[Nota: este é o primeiro artigo de uma série de seis]
Ao contrário dos monarcas e senhores da guerra de outras eras, que soíam saquear e devastar territórios, escravizar, deportar e massacrar povos, locupletar-se com riquezas alheias e apropriar-se de feudos e reinos sem dar explicações seja a quem for, os governantes modernos sentem necessidade de justificar os seus arroubos bélicos e expansionistas, ainda que as razões aduzidas costumem ser esfarrapadas, incongruentes e até risíveis. Os próceres de outras eras não tinham de prestar contas a um parlamento democraticamente eleito e, muito menos, de preocupar-se com a “opinião pública”; a única “sensibilidade” a que tinham de atender era a vontade das suas tropas em continuar a marchar e combater. Átila não lançava invasões e raziaes em função de estudos de opinião sobre a sua popularidade entre os hunos, Alexandre o Grande não auscultou os povos macedónio e grego antes de arremeter contra o Império Persa e Napoleão não precisou de lançar uma campanha de propaganda antes de invadir a Rússia – mas até Alexandre se viu forçado a desistir de tentar juntar a Índia à sua impressionante lista de conquistas, por os seus soldados, esgotados por uma caminhada de 35.000 km, pontuada por numerosas batalhas, escaramuças e privações, e roídos pelas saudades de casa, se recusaram a prosseguir para Oriente.
Mesmo pelos padrões do nosso tempo, em que, quer nas democracias quer nas autocracias, todas as intervenções externas são minuciosamente justificadas, o zelo que a Federação Russa tem colocado na legitimação da invasão da Ucrânia é invulgar, até pelo envolvimento directo do chefe de Estado russo nessa operação de mistificação. Entre as peças de retórica que Vladimir Putin produziu sobre este tema, há três particularmente significativas: uma foi o ensaio “Sobre a unidade histórica de russos e ucranianos”, publicado a 12 de Julho de 2021; outra foi o discurso proferido a 21 de Fevereiro de 2022, perante a Assembleia Federal da Rússia e transmitido pelas televisões; esta ominosa alocução teve continuidade, três dias depois, no anúncio do lançamento da “operação militar especial”. Como complemento, é elucidativa a leitura do discurso de 21.06.2023, proferido perante a Assembleia Federal Russa.
Uma agressão virtuosa
As pessoas bem-pensantes e que amam a Paz costumam dar crédito ao argumento de Vladimir Putin que justifica a “operação militar especial” na Ucrânia com a necessidade de “garantir a segurança da Rússia e eliminar o perigo proveniente do regime neo-nazi que tomou conta da Ucrânia após o golpe de Estado de 2014” e que tem promovido “ataques terroristas” contra a população russófona do Donbas, empregando “batalhões nacionalistas treinados nas academias e escolas do Ocidente” e armados pelo Ocidente, como afirmou no seu discurso de 21.06.2023.
Esta atitude das pessoas bem-pensantes e que amam a Paz é compreensível: o nazismo goza – justificadamente – de péssima reputação e é mesmo visto como sinónimo de Mal Absoluto. A má imprensa do nazismo leva a que, nos países democráticos, até os partidos no extremo direito do espectro político neguem serem nazistas (com excepção de alguns grupelhos de gente visivelmente transtornada que exibe suásticas, faz saudações de braço esticado, colecciona memorabilia das SS e discute o visionarismo de Mein Kampf nos seus fóruns da Internet). Até o termo “fascista”, que tem conotação menos odiosa do que “nazi”, é cuidadosamente evitado e se acaso um militante de extrema-direita, num momento de arrebatamento ou irreflexão, admite publicamente ser fascista ou perfilhar um ideário fascista, logo se apressa a corrigir o tiro e a alegar que estava a ser irónico. Há partidos que têm o aspecto de um pato, nadam como um pato e grasnam como um pato, mas recusam terminantemente serem designados como “patos”.
Assim sendo, quem se oponha à ideia de perseguir nazis, na Ucrânia ou noutro lugar, é automaticamente colocado na mesma gaveta moral dos que aprovam os maus tratos a animais, a pedofilia, a chacina de focas bebés e a eutanásia compulsiva de velhinhos.
