Discurso de Luís Montenegro,
É com enorme honra e sentido de responsabilidade que assumo as funções de Primeiro-Ministro. (…) As eleições do passado dia 10 de março demonstraram a vontade do povo português na participação e na mudança política. O nosso propósito é, pois, respeitar e cumprir essa mudança. (…) Cabe hoje a todos os agentes políticos mostrar a sua maturidade e o seu grau de compromisso com a vontade dos portugueses.”
Luís Montenegro não foi além de uma vitória à tangente nas últimas eleições legislativas. Ainda assim, há um facto indesmentível: houve uma clara manifestação de vontade de mudança por parte dos eleitores — o PS, que estava no poder, perdeu quase meio milhão de votos em dois anos e teve o seu pior resultado desde 1987; e a balança política inclinou-se inegavelmente para a direita. Mas, ainda assim, existe outro facto indesmentível: com o “não é não” a André Ventura e com Pedro Nuno Santos a recusar servir de seguro de vida ao PSD, resta a Montenegro pedir “maturidade” a todos os envolvidos para que não precipitem o país em nova crise política.
Depois de termos tido duas interrupções de legislatura em dois anos, numa altura em que temos perto de nós dois focos de guerra, em que temos o desafio de executar o mais volumoso plano de investimentos desde a adesão à União Europeia, em que enfrentamos um elevadíssimo nível de pobreza em praticamente metade da nossa população e numa altura onde o Estado não responde adequadamente aos cidadãos no acesso a bens essenciais como a saúde, a educação ou a habitação, será imperdoável que a política se constitua como agravante e não como solução para tantos problemas.”
Aqui, mais uma vez, o social-democrata apela ao sentido de responsabilidade de todos. Mas com uma nuance. Além de lembrar o contexto internacional (guerra na Ucrânia e conflito israelo-palestiniano) e a necessidade de não desperdiçar a oportunidade única que é o volume de fundos europeus à disposição de Portugal, Montenegro sugere, nas entrelinhas, que o PS já foi responsável por duas crises políticas (2021 e 2023) e que foi a sua ineficiência que provocou a falência do Estado Social. Logo, “seria imperdoável”, alega Montenegro, que o PS não permitisse ao PSD resolver os problemas que ajudou a criar.
Este Governo está aqui para governar os quatro anos e meio da legislatura. (…) Não estamos interessados em jogos de semântica ou em exercícios políticos estéreis. Se este Governo, como espero e sei que é o desejo dos portugueses, tiver a sua investidura parlamentar e assumir a plenitude dos seus poderes, vai começar desde já a programar e executar reformas estruturais que mudem o país e o coloquem numa rota de prosperidade, de modernidade, de bem-estar, de sustentabilidade económica, ecológica e social. Este Governo não está aqui de turno, nem assumiríamos esta missão com esse intuito.”
É a resposta do novo primeiro-ministro a tudo o que tem sido dito e escrito sobre o Governo que agora toma posse — e que vai sendo repetido por muita gente na própria direção do PSD. Um Executivo que, atendendo ao facto de estar na dependência de André Ventura e/ou Pedro Nuno Santos, não passará para lá do próximo Orçamento do Estado (em outubro) ou, na melhor das hipóteses, que não durará mais de dois anos. Ora, o novo primeiro-ministro vem garantir que encara esta missão como sendo de quatro anos e meio e que não espera atirar a toalha ao chão — a menos, e isso faz parte da dramatização de Luís Montenegro, que seja derrubado.
Não rejeitar o Programa do Governo no Parlamento não significa apenas permitir o início da ação governativa. Significa permitir a sua execução até ao final do mandato ou, no limite, até à aprovação de uma moção de censura. Não rejeitar o Programa do Governo com certeza que não significa um cheque em branco, mas também não pode significar um cheque sem cobertura. Em particular o Partido Socialista, que governou 22 dos últimos 28 anos, apesar da sua legitimidade em se constituir como fiscalizador da ação do Governo e em alternativa futura, que compreendemos com total respeito democrático, deve ser claro e autêntico quanto à atitude que vai tomar: ser oposição democrática ou ser bloqueio democrático.”
É a maior novidade introduzida por Luís Montenegro na estratégia do PSD. Pedro Nuno Santos tem dito duas coisas: que não chumba o Programa de Governo; e que não ajuda a aprovar no próximo Orçamento do Estado. Ora, o social-democrata tenta com esta ideia virar o jogo ao contrário: se Pedro Nuno Santos não se opuser ao Programa de Governo, estará obrigado a abster-se, pelo menos, na discussão do OE2024 e, no fundo, a permitir a Montenegro que possa governar até existir uma moção de censura que o derrube. No essencial, esta jogada de Montenegro não muda nada, mas obriga Pedro Nuno Santos a repetir que é “praticamente impossível” não chumbar o próximo Orçamento do Estado. Numa legislatura que se vai fazer de narrativas, o social-democrata tenta, desde já, alimentar a narrativa de que está a ser bloqueado.
Temos a noção de que não ficámos um país rico só porque tivemos um superavit orçamental. Essa ideia coloca vários problemas: pode ser considerada uma ofensa para milhões de portugueses que vivem em dificuldades extremas por auferirem salários ou pensões baixas, por estarem afogados em impostos, por não conseguirem aceder condignamente a uma habitação, a cuidados de saúde ou mesmo a uma educação de qualidade; conduz à reivindicação desmedida e descontrolada de despesas insustentáveis; e a ideia de que estamos a viver em abundância induz o país a pensar que não há necessidade de mudar estruturalmente a nossa economia e o Estado, porque afinal parece que está tudo bem. Esta ideia é perigosa, é errada e é mesmo irresponsável.”
