uma lei semelhante a esta proposta, mas com uma pequena grande diferença: as plataformas não eram obrigadas a vigiar as comunicações, mas podiam fazê-lo numa base voluntária. Com o cariz obrigatório que a proposta determina, chegam as críticas.

O artigo 28.º, alínea c) da proposta apresentada, estabelece que as empresas que se recusem a monitorizar as mensagens privadas dos seus utilizadores serão penalizadas com uma multa. No documento não é mencionado o valor dessa multa, mas diz o jornal Político que pode chegar aos 6% da receita global anual da empresa. A título de exemplo, se o Twitter — que teve quase 5 mil milhões de euros de receita em 2021 — se recusar a vigiar as comunicações dos seus utilizadores, terá de pagar uma multa de quase 300 milhões de euros. Do WhatsApp, chegaram os primeiros sinais de revolta: o diretor da plataforma, Will Cathcart, considera que a ideia é “errada e incoerente com o compromisso da União Europeia” e que pode ser “usada para atacar os direitos humanos de muitas maneiras diferentes em todo o mundo”. Contactada pelo Observador, a Google preferiu não fazer comentários sobre a proposta. Já o Grupo Meta — que detém o Facebook, Instagram e WhatsApp –, também em resposta ao Observador, admite que está “ansioso” por trabalhar com a UE, mas ressalva a importância de que “quaisquer medidas adotadas não prejudiquem a encriptação ponto-a-ponto, que protege a segurança e a privacidade de milhões de pessoas, incluindo crianças”. E por falar nelas: independentemente de todos estes receios… será esta proposta eficaz no combate ao abuso sexual de menores?

Da “proposta válida” à “porta aberta a outros ilícitos”

O Observador falou com Paulo Pelixo. É psicólogo e diretor-executivo da Associação para o Planeamento da Família. Dedicou grande parte da vida profissional à área da intervenção em abuso sexual infantil. Olhando para a proposta da Comissão Europeia, não tem dúvidas: a proposta é “muito válida”, principalmente numa altura destas. “Devemos encontrar soluções de forma urgente, até porque tem havido um aumento no número de denúncias e de vítimas de abuso desde o início da pandemia”, explica. Em 2021, a Fundação Internet Watch registou um aumento de 64%, em comparação com 2020, nas denúncias confirmadas de abusos sexuais de crianças. Também no ano passado, diz a Comissão Europeia, foram denunciadas 85 milhões de imagens e vídeos de alegados abusos sexuais de crianças.

Números que apelam à urgência e à adoção de medidas fortes, diz Paulo Pelixo: “É uma problemática que exige medidas muito consistentes e por vezes, talvez, até duras para promovermos o combate a este fenómeno”. Do lado da defesa dos direitos digitais e da privacidade dos utilizadores, não há dúvidas da gravidade do fenómeno e da necessidade de proteger as crianças. Há dúvidas, sim, quanto à eficácia da proposta e do extremismo da medida. O eurodeputado alemão Patrick Breyer diz ao Observador que de acordo com a Polícia Federal Suíça, 87% das denúncias recebidas pelo método de “hashing” são “criminalmente irrelevantes”. Além disso, assegura que “não há provas de que esta estratégia sustenha a difusão da pornografia”, usando o exemplo do Facebook: “Eles já fazem monitorização das conversas de forma voluntária há alguns anos e as denúncias reportadas continuam a aumentar em cada ano”, garante o membro do Partido Pirata Alemão.

Ricardo Lafuente alinha com o eurodeputado. O vice-presidente da D3 aposta que a proposta “não terá qualquer efeito ou um efeito diminuto no combate à criminalidade” e que “os criminosos vão continuar a passar fora disto”, até porque muitos atacam e trabalham apenas em fóruns e redes privadas, muitas vezes até na deep e darkweb. Paulo Pelixo não nega essa realidade, mas lembra que uma parte da ação criminal acontece bem às claras e em espaços que todos conhecemos: “O aliciamento vai acontecer sempre que houver crianças. E nós sabemos exatamente que há crianças que são aliciadas, por exemplo, no Facebook, e noutras plataformas que todos utilizamos”. Por um lado, fica assim patente a importância da proteção das crianças, e por outro a importância do direito à privacidade. Numa balança, é difícil perceber qual pesa mais, mas à luz da lei haverá uma mais pesada que a outra?