Outra justificação de Putin para lançar a sua “operação militar especial” que as pessoas bem-pensantes e que amam a Paz também costumam acolher favoravelmente é a de que a NATO – um joguete do imperialismo americano – estaria a cercar a Rússia, atraiçoando compromissos assumidos no início da década de 1990 (ver “Acordos escritos com tinta invisível” em De Kaliningrad a Petropavlovsk: A geografia da Rússia, um país que se diz “cercado”), e de que a Ucrânia estaria na iminência de aderir a esta aliança militar. Os EUA e a NATO, que já tinham vindo a “instalar as suas bases militares e os seus laboratórios secretos de armas biológicas junto das fronteiras russas”, estariam a preparar “o regime de Kiev, que estava sob o seu controlo, e a Ucrânia, que tinham escravizado, para uma guerra de grande escala” contra a Rússia. Por outras palavras, a Rússia visa “defender vidas humanas e a nossa casa comum, enquanto o Ocidente ambiciona poder ilimitado”. No discurso de 24.02.2022, Putin explicou que a ofensiva do Ocidente contra a Rússia começara imediatamente após a desintegração da URSS: “tentaram dar-nos o golpe de misericórdia, exterminar-nos e destruir-nos completamente. Assim, na década de 1990 e no início do século XXI o Ocidente apoiou activamente o separatismo e os bandos de mercenários na Rússia meridional. São incalculáveis as vítimas, perdas e provações que sofremos nesse período, até conseguirmos quebrar a espinha do terrorismo internacional no Cáucaso!”.
O lobo e o cordeiro
Temos, portanto, três argumentos de peso – desnazificação, travagem de um genocídio, autodefesa perante uma tentativa de estrangulamento por uma coalizão movida por intuitos belicistas e expansionistas – cada um dos quais bastaria, por si só, para legitimar a “operação militar especial” russa, ainda que infringindo, eventualmente, algumas disposições do direito internacional que regulam as relações entre nações soberanas. Mas a Rússia invocou mais três razões, não menos ponderosas, para legitimar a sua actuação:
1) Os protestos de 2013-14 (que ficaram conhecidos como “Euromaidan”) e a subsequente fuga de Viktor Yanukovych, o presidente ucraniano pró-russo eleito em 2010, foram orquestrados pelo Ocidente, com o fito de operar uma mudança de regime e colocar no poder governantes hostis à Rússia.
2) Foram estes (alegadamente ilegítimos) governantes ucranianos pró-ocidentais que faltaram ao estabelecido nos Acordos de Minsk, firmados em 2014-15 e que visavam cessar as hostilidades entre tropas governamentais ucranianas e milícias separatistas nas províncias de Donetsk e Luhansk (que eclodiram na sequência da anexação/libertação da Crimeia pela Rússia, em 2014).
3) Os governantes ucranianos pró-ocidentais têm vindo a suprimir activamente todas as manifestações do legado cultural russo (nomeadamente a língua russa) no Leste da Ucrânia.
No seu afã de justificar a “operação militar especial”, a liderança política e espiritual russa tem, por vezes, recorrido a argumentos que extravasam o domínio do direito internacional e da geopolítica e entram na esfera dos princípios morais: a 23 de Fevereiro de 2022, na véspera da “operação militar especial”, Putin instou os militares ucranianos a “tomarem o poder nas suas mãos” e a derrubarem o “bando de drogados e neo-nazis que tomaram conta de Kiev e têm o povo ucraniano como refém”. A 6 de Março de 2022, Kirill, Patriarca de Moscovo, Primaz da Igreja Ortodoxa Russa e um dos mais sólidos aliados de Putin, descreveu a “operação militar especial” como uma “luta de natureza metafísica” que visa impedir que abominações como as “paradas do Orgulho Gay” cheguem ao território da Santa Mãe Rússia; o padre Elizbar Orlov, de Rostov, enalteceu-a por “estar a limpar o mundo da infecção do demónio”.
Esta ginástica retórica faz lembrar a fábula de Esopo, retomada no século XVII por La Fontaine, em que um lobo que bebe de um ribeiro vê um cordeiro que faz o mesmo uns metros a jusante e o acusa de conspurcar a água que ele bebe; quando o cordeiro refuta a acusação, por desafiar as leis da física, o lobo salta para um argumento completamente diferente: do que acusa o cordeiro é de, no ano anterior, o ter vilipendiado. O cordeiro faz-lhe ver que nessa altura ainda nem sequer era nascido, ao que o lobo retorque que o difamador terá, então, sido um seu irmão. E como o cordeiro responda que não tinha irmão algum, o lobo conclui “Então terá sido alguém da tua família” e devora o infeliz. A fábula, cuja moral é sintetizada por La Fontaine na frase “A razão do mais forte é sempre a melhor”, acabaria por dar origem a dois provérbios russos: “O mais forte culpa sempre o mais fraco” e “A tua culpa anda a par da minha fome”.
Os melhores amigos dos nazis
Na propaganda russa para justificar a invasão da Ucrânia, pode fazer-se uma distinção entre a que envolve “factos” recentes –a Ucrânia estaria a desenvolver armas biológicas e nucleares, a NATO estaria a planear usar a Ucrânia como plataforma para atacar a Rússia, a Ucrânia seria governada por neo-nazis e drogados e esse Governo estaria a promover o genocídio das populações russófonas do Donbas – e a que envolve “factos” históricos, alguns deles remontando à Idade Média.
No seu discurso de 21.06.2023, Putin sublinhou que qualquer pessoa com conhecimentos de História saberia que o uso da Ucrânia pelo Ocidente como peão contra a Rússia não é uma nova estratégia, uma vez que “na década de 1930, o Ocidente tinha, na prática, aplanado o caminho dos nazis para o poder na Alemanha”. Esta perspectiva não só é desprovida de qualquer fundamento, como os factos históricos atestam o inverso: entre 23 de Agosto de 1939, quando foi assinado o Pacto Molotov-Ribbentrop, e 22 de Junho de 1941, quando a Alemanha desencadeou a Operação Barbarossa, a URSS foi um precioso aliado da primeira (bem mais útil, na prática, do que a Itália de Mussolini), apesar das ideologias antitéticas professadas por Hitler e Stalin, da “guerra-por-interpostas-pessoas” que travaram em Espanha e da intenção repetidamente manifestada por Hitler de aniquilar a URSS e o comunismo.
Durante este idílio cínico e oportunista, a Alemanha de Hitler e a URSS de Stalin congeminaram e puseram em prática um plano de invasão e anexação de países vizinhos e a URSS providenciou combustíveis e matérias-primas indispensáveis ao funcionamento e reforço da máquina de guerra alemã, tornando inoperantes as sanções com que o Ocidente tentou cercear os ímpetos belicistas germânicos (ver capítulos “Com a ajuda de Lenin e Stalin” e “Não há pior cego do que aquele que não quer ver” em Nazis de turbante e outros 10 episódios menos conhecidos da II Guerra Mundial). É pertinente perguntar se Hitler se teria atrevido a invadir a Polónia se Stalin não lhe tivesse garantido que não só não se oporia como até teria todo o gosto em ajudá-lo.
Stalin estava tão satisfeito com a aliança com Hitler que parecia estar disposto a mantê-la indefinidamente, quiçá na esperança de que este se encarregasse de aniquilar as democracias liberais, uma após a outra (tarefa que Hitler começou a desempenhar com impressionante eficácia). A fé de Stalin em Hitler era tão sólida que nem mesmo a acumulação de provas (algumas delas fornecidas pela Grã-Bretanha) de que a Alemanha estava a preparar um ataque de vasta escala contra a URSS o fez despertar da sua ilusão (ver capítulo “Richard Sorge” em Vai um chá com veneno? Histórias de espiões que acabaram mal).
Os eventos subsequentes a 22 de Junho de 1941, aliados à propaganda soviética, tiveram o condão de fazer perdoar e até esquecer o torpe conúbio Hitler/Stalin e coroar a URSS como campeã do anti-nazismo, galardão que Putin e a sua máquina de propaganda depois transferiram para a herdeira da URSS, a Federação Russa (ver capítulo “A Rússia como mártir e heroína da luta anti-fascista” em De Minsk a Pinsk: Como foram desenhadas a história e a geografia da “Rússia Branca”).
No plano interno, em 1932-33, enquanto os nazis lutavam para ascender ao poder na Alemanha, Stalin prosseguia a consolidação do seu domínio sobre a URSS, implementando medidas no domínio agrícola e fundiário que visavam extinguir de vez as veleidades independentistas da Ucrânia e diluir a sua identidade. A fome generalizada que daí resultou terá causado a morte de 3.5 a 5 milhões de ucranianos e ficou conhecida como Holodomor, termo então cunhado nas publicações das comunidades ucranianas exiladas no Ocidente. Porém, a propaganda soviética conseguiu que o Holodomor fosse ignorado ou visto como uma fantasia disseminada pelo nacionalismo ucraniano, e só a desclassificação de documentos oficiais após a desagregação da URSS revelou a sua crua factualidade (ver Morrer de fome no “celeiro da Europa”: O plano de Stalin para aniquilar a identidade ucraniana).
Uma operação de rebranding
O Holodomor não foi uma “aberração”, ou um caso isolado e incaracterístico, ou uma inexplicável “birra” de Stalin – insere-se na longa e atribulada história da relação entre a Ucrânia e a Rússia e é uma manifestação extrema da ideia, defendida por Putin e por muitos líderes e pensadores russos, de que a Ucrânia nunca teve existência como nação independente e que ucranianos e russos são um mesmo povo.
Esta falsificação histórica que tem vindo a ser construída pelos russos ao longo dos últimos três séculos já foi abordada nos artigos De Kaliningrad a Petropavlovsk: A geografia da Rússia, um país que se diz “cercado” e De Kharkiv a Mariupol: Como foram formadas as cidades que contam a história da Ucrânia, pelo que em seguida apenas se resumirão alguns passos pertinentes para a história das relações entre a Ucrânia e da Rússia.
O Rus’ de Kiev foi um estado fundado no século IX onde é hoje a Ucrânia e que teve como primeira dinastia governante os Rurikid. Estes devem o seu nome a Rurik, um chefe varangue que, em 862, terá assumido, com contando com o apoio dos seus irmãos Sineus e Truvor, o governo da região de Novgorod.
Os varangues são usualmente identificados como vikings suecos (conhecidos localmente como Rus’) que, difundindo-se para sul, leste e norte através dos rios que desaguam no Báltico, colonizaram os territórios hoje correspondentes à Bielo-Rússia, Ucrânia e Rússia ocidental. Segundo a lenda do “convite aos varangues”, as tribos locais ter-se-ão unido para expulsar os varangues, mas depois de o terem logrado, envolveram-se em guerras intestinas tão devastadoras que acabaram por pedir a Rurik e seus irmãos que voltassem e assumissem a sua liderança. Algumas fontes sugerem que terá sido Sineus, sucessor de Rurik, a transferir a capital do principado para Kiev, mas a informação sobre este período é tão rarefeita e contraditória que as certezas são poucas.
Um dos momentos decisivos na história do Rus’ de Kiev teve lugar na década de 980 e diz respeito ao baptismo, em Constantinopla, de Volodymyr/Vladimir I (c.958-1015), conhecido como “o Grande”, príncipe de Novgorod (de 970 a c.988) e Grande Príncipe de Kiev (de 978 a1015). Esta cerimónia foi um momento fulcral na cristianização do Rus’ de Kiev – e da Europa Oriental em geral – e coincidiu com o casamento de Volodymyr/Vladimir com Anna Porphyrogenita, irmã dos co-imperadores bizantinos Basílio II e Constantino VIII. Todavia, como acontece com quase toda a história dos primórdios do Rus’ de Kiev, as fontes apresentam narrativas discrepantes sobre estes eventos.
É importante esclarecer que o Rus’ de Kiev 1) não corresponde a nenhuma entidade política actual e 2) era constituído por uma amálgama de etnias, em que além de diversas tribos de eslavos orientais, que seriam maioritárias, se contariam os já mencionados varangues, tribos fino-úgricas e khazars e outras etnias turcomanas.
O Rus’ de Kiev atingiu a sua máxima extensão no reinado de Yaroslav o Sábio (1019-1054) a que se seguiu um processo de desagregação que facilitou a sua conquista pelos mongóis da Horda Dourada em 1236-40.
Entretanto, a nordeste de Kiev um principado que tivera como embrião um modesto povoado nas margens do Rio Moskva, que começou a ser fortificado em 1156, acabou por libertar-se do estatuto de estado-vassalo dos mongóis e do pagamento de tributo a estes e foi ganhando poder sobre os territórios em seu redor. O Grão-Ducado de Moscóvia, com sede nessa cidadezita à beira do Moskva, não tendo “pergaminhos” em que sustentar as suas pretensões expansionistas, acabou por apropriar-se do prestigiado legado do Rus’ de Kiev. Em 1547, Ivan IV (mais conhecido pelo seu cognome, “o Terrível”) fez-se coroar como “Czar de Todas as Rússias”, um título que tentava passar a ideia de que:
1) A Moscóvia não era apenas um entre vários reinos de Rus’, termo que, por esta altura, deixara de estar associado aos varangues e designava genericamente os vários povos eslavos orientais) mas o reino de todos os Rus’;
2) A Moscóvia era a herdeira espiritual e cultural do Rus’ de Kiev, nomeadamente da sua relação privilegiada com a Igreja Ortodoxa Oriental, com sede em Constantinopla;
3) Ivan IV era o herdeiro dos imperadores de Bizâncio, o que era atestado por um documento contendo 39 assinaturas – 35 das quais forjadas – de respeitáveis autoridades eclesiásticas de Constantinopla.
Esta distorção/usurpação da história dos eslavos orientais seria consolidada em 1721 por um sucessor de Ivan IV: nesse ano, Pedro I (dito “O Grande”), que, em 1682, fora coroado Czar de Todas as Rússias e dilatara consideravelmente os ganhos territoriais obtidos pelos seus antecessores, substituiu o título de “Czar de Todas as Rússias” pelo de “imperador da Rússia”, isto é, “governante de todas as Rússias; de Moscovo, de Kiev, de Vladimir, de Novgorod, czar de Kazan, czar de Astrakhan e czar da Sibéria, soberano de Pskov, grande príncipe de Smolensk, de Tver, de Yugorsk, de Perm, de Vyatka, da Bulgária, soberano e grande príncipe das terras baixas de Novgorod, de Chernigov, de Ryazan, de Rostov, de Yaroslavl, de Belozersk, de Udora, de Kondia e soberano de todas as terras setentrionais, das Terras Iverianas [hoje na Geórgia], das terras dos reis kartlianos e georgianos, da Kabardia [correspondente hoje à república russa da Kabardino-Balkaria] e dos príncipes da Circássia e das Montanhas [do Cáucaso] e de muitos outros estados e territórios, a Ocidente e Oriente, ali e acolá”. Este novo título não era apenas uma manifestação gratuita de bazófia, mas, como aponta o historiador Timothy Snyder, era “uma operação consciente de rebranding” da Rússia.
Esta operação foi prosseguida por Catarina II (dita “A Grande”), que reinou entre 1762 e 1796. Catarina era, originalmente, uma princesa alemã, de fé luterana, que, em 1744, a fim de casar-se com o futuro imperador Pedro III, se converteu ao cristianismo ortodoxo russo e mudou o seu nome de Sophie Friederike Auguste von Anhalt-Zerbst-Dornburg para Yekaterina Alekseyevna. Embora, dada a educação recebida na juventude, tivesse sido fortemente influenciada pelo ideário iluminista então florescente na Europa Ocidental, a faceta do Iluminismo que mais a seduziu foi o despotismo esclarecido: a condução dos assuntos de Estado deveria ser norteada pela razão, mas esta deveria andar de braço dado com a determinação e a firmeza – uma prática que também marcara o reinado de Pedro I.
Uma das acções mais relevantes dessa campanha de rebranding iniciou-se em 1783, Catarina II determinou a criação da Comissão para a Compilação de Notas sobre a Antiga História Russa. Ao longo de quase uma década de labor, esta comissão reformulou lendas, reescreveu crónicas, alterou datas em documentos e transferiu documentos dos arquivos no antigo Rus’ de Kiev para Moscovo, de forma a consolidar uma “narrativa” que conferia antiguidade e prestígio à Moscóvia/Rússia através da apropriação da história do Rus’ de Kiev e dava aos imperadores russos legitimidade para submeter não só todos os eslavos orientais como as etnias que habitavam territórios vizinhos. A invasão e a anexação passavam, assim, a ser apenas um reencontro de povos irmãos (os principais aspectos desta vasta e minuciosa reescrita da História foram sintetizados pelo historiador ucraniano Yaroslav Dashkevych (1926-2010) no artigo “Como a Moscóvia se apropriou da história do Rus’ de Kiev”).
Entretanto, na Ucrânia…
Enquanto a Moscóvia/Rússia dilatava as suas fronteiras e inventava para si um passado venerando e refulgente, no coração do território que constituíra o Rus’ de Kiev, muito tinha mudado desde a conquista mongol do século XIII: polacos e lituanos foram ganhando terreno aos invasores mongóis e reprimindo as aspirações independentistas dos príncipes locais e as revoltas da população e acabaram por assumir o controlo da maior parte do território ocupado pela moderna Ucrânia. Em 1569, o Grão-Ducado da Lituânia e o Reino da Polónia uniram-se na Comunidade Polaco-Lituana, ou República das Duas Nações, uma potência que atingiu a sua máxima expressão territorial nos séculos XVI-XVII, ainda que sem conseguir assegurar o controlo do que são hoje as regiões leste e sul da Ucrânia, onde reinavam os cossacos e os tártaros.
Só no terceiro quartel do século XVIII é que o Império Russo começou a tomar conta da Ucrânia (ou melhor: do território que é hoje a Ucrânia), tirando partido da fragmentação da Comunidade Polaco-Lituana, iniciada em 1772 e consumada em 1795.
No século XIX, a Ucrânia viveu repartida entre o Império Austro-Húngaro, que detinha a sua parte ocidental – o Reino da Galícia, com capital em Lviv (Lemberg para os germanófonos) – e o Império Russo, que se assenhoreara da maior parte do território. As populações das duas partes da Ucrânia tiveram experiências diferentes durante esse período: enquanto os austro-húngaros concederam alguma autonomia aos habitantes da Galícia, na Ucrânia sob controlo russo a necessidade de impor a “narrativa” de que o território sempre fizera parte da Rússia e de que os ucranianos eram (e sempre tinham sido) russos determinou a tomada de duras medidas para a supressão da identidade nacional ucraniana, que começava então a ganhar forma e a reivindicar autonomia. O ensino da língua ucraniana foi proibido e o mesmo aconteceu com a impressão de livros, jornais e outras publicações em ucraniano, o que levou ao êxodo de muitos intelectuais para a parte da Ucrânia sob controlo austro-húngaro. A língua é um dos esteios da identidade nacional e o ucraniano atesta claramente o que distingue ucranianos de russos. Embora exista alguma inteligibilidade mútua entre as línguas ucraniana e russa, a primeira tem maiores afinidades vocabulares com o bielo-russo, o polaco, o sérvio e o eslovaco (por esta ordem), surgindo o russo apenas em 5.º lugar. Se se considerarem semelhanças fonéticas e gramaticais, o russo surge apenas em 13.º lugar na hierarquia de afinidades – e isto apesar dos mais de dois séculos que a Ucrânia passou sob domínio da Rússia/URSS e das políticas activas de “russificação” implementada durante esse período.