Cinco a sete minutos (como o lusco-fusco) é o recorde. Quinze a 30 minutos é a promessa. Dezoito minutos é a média. Os números são da Bairro, uma das empresas de entregas ultra rápidas que no último ano tomaram de assalto as ruas de Lisboa. O fenómeno é global e ganhou fôlego com a pandemia. E Portugal não escapou. Mas afinal, que empresas são estas, que ‘invadiram’ as cidades com motas de cores berrantes, recebem quantidades astronómicas de investimento, perdem (muito) dinheiro antes de começarem a ganhar, mas garantem que vieram para revolucionar o mercado das compras online?
“São o equivalente online a uma estação de serviço”, resume Gonçalo Soares da Costa, fundador e CEO do Mercadão, um marketplace conhecido por fazer a recolha dos produtos e as entregas do Pingo Doce. “Queremos ver um filme, mandamos vir um gelado e ele chega em 15 minutos. É bom, é cómodo. Se vamos passar a fazer todas as nossas compras nestes serviços? Diria que não, mas também ninguém pretende isso. Há espaço para todos”, sublinha, descartando a hipótese de o Mercadão, que foi recentemente comprado pela Glovo, se aventurar no segmento ultra rápido.
Se o público alvo de plataformas como o Mercadão são famílias — 80% dos clientes são mulheres dos 35 aos 45 anos — que ali fazem as compras semanais, o segmento dos 15 minutos é procurado, sobretudo, por “pessoas jovens que vivem sozinhas”, aponta Gonçalo Soares da Costa. “Isso vê-se até pela forma como essas empresas comunicam, são marcas mais joviais, que apelam aos mais novos. O que não quer dizer que a família tradicional não use”, nota.
Foi, precisamente, a necessidade surgida durante um dos picos da pandemia, em dezembro de 2020, que levou Milana Dovzhenko e os dois sócios a avançar para a criação da Bairro. A oferta das plataformas que já existiam era limitada, e a grande distribuição estava a demorar semanas a completar as entregas, lembra Milana ao Observador. “Percebemos que havia uma lacuna nas entregas rápidas. E que já existiam soluções na Alemanha, na China e nos Estados Unidos”, conta. Os resultados dos primeiros testes foram prometedores e hoje, um ano e meio depois, a empresa faz um balanço “positivo”. Recebe mais de cinco mil pedidos por semana, regista um crescimento médio de 40% por mês e tem uma retenção “elevada” por cliente, de três a quatro compras mensais. “Tem sido encorajador”.
Ente os consumidores-tipo está o millennial, com filhos, “que faz compras um pouco maiores”, sobretudo de fruta e vegetais para as refeições da semana. Seguem-se os mais jovens, “mais vocacionados para snacks, gelados e soft drinks”. E o consumidor a partir dos 40 anos, “que encomenda porque percebeu na pandemia que é fácil”. Depois de Lisboa e Almada, a Bairro está prestes a acelerar para o Porto. E já tem a expansão internacional em vista. Milana não desvenda ainda o destino, garante apenas que não é Espanha.
Uma corrida que não é para todos
Além da Bairro, o mercado das entregas ultra rápidas de mercearias em Portugal conta, para já, com outros dois players: a turca Getir, que aterrou no país em outubro de 2021, e a Bolt Market, que arrancou um mês depois. A única coisa que têm em comum é o facto de serem ambas gigantes internacionais. A Getir surgiu em 2015, na Turquia, como empresa de entregas ultra rápidas de mercearias. Já a Bolt foi criada na Estónia, em 2013, como plataforma de mobilidade. Ao transporte de passageiros juntou a micromobilidade, com bicicletas e trotinetes, a entrega de comida e, mais recentemente, a entrega de mercearias em 15 minutos.
“As tecnológicas pegam em indústrias que há muito tempo não sofrem mudanças, como é o caso do retalho. Com a pandemia e as dificuldades que os supermercados tiveram para dar resposta às encomendas, foram aparecendo estas empresas”, constata Pedro Vasconcelos, co-fundador e CEO da Batch, uma empresa de logística que faz entregas para outras empresas no espaço de duas a 24 horas, e que está “completamente fora” da corrida pelos 15 minutos.
“Esta busca pelos 15 minutos é algo muito desafiante tecnologicamente. Há toda uma máquina de desenvolvimento e de código atrás que é muito forte e que precisa de muito desenvolvimento para se conseguir fazer uma operação rentável”, resume.
