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[Nota: este é o terceiro artigo de uma série de seis. Leia aqui o primeiro e o segundo]

A paixão pela História

A 20 de Agosto de 2022, uma explosão num veículo em Bolshiye Vyazyomy, perto de Moscovo, matou instantaneamente a sua única ocupante, a popular jornalista e politóloga Darya Dugina, conhecida pelo seu apoio entusiástico à “operação militar especial” na Ucrânia e pela defesa da teoria de que os crimes de guerra imputados ao Exército Russo nesse contexto não passam de encenações arquitectadas pelos ucranianos. O enérgico activismo anti-ucraniano de Dugina suscitou a suspeita de que teria sido vítima de um atentado montado pelos serviços secretos ucranianos, mas também houve quem sugerisse que ela foi um “dano colateral” e que o verdadeiro alvo seria o seu pai, que deveria ter viajado no seu carro, mas, à última hora, apanhara outra boleia.

Se Dugina era incómoda para a Ucrânia, o seu pai, o filósofo Aleksandr Dugin (n.1962), constitui uma ameaça existencial à Ucrânia e outros países vizinhos da Rússia, uma vez que goza da reputação de ser o mentor intelectual de Putin no que respeita a geopolítica. A real dimensão da influência de Dugin sobre Putin é motivo de aceso debate, mas não há dúvida de quais são as suas visões sobre a História, a essência e o papel da Rússia e sobre a natureza da civilização ocidental, nem de que estas visões estão em sintonia com as que Putin tem expressado repetida e assertivamente nos anos mais recentes.

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Aleksandr Dugin em 2018

Vladimir Vladimirovich Putin (n.1952, Leningrad) não tem formação em História da Rússia, nem em História em geral, e a sua vida pessoal e profissional não tem sinais de cruzamentos com tal disciplina. A História – não a académica, que se aprende nos livros, mas a concreta – não foi meiga com a família de Putin durante a invasão alemã da URSS pela Alemanha nazi: o pai, Vladimir Spiridonovich Putin (1911-1999), foi gravemente ferido em combate, dois dos tios pelo lado paterno morreram e os tios do lado materno foram dados como desaparecidos, a avó materna foi morta pelos ocupantes alemães, a mãe, Maria Ivanovna Putina (1911-1998) passou por terríveis privações durante o cerco de Leningrad e a fome e a difteria levaram a vida de Viktor (n.1940), irmão mais velho de Putin, nessa mesma ocasião. O avô paterno, Spiridon Putin (1879-1965), foi cozinheiro no Hotel Astoria em São Petersburgo e, após a Revolução de 1917, foi chef pessoal de Lenin até à morte deste, em 1924, o que torna tentador especular que esta conexão familiar possa ter influenciado Putin a estabelecer vínculos próximos com Yevgeny Prigozhin (1961-2023), cuja rede de restaurantes e empresas de catering providenciou frequentemente refeições para eventos oficiais do Kremlin (o que valeu a Prigozhin a alcunha de “o cozinheiro de Putin”), e a favorecer a sua ascensão a líder do Grupo Wagner.

São Petersburgo, 25 de Maio de 2002: Putin janta com o presidente George W. Bush no restaurante flutuante de Yevgeny Prigozhin (ao centro, de pé)