O “princípio da proporcionalidade”, a bóia de salvação

No documento da proposta de regulamento, a Comissão Europeia não tem medo de assumir que o que está em causa é um dilema entre direitos: o direto à privacidade e o direito à proteção de menores. Logo na página cinco pode ler-se que a proposta quer “equilibrar de forma justa os vários direitos fundamentais em causa”, mas relembra também que em causa está “o contexto da luta contra o abuso sexual infantil online e a importância do interesse público em jogo”. Mais à frente, sublinha-se também que estes direitos não são absolutos, e por isso há margem para os limitar em situações extremas. E é aí que está a chave para a legalidade.

O Observador falou com João Ferreira Pinto. É advogado e foca-se na proteção de dados e cibersegurança. Foi ainda adido técnico na representação permanente de Portugal junto da União Europeia, durante a presidência portuguesa em 2021, e por isso mesmo teve um contacto próximo com a proposta da Comissão. Considera que o que está em causa é o “balanceamento de dois direitos fundamentais” e explica: “Para a proposta ser eficaz, tem de ser altamente intrusiva. E só há uma forma de o permitir, que é sacrificando até determinado ponto a nossa privacidade nas comunicações eletrónicas”. E esse “sacrifício” é legal? Sim, diz, mas apenas se “houver um regulamento ou uma legislação”. No fundo, acrescenta, a lei anda à volta de um dilema, em que é “preciso ponderar o que é mais importante: a nossa privacidade de comunicação ou o combate ao abuso sexual infantil”.

"É preciso ponderar o que é mais importante: a nossa privacidade de comunicação ou o combate ao abuso sexual infantil."
João Ferreira Pinto, advogado especialista em proteção de dados e cibersegurança

E é aqui que entra o princípio de proporcionalidade. Na proposta (página 12) pode ler-se que “sob reserva do princípio da proporcionalidade, as limitações só podem ser feitas se forem necessárias e corresponderem genuinamente a objetivos de interesse geral ou à necessidade de proteger os direitos e liberdades de terceiros”. Mas o que é, afinal, isto do princípio da proporcionalidade? João Ferreira Pinto explica: “Sempre que houver uma compressão de um direito fundamental, ela tem de ser justificada, balanceada e proporcional. Isto é, não se pode apagar o direito fundamental de todo”. O advogado exemplifica com o caso da pandemia e os estados de emergência: “O direito à vida é sagrado, mas não é ilimitado. Há circunstâncias em que infelizmente, por razões médicas, é preciso optar por uma ou outra, como aconteceu na pandemia. Inclusivamente, a nível constitucional, tivemos uma discussão no início da pandemia em Portugal, com as medidas restritivas em que se discutia qual era a proporcionalidade de as pessoas usarem máscara ou não poderem sair de casa”.

Luís Neto Galvão, sócio da SRS Advogados, advogado também especializado em tecnologias e privacidade, concorda e faz outra comparação, com o polémico caso dos metadados. Explica que o direito à privacidade não é absoluto e que por isso “pode ser limitado, o que é possível à luz da nossa Constituição e à luz da Carta dos Direitos Fundamentais Europeia”. No fundo, acrescenta, “o que a Comissão Europeia quer fazer é criar um regime de exceção relativamente a uma lei que protege a privacidade. Estamos a comprimir um direito fundamental para salvaguardar outros direitos e garantir maior eficácia no combate ao abuso de menores”.

E pegando no caso dos metadados: em caso de aprovação desta proposta, como é que pode ser transposta para o direito português? João Ferreira Pinto indica que não haverá muito a fazer: “Isto é um regulamento comunitário e os regulamentos comunitários não são transpostos para a lei nacional. Eles vigoram na ordem jurídica da União Europeia e por isso os Estados Nacionais só têm de cumprir, até porque vão negociar este regulamento no Conselho Europeu”. Resta agora saber quando. O eurodeputado Patrick Breyer diz que ainda não há datas previstas nem para debate nem para aprovação, mas deixa o aviso: “Da última vez, na lei temporária que está em vigor, tudo foi apressado numa questão de meses. E por isso admito que esta proposta seja decidida até ao final do ano”.

Até lá, o tempo será de reflexão, numa matéria complexa em que mais do que a lei, entra a ética e a moral. Em jogo, nos próximos meses, vai estar um dilema entre a privacidade dos cidadãos europeus ou o aumento da proteção das crianças na era digital.

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