É aí, garante Milana Dovzhenko, que reside uma parte dos resultados positivos da Bairro. A empresa tem um armazém central em Lisboa que está ligado a seis mais pequenos, as chamadas dark stores. “Temos garantia de stocks porque trabalhamos com uma tecnologia inovadora que nos permite controlá-los em tempo real, que é muito diferenciadora”, garante. “Muitas vezes, o que acontece é as plataformas não terem integração entre a loja e os programas que fazem a gestão do armazém. Também temos uma solução de picking (recolha) que nos permite recolher os pedidos em dois minutos com 99% de precisão”, acrescenta.
A Bairro trabalha diretamente com 45 fornecedores como a Pepsi Co, a Coca Cola, a Procter and Gamble ou Beisdorf, e ainda com produtores locais e marcas mais pequenas. “Todas vão entregar as mercadorias ao armazém central para nós distribuirmos. Tudo isto permite-nos ter perdas muito reduzidas, abaixo de 4%, e margens de venda saudáveis”, assegura. “Encomendamos o que precisamos em tempo real e não em volume. O retalho tem muitas ineficiências e a tecnologia pode resolver isso. É um negócio que vai além da entrega rápida”, defende. “Não basta fazer o last mile se depois o offline passa por comprar em cash and carry, como alguns players fazem, e depois os produtos não chegam. A garantia de stock é muito importante”, destaca. “É muito difícil para uma tecnológica, sem grande talento ou experiência no retalho alimentar, fazer isto bem. Nós temos tudo”, ressalva Milana. Dois dos fundadores da Bairro contam com oito anos de experiência em comércio eletrónico, e o terceiro trabalhou durante 20 anos no retalho alimentar, em empresas como a Makro.
A explicação de Milana sobre as “margens de venda saudáveis” tem um contexto. Não falta quem duvide da viabilidade do modelo de negócio destas empresas, e até já se fala numa ‘bolha’ prestes a rebentar no setor. Segundo dados do PitchBook, as startups deste setor garantiram financiamento de 9,6 mil milhões de euros no espaço de um ano, em 2021. Mas o seu modelo de negócio está longe de provar ser rentável. Uma investigação do The Wall Street Journal revelou que uma delas, a Fridge No More, por cada pedido médio de 30 dólares, perde três. Juntando os gastos com as campanhas de marketing, que são agressivas, sobretudo nas redes sociais, as perdas aumentam para 20 dólares por cada encomenda entregue.
“Todas as empresas, quando começam, perdem dinheiro. É preciso é perceber qual o limite dessa perda e até onde estamos dispostos a perder dinheiro para ganhar o mercado. A Getir, em muitos dos mercados onde está presente, dá bastante dinheiro. Mas a concorrência é cada vez maior, cada vez se fazem mais descontos, e às vezes é esse balanço de crescimento que não é bem medido, e o próprio mercado acaba por ajustar estas empresas”, ressalva Pedro Vasconcelos. O Observador tentou contactar a Getir, mas os responsáveis da gigante turca não se mostraram disponíveis para falar.
Numa entrevista recente à Business Insider, o fundador da Getir, Nazim Salur, descreveu a sua empresa como um avião, que precisa de muito combustível para descolar mas que, assim que está no ar, atinge a velocidade de cruzeiro e estabiliza. A gigante turca, que está presente em nove países, recebeu elevadas quantidades de investimento nos últimos anos, que a elevaram à condição de ‘decacórnio’, ou seja, de startup avaliada em mais de dez mil milhões de dólares. A última teve lugar já em março, e garantiu à empresa mais 768 milhões de dólares em financiamento. Vale hoje cerca de 12 mil milhões.
Mas neste setor, até as gigantes vacilam. E alimentam as dúvidas sobre a viabilidade dos negócios. Na última semana de maio, a Getir anunciou, num comunicado interno citado pelo site especializado TechCrunch, o despedimento de 4.500 trabalhadores, o equivalente a 14% do total dos colaboradores da empresa. Ao mesmo tempo, suspendeu os seus planos de crescimento, e vai avançar para o corte de custos com publicidade, marketing, promoções e descontos, que nos últimos anos contribuíram para criar a identidade da empresa junto dos consumidores.
O anúncio não apanhou de surpresa os conhecedores do mercado. Pedro Vasconcelos lembra que a Getir é “muito bem estruturada e já provou que consegue fazer dinheiro”, e até é das empresas que “está mais bem posicionada para continuar a operar”. Mas olhando para o mercado como um todo, tem dúvidas sobre a sobrevivência de algumas marcas. “Estas empresas tiveram um crescimento muito rápido, porque tiveram uma tração muito grande por parte dos consumidores, e os fundos de capital de risco, muito focados no crescimento a todo o custo, acabaram por investir quantias a que não estamos acostumados em negócios que ainda não tinham tido tempo para provar o seu valor”, resume.