O social-democrata faz, aqui, a gestão de danos possível. Nas últimas semanas, em particular depois da campanha eleitoral, ficou a ideia de que existe uma margem extraordinária que permitirá resolver todos os problemas que ficaram pendentes. Durante a campanha, Montenegro comprometeu-se a responder às reivindicações de professores, forças de segurança e profissionais de saúde, e ainda a reduzir impostos e dar um sinal aos pensionistas. Acontece que a margem orçamental que existe (a existir) não corresponde às expectativas que foram criadas — pelos próprios e pela oposição. Os sociais-democratas sabem que não terão estado de graça e que só há uma oportunidade para deixar uma primeira boa impressão; mas baixa as expectativas para gozar, pelo menos, de algum benefício da dúvida.
Os resultados que queremos atingir são ambiciosos, mas realistas. São alcançáveis com coragem e capacidade transformadora.”
Montenegro elenca depois as prioridades do Governo que agora lidera. Reduzir o IRS, em especial da classe média e dos jovens; reduzir o IRC de 21% para 15% em três anos; a isenção do IMT para a compra da primeira casa e a redução da fiscalidade sobre o setor, em conjunto com uma redução da burocracia e dos custos de licenciamento e a utilização dos imóveis do Estado; um programa de emergência para a saúde que será apresentado até ao dia 2 de junho; na Educação, o investimento no capital humano, na cultura e na ciência, aumenta o potencial de criação de riqueza do país e com isso possibilita gerar melhores empregos e melhores salários, e fixar os jovens em Portugal; uma política que remova os principais obstáculos à natalidade; na Segurança, reforço da prevenção, a proximidade e a área da cibersegurança; na Justiça, a celeridade e a simplificação processual são eixos fundamentais para dar confiança aos cidadãos, às instituições e aos agentes económicos.
Falando de investimentos, impõe-se uma palavra sobre o PRR. O PRR, como de resto os outros fundos, não pode ser mais uma oportunidade para desbaratar dinheiro público. Tem de ser uma oportunidade de investimento reprodutivo que alicerce uma economia forte e resiliente.”
Luís Montenegro tem estado praticamente em silêncio desde que foi indigitado como primeiro-ministro. Com uma exceção: a visita a Bruxelas, onde se encontrou com Ursula von der Leyen e Roberta Metsola, a presidente da Comissão Europeia e a presidente do Parlamento Europeu, respetivamente, um dia depois da audiência com Marcelo Rebelo de Sousa. Já nessa altura, Montenegro sugeriu que o governo de António Costa se despediu com um “panorama muito otimista” sobre a execução dos fundos europeus, que pode esconder uma realidade bem diferente. “Espero que não haja nenhum problema quanto ao cumprimento dos compromissos”, avisou na altura o social-democrata. Desta vez, Montenegro, que, como líder do PSD, criticou várias vezes o plano do Governo para a distribuição de fundos europeus (demasiado Estado, poucas empresas, lamentou sempre), avisa que, no que estiver ao alcance dos sociais-democratas, o plano será readapatado.
Duas áreas finais que quero distinguir nesta ocasião. A primeira, o combate à corrupção. Este combate tem de ser nacional. Deve mobilizar todos. O Governo, como é público e claro do programa eleitoral sufragado pelos portugueses, tem propostas ousadas e inovadoras nesta matéria. Mas importa reconhecer que há propostas apresentadas pelos vários partidos parlamentares que merecem ser igualmente estudadas, discutidas e consideradas. Ninguém tem o monopólio das melhores soluções. O contributo de todos é essencial. Nesse sentido, gostaria de anunciar hoje: irei propor a todos os partidos com assento parlamentar a abertura de um diálogo com vista a uma fixar uma agenda ambiciosa, eficaz e consensual de combate à corrupção.”
Foi outro trunfo revelado esta terça-feira por Luís Montenegro: amarrar todos os partidos num debate sobre o combate à corrupção. Além de ter o mérito de responder a uma perceção de algum descrédito que se vai instalando entre muitos portugueses, o novo primeiro-ministro tenta prender André Ventura e impedir que o líder do Chega fique a falar de forma isolada (e muitas vezes de forma populista) sobre corrupção. Montenegro fixou o o prazo de “dois meses” para fechar o plano e chegar às vésperas do Orçamento do Estado com medidas concretas e consensualizadas para apresentar. A ser bem sucedido (o que é um grande “se”), Montenegro conseguiria esvaziar em parte o discurso de André Ventura e ter contas para apresentar se e quando for chamado a ir a votos.
A segunda área, a juventude e o combate à burocracia. Tomei a iniciativa de criar um novo ministério que visa dar a esses dois temas um tratamento transversal no Governo.”
Mesmo na reta final do discurso, o novo primeiro-ministro enquadra a criação do novo Ministério da Juventude e Modernização, que será liderado pela sua vice-presidente e antiga líder da JSD, Margarida Balseiro Lopes. Prometendo um esforço concertado e alargado a todos os ministérios no combate à burocracia, “um imperativo de eficácia do Estado”, o novo primeiro-ministro centrou depois as baterias nas respostas para os mais jovens. “Não me resigno, não nos conformamos com a situação que vivemos em Portugal. Os nossos jovens qualificam-se como nunca, mas cerca de um terço vai para o estrangeiro em busca de uma oportunidade. Isto é um flagelo familiar, social e económico. Não podemos mais assobiar para o ar e negligenciar esta realidade”, disse. Além da responsabilidade de encontrar respostas concretas para problemas concretos, há o lado simbólico deste ministério: a preocupação de entregar a pasta da Juventude a Balseiro Lopes, a ministra mais jovem da história, precisamente para dar resposta a um dos segmentos sociais (e eleitorais) que mais têm fugido aos partidos tradicionais.