Embora nos primeiros seis anos de escolaridade Putin se tivesse mostrado avesso aos estudos e preferisse vadiar pelas ruas e envolver-se em brigas, acabou por ganhar foco e em 1970 ingressou no curso de Direito na Universidade Estatal de Leningrad. Em 1975, assim que concluiu o curso, entrou para o KGB, onde desempenhou essencialmente funções burocráticas. Entre 1985 e 1990 esteve destacado em Dresden, na República Democrática Alemã, onde, a coberto da falsa identidade de tradutor (Putin é fluente em alemão), terá passado a maior parte do tempo consagrado à excitante e perigosa missão de coligir recortes de imprensa. Reza a lenda que também terá passado uma temporada em Auckland, na Nova Zelândia, sob o disfarce de vendedor numa sapataria da Bata (há vagos indícios quanto à sua presença no “Down Under”, mas nenhuns quanto ao trabalho na sapataria). Em 1991, com o bloco soviético em colapso, abandonou o KGB e ingressou na carreira política, como assessor de Anatoly Sobchak, presidente da Câmara Municipal de São Petersburgo, cargo que manteve até 1996, quando Sobchak perdeu as eleições autárquicas. Putin mudou-se então para Moscovo, onde começou a trabalhar na equipa governamental de Boris Yeltsin, onde foi subindo na hierarquia – chegou a dirigir, durante algum tempo, o FSB, sucessor do KGB – até se guindar, algo inesperadamente, a delfim do presidente.

Moscovo, 31 de Dezembro de 1999: Boris Yeltsin abandona o Kremlin após ter, inesperadamente, anunciado a sua renúncia ao cargo e a nomeação como presidente interino de Putin, que tinha sido nomeado primeiro-ministro quatro meses antes

Entretanto, em 1996, Putin redigira uma tese na área da economia, sobre planeamento estratégico no sector dos recursos minerais, que lhe valeu a atribuição do título de Ph. D. pelo Instituto Mineiro de São Petersburgo, ainda que seja uma obra medíocre, desleixada e infestada de plágios (diz quem a consultou, o que não é fácil, pois foi remetida para o limbo). Fica por explicar o que terá impelido Putin a desenvolver uma tese com um tema tão alheio ao seu percurso de vida, o que pretenderia alcançar com ela e como terá arranjado tempo para a elaborar num ano em que deveria estar atarefadíssimo com a campanha eleitoral de Sobchak.

Perante este trajecto de vida, resta concluir que os conhecimentos de Putin sobre o assunto provirão das suas leituras. Seria tentador pensar que os cinco anos passados em Dresden a fazer recortes de jornal deixariam imenso tempo livre para consagrar a livros e ruminações histórico-filosóficas, mas os indícios sugerem que a paixão de Putin pela História da Rússia só terá despontado muito depois, já no seu segundo mandato presidencial.

O controlo da História

A relação de Putin com a História não é movida pela sede de conhecimento e não tem natureza passiva – manipula-a, distorce-a e coloca-a ao serviço do seu projecto de poder e, em particular, das suas ambições imperiais. Em poucos anos, Putin passou de leitor de livros de História a “árbitro supremo do significado da História”, como escreve Martin Sixsmith em Putin and the return of history: How the Kremlin rekindled the Cold War (2024). Como observa Sixsmith, “Putin assevera que se atém estritamente aos factos históricos, mas estes ‘factos’ são produzidos pelas ‘organizações não-governamentais criadas pelo Governo’, cujo número não cessa de crescer”. Embora Putin não costume citar George Orwell, parece ter interiorizado a sua célebre fase “Quem controla o passado, controla o futuro; quem controla o presente, controla o passado”.

Com início no ano lectivo de 2023/24, os alunos do 10.º e 11.º ano de escolaridade em toda a Federação Russa passaram a aprender História por um novo manual, redigido sob a supervisão de Vladimir Medinsky, ex-ministro da Cultura (2012-20), conselheiro do actual presidente russo e, dizem os rumores, seu ghost writer.

Vladimir Medinsky, em 2020

O livro dá especial atenção às malévolas maquinações da NATO para cercar e enfraquecer a Rússia desde a dissolução da URSS (começando pelos conflitos que dilaceraram a Jugoslávia) e na secção que vai de 2014 a 2023 justifica a anexação da Crimeia, explica o conflito no Donbas e faz desfilar uma cadeia de eventos e considerações que conferem um carácter de inevitabilidade à “operação militar especial” na Ucrânia. Uma das razões para o decepcionante desempenho das Forças Armadas russas destacadas para a Ucrânia (que a Rússia, claro, não reconhece) é a desmotivação dos soldados, que se queixam de não saber por que combatem; ora, o intuito deste novo livro de História parece ser o de fornecer às futuras levas de recrutas um sentido para o seu sacrifício nas planícies juncadas de blindados calcinados: combater o neonazismo e o ultranacionalismo ucranianos, impedir a adesão da Ucrânia à NATO (o que ditaria “muito provavelmente, o fim da civilização”, insinua o manual) e um longo etcetera, já bem conhecido das perorações de Putin.