“Agora, com o mercado a ajustar, as empresas que foram inflacionadas acabaram por levar o choque do mercado, não valem assim tanto. Não conseguem suportar uma estrutura de trabalhadores tão grande e ajustam-se, fecham mercados, despedem colaboradores. O que se diz é que hão de vir mais despedimentos”, antecipa. O líder da Batch recusa, ainda assim, falar em ‘bolha’. “Se calhar é um mercado que ainda não vale tanto como se pensou, mas não lhe chamaria bolha. Aconteceu o mesmo com a Uber ao início, mas acabou por encontrar o seu espaço. Ajustou-se no ecossistema da sociedade. Com estes serviços será igual. Mas houve, de facto, uma especulação grande em torno delas”.
“No início, o crescimento espetacular destas empresas era algo muito prometedor do ponto de vista do retorno. O foco esteve em muito crescimento nos últimos dois anos, com grandes investimentos, rondas de investimento muito sérias. Mas desde janeiro, as tecnológicas têm sido castigadas. Hoje a tónica está mais na rentabilidade. Em rentabilizar os investimentos em marketing para os negócios entrarem finalmente na rota do EBITDA positivo e tranquilizarem o investidor, provarem que isto não é só uma promessa”, acrescenta Gonçalo Rebelo de Almeida.
Um negócio que “só funciona em escala”
Para garantir um negócio rentável, o que várias empresas fazem é cobrar os produtos acima do preço do supermercado e acrescentar uma taxa de entrega, que ronda os dois euros. “Onde as empresas têm de rentabilizar é ao garantir o número máximo de entregas por hora e por estafeta. Por isso é que o estafeta só pode ir até x quilómetros”, aponta o CEO da Batch. Para isso, é preciso ter várias pequenas ‘lojas escondidas’ espalhadas pelas cidades, para conseguirem cobrir a cidade toda no mínimo de tempo possível. Não é um negócio fácil, sentenciam os especialistas. E, por isso, nem todos conseguem aguentá-lo durante muito tempo. Não surpreendem, por isso, os anúncios frequentes de aquisição de empresas por parte de outras maiores. “Sem dúvida que é um negócio que só funciona em escala”, defende Pedro Vasconcelos.
Recentemente a Getir comprou duas concorrentes, a britânica Weezy e a espanhola Block. “Há alguns operadores muito grandes, muito bem financiados, que podem dominar o investimento em marketing, e operadores mais pequenos que têm dificuldade em ter uma notoriedade semelhante, pelo que a tendência será para consolidação do mercado”, diz o CEO do Mercadão. “O negócio é exigente, como tudo o que é retalho alimentar. As margens são baixas, não é como a moda ou a joalharia. Para ter escala, não se pode ter mil concorrentes. Faz sentido crescer, por um lado, organicamente, mas também por aquisições. Com escala, o negócio torna-se sustentável. É difícil um negócio ser duradouro” neste setor, ressalva.
Milana Dovzhenko, CEO da portuguesa Bairro, conhece bem esta realidade. Confessa que já teve “conversas” com praticamente todas as grandes empresas que operam na Europa nesse sentido, mas ainda não chegou o momento da aquisição. Nem sabe se alguma vez chegará. “Acreditamos que o nosso talento e potencial é forte e diferenciador. As consolidações acontecem, são saudáveis e inevitáveis, mas o importante é perceber quem será o líder do mercado. Liderar um negócio de retalho alimentar a partir de outro país é muito complicado”, conclui, sem adiantar quais as perspetivas da empresa para o futuro próximo.
Tal como os restantes especialistas, Milana rejeita que exista uma “guerra” pelo mercado nacional. “Portugal é um mercado por criar. A guerra está a acontecer em mercados líderes como Alemanha, França, EUA. São os chamados tier 1 market, nós somos um mercado virgem. Estamos na fase de educar o consumidor”, resume. E é secundada por Gonçalo Rebelo de Almeida. “O nosso cenário é menos agressivo do que noutras geografias, porque é um mercado mais pequeno, não é tão impactante nas contas das grandes empresas e nos objetivos como mercados como Alemanha ou Espanha”. Mas possíveis candidatos não faltam.
Gorillas em Portugal: um plano que ficou pelo caminho
Uma das gigantes mundiais que anda a calcorrear terreno é a Gopuff. Nascida e criada nos Estados Unidos em 2015, já marca presença no Reino Unido, lançou-se em França em março e está em pré-lançamento em Madrid. Planos para chegar em Portugal no curto prazo não existem, revela a empresa ao Observador. “Mas temos a ambição de nos tornarmos uma empresa verdadeiramente global”, diz a mesma fonte oficial. Para já, a Gopuff diz-se “focada em aprofundar a presença no Reino Unido e em França”.
Aquela que é considerada uma das empresas pioneiras no mercado das entregas super rápidas nasceu quando os dois fundadores, ainda estudantes universitários, quiseram tornar possível a compra de snacks noturnos, como doces ou batatas fritas, sem ser necessária a deslocação a uma loja de conveniência. Hoje, a Gopuff é um dos decacórnios das entregas rápidas. Está avaliada em 15 mil milhões de dólares. Só no ano passado, a empresa levantou mais de dois mil milhões de dólares. Para “queimar” dinheiro, é preciso angariar dinheiro.
Não sendo, para já, uma empresa cotada, apesar de ter havido conversas nesse sentido com a Goldman Sachs, são poucos os detalhes que se conhecem sobre o funcionamento da operação. O portal de notícias Axios revelou que, em 2021, a Gopuff terá registado receitas de dois mil milhões de dólares, e um resultado antes de juros, impostos, depreciações e outras amortizações (EBITDA) de 500 milhões de euros negativos.
Outro exemplo é a alemã Gorillas. Fundada em março de 2020 na Alemanha, foi acumulando rondas de investimento multimilionárias, tendo levado apenas um ano a atingir o estatuto de ‘unicórnio’, ou seja, uma avaliação de mil milhões de dólares. Foi conquistando a Europa a galope e, no ano passado, era dada como certa a entrada no mercado português, para onde a empresa tinha dezenas de vagas abertas. Mas o plano acabou por cair. Contactada pelo Observador, a Gorillas reconhece que o “hiper crescimento” deixou de ser a meta, e que a empresa prefere agora focar-se em cinco mercados principais.
“Tal como muitas outras startups e empresas do setor tecnológico, a Gorillas está neste momento a trabalhar num ambiente global desafiante e complexo. Depois da nossa última ronda de investimento, em outubro de 2021, o nosso foco deixou de ser o hiper crescimento para passar a ser a rentabilidade, o que nos permitiu aumentar significativamente a eficiência do nosso negócio”, começa por explicar fonte oficial da empresa.
“Os desenvolvimentos recentes no mercado de capitais confirmaram esta estratégia e provaram que precisamos de reforçar o foco da empresa na direção da rentabilidade”, sublinha, numa referência às quebras expressivas que o setor tecnológico tem registado desde o início do ano. “Cerca de 90% das nossas receitas provêm de cinco mercados chave, que entraram no caminho da rentabilidade: Alemanha, França, Reino Unido, Países Baixos e Estados Unidos. Por esse motivo, decidimos afinar o nosso foco e continuar a crescer nestes cinco mercados, onde vemos um enorme potencial num futuro próximo”, conclui a mesma fonte, corroborando a lógica seguida pela Getir. Tal como a empresa turca, também a Gorillas anunciou despedimentos há poucas semanas.
Neste caminho rumo à rentabilidade, não só Portugal desapareceu do mapa da Gorillas, como a empresa abandonou quatro mercados onde já operava. Espanha foi um deles. Segundo a Business Insider Espanha, a empresa está a tentar vender a operação do país vizinho a um parceiro. A nível global, a Gorillas anunciou o despedimento de 300 pessoas, que deverá abranger sobretudo pessoal administrativo, e não os cerca de 14 mil riders, ou entregadores.
Não parece haver dúvidas de que o modelo de negócio das entregas em 15 minutos veio para ficar. O setor do retalho na Europa vale cerca de 3,2 biliões de euros, segundo o Statista, sendo que perto de metade deste valor cabe ao retalho alimentar. O online representa, nesta altura, 4%. Mas ainda há caminho por desbravar. Um estudo da consultora Bain, citado pela Business Insider, conclui que para serem rentáveis, estas empresas têm que aumentar o preço mínimo dos pedidos dos 20 euros atuais para 30 euros, e atingir um volume de pedidos por dark store de mil por dia, sendo que na fase de lançamento registam, em média, 300, e na de crescimento cerca de 600. “Tudo o que é grande começa pequeno, temos isso escrito na parede do escritório”, reconhece Pedro Vasconcelos, da Batch. “Este tipo de modelo faz muito sentido. A minha questão é, onde acaba a sustentabilidade e começa o crescimento a todo o custo”. E a toda a velocidade.