Numa aldeia russa, um rapaz recrutado pelo exército despede-se da família. Quadro por Ilyia Repin, 1879

Medinsky, que tem um doutoramento e um pós-doutoramento em Ciência Política, obteve em 2011 um doutoramento em História, defendendo uma tese intitulada “Problemas de objectividade na cobertura da História da Rússia entre a segunda metade do século XV e o século XVII” – o que, à luz da febre do revisionismo histórico que tomou conta do seu “patrão”, é de uma requintada ironia. Para tornar tudo ainda mais saboroso, cedo surgiram indícios de que a tese de 2011 seria plagiada, suspeita que alastrou às duas teses anteriores (e que na primeira parece afectar 70% da tese). No início de Outubro de 2017, o conselho de supervisão do ensino superior da Rússia recomendou a anulação do doutoramento em História do então Ministro da Cultura, mas esta resolução foi anulada duas semanas depois por outro órgão da academia russa. Em resumo: seria impossível encontrar alguém mais habilitado do que Medinsky para escrever um manual de História da Rússia fidedigno e isento.

O manual supervisionado por Medinsky está em perfeita sintonia com um regime que, durante anos, promoveu, a uma escala maciça, o doping dos atletas russos que participavam em competições desportivas internacionais (o que levou, entre outras punições, à perda de 48 medalhas olímpicas entre 2002 e 2016); filia-se na escola do revisionismo histórico que floresceu no período stalinista, em que a manipulação sistemática de fotografias foi elevada ao estatuto de bela-arte, como documentou David King em The commissar vanishes: The falsifications of photographs and art in Stalin’s Russia (ver Reescrevendo a história com tesoura e cola); e dá continuidade à tradição de fabrico de teorias conspirativas que remonta ao período imperial e cuja coroa de glória são Os Protocolos dos Sábios de Sião, um documento forjado pela Okhrana, a polícia secreta czarista, e que ainda hoje alimenta as pulsões anti-semitas de lunáticos da extrema-direita à extrema-esquerda (ver capítulo “Os Protocolos dos Sábios de Sião” em Como Hitler escapou do bunker de Berlim e se refugiou numa base secreta na Antártida e capítulo “O Super-Governo Global” em O governo do mundo: como havemos de viver juntos?).

Mas Putin não se contenta em controlar o passado dentro das fronteiras da Federação Russa: em Fevereiro de 2024 soube-se que o Ministério da Administração Interna russo tinha adicionado Kaja Kallas, primeira-ministra da Estónia, Taimar Peterkop, secretário de Estado da Estónia, e Simonas Kairys, ministro da Cultura da Lituânia, à sua lista de governantes, legisladores e funcionários públicos dos Estados bálticos chamados a responderem em processos relativos à remoção de monumentos do período soviético e homenageando figuras e instituições soviéticas que tinham sido erguidos nesses países durante o período em que fizeram parte da URSS.

“Monumento à libertação da Letónia soviética e de Riga dos invasores fascistas alemães”, informalmente conhecido como “Monumento da Vitória”, em Riga, em foto de 2013. O memorial, cujo elemento mais saliente é um obelisco de 79 metros de altura, foi erguido em 1985 e a sua remoção foi decidida em Fevereiro de 2022, imediatamente após o início da invasão russa da Ucrânia, e efectivada em Agosto desse ano

A descoberta de um passado glorioso

É possível que o interesse de Putin pela História da Rússia tenha sido espoletado por uma visita que realizou, em 2005, ao sítio arqueológico de Arkaim, na região dos Urais (a cordilheira que, tradicionalmente, define a separação entre Europa e Ásia), que foi descoberto em 1987 e alberga relevantes vestígios da civilização Sintashta. Esta floresceu entre c.2200 a.C. e 1900 a.C. e tem sido apontada como foco de irradiação das línguas Indo-Iranianas e pioneira no desenvolvimento do carro de combate.

A cidadela de Arkaim

Apesar de Arkaim ter sido um povoamento modesto, que terá albergado, pelas estimativas mais generosas, 1500-2500 habitantes, os arqueólogos inflamados pelo nacionalismo russo projectaram nele as mais grandiloquentes especulações: o mais antigo povoamento humano em território russo; a “pátria dos arianos”, e até da maior parte dos povos da Europa e Ásia; a mítica cidade de Asgard da mitologia nórdica; a origem da sabedoria Veda. São cenários dignos de um delírio febril, mas são o produto natural da conjugação da inclinação inata dos arqueólogos para extrair cidades imponentes de meia dúzia de tijolos e de uns cacos de cerâmica grosseira, com o fervor nacionalista russo e a necessidade de o orgulho russo encontrar um contraponto ao clima de declínio, humilhação, penúria e desordem que o país atravessava na década de 1990. A visita de Putin a Arkaim foi guiada por Gennady Zdanovich, o arqueólogo que dirigira as escavações no local, que terá apresentado Arkaim como berço da civilização russa e lugar central na identidade russa.

Não se sabe que efeito terá produzido a visita no íntimo de Putin, mas a verdade é que Arkaim foi incluído na lista de santuários nacionais e espirituais da Rússia e foi a partir de 2005 que Putin, que, até aí citara Kant e afirmara a pertença da Rússia ao espaço europeu, começou a enaltecer o glorioso passado russo, a citar figuras cimeiras do nacionalismo russo, como Ivan Ilyin, Kontantin Leontiev ou Nikolai Berdyaev, e a retratar o Ocidente como decadente e a sua influência como ameaça aos sãos valores ancestrais da Rússia (como observa Michel Eltchaninoff, autor de Na cabeça de Putin, em entrevista à revista online Books & Ideas/La Vie des Idées).

Em 2007, Putin criou a Fundação Russkiy Mir e em 2009 (através do “presidente” Dmitry Medvedev) criou a Comissão Presidencial da Federação Russa para o Combate a Tentativas de Falsificar a História de Forma a Prejudicar os Interesses Russos, um nome que é todo um programa e sugere uma digna continuadora da Comissão para a Compilação de Notas sobre a Antiga História Russa instituída por Catarina II. A Comissão foi colocada sob o comando de Sergei Naryshkin, cujo curriculum (presidente da Duma em 2011-16, chefe de gabinete do Kremlin em 2008-12, director do Serviço de Informações Externas/SVR desde 2016) confirma – se dúvidas houvesse – que a dita comissão nada tem a ver com “história” e se ocupa estritamente de propaganda. A comissão foi extinta em 2012, talvez por a sua função ter, progressivamente, sido assumida por todo o aparelho de Estado da Federação Russa, bem como pelos mass media que esse aparelho controla e pelos exércitos de hackers e trolls e pelas bot farms que financia.

“Na Europa vêem-nos como tártaros”

A tese do excepcionalismo russo que Putin tem vindo a promover insistentemente nas suas intervenções públicas nada tem de original: filia-se numa escola de pensamento russa que remonta ao século XIX e da qual Aleksandr Dugin é o mais notório e enfático apologista nos dias de hoje.

O excepcionalismo russo – a ideia de que a Rússia possui características únicas e inefáveis, que a distinguem de todas as outras nações – começou a ganhar força em meados do século XIX, como reacção às medidas de “ocidentalização” iniciadas por Pedro I e às sucessivas humilhações infligidas à Rússia pelas potências da Europa Ocidental ao longo do século XIX. Entre estas conta-se a derrota sofrida na Guerra da Crimeia (1853-56), às mãos da aliança da França e da Grã-Bretanha com o Império Otomano: a Rússia não só sofreu pesadas baixas e ficou com as finanças exauridas, como, pelo Tratado de Paris, foi forçada a devolver os territórios que tinha vindo a conquistar ao Império Otomano desde o início do século, em sucessivas guerras.

Tropas britânicas e russas defrontam-se na Batalha de Balaclava (1854), na Guerra da Crimeia. Quadro por Richard Caton Woodville Jr., 1897

Este tratado também impôs que o Mar Negro tivesse um estatuto de livre comércio e neutralidade, interditando a navegação de vasos de guerra russos, bem como a posse de bases navais pelos russos. Esta medida foi percebida na Rússia como extremamente gravosa, por deixar o seu flanco sul desprotegido contra uma eventual agressão, um temor que tem também atormentado Vladimir Putin, que considera que o facto de boa parte do litoral norte do Mar Negro ser território ucraniano é uma intolerável ameaça à segurança da Federação Russa, pelo que reivindica a reintegração nesta do amplo território em tempos designado como Novorossiya (ver capítulo “A Ucrânia como invenção comunista” na segunda parte desta série de 6 textos).

Em 1878, a Rússia sofreu nova vexação com as condições impostas pelo Tratado de Berlim, de 1878, em que uma frente comum de potências europeias anulou parte dos ganhos territoriais obtidos pela Rússia na Guerra Russo-Turca de 1877-78 (o décimo conflito de grande escala entre estas duas potências desde o século XVI) e que tinham sido provisoriamente estabelecidos pelo Tratado Preliminar de San Stefano, firmado uns meses antes. A coalizão de potências europeias (que incluía a França, a Grã-Bretanha, a Itália, a Alemanha e a Austro-Hungria) não estava, claro, preocupada com a saúde do “homem doente da Europa” (assim era então rotulado, cinicamente, o Império Otomano), pretendia sim evitar que o seu rápido declínio favorecesse a Rússia e tornasse esta desmedidamente poderosa.

“O vingador”: Mapa alegórico relativo à “Grande Crise Oriental” de 1877 e à Guerra Russo-Turca de 1877-78, por Fred W. Rose: “A Rússia, representada pela figura alegórica do Progresso, pune o “homem doente”, a Turquia, pelos ultrajes desumanos que cometeu” (Rose refere-se aos massacres perpetrados por tropas turcas na Bulgária)

O mais proeminente intelectual oitocentista russo a insurgir-se contra estas afrontas, a apontar os malefícios da influência ocidental no plano das ideias e a defender o pan-eslavismo foi Fyodor Dostoyevsky (1821-1881). Escreve-se frequentemente que esta rejeição da influência ocidental nasceu da decepção experimentada por Dostoyevsky nas suas viagens pela Europa Ocidental em 1862-63, mas está mais próximo da verdade afirmar que Dostoyevsky visitou a Europa Ocidental para confirmar in situ os preconceitos anti-ocidentais e eslavófilos que já nutria. A viagem de 1862 deu origem às “Notas de Inverno sobre Impressões de Verão”, um híbrido de caderno de viagem e ensaio, em registo bilioso e em que zurze o catolicismo, o protestantismo, o capitalismo, o racionalismo, os burgueses e um longo etecetera, já que não há aspecto da vida na Europa, por insignificante que seja, que não lhe inspire desdém.

Fyodor Dostoyevsky, retratado em 1872 por Vasily Perov

Alguns destes “ódios de estimação” seriam retomados no ensaio Socialismo e Cristandade (1864), em que Dostoyevsky denunciou a degeneração da civilização em resultado de ter abraçado o liberalismo e o ateísmo e acusou a Europa Ocidental de ter “renegado a única fórmula para a sua salvação, que provém de Deus e foi proclamada pela Revelação, que é ‘amarás o próximo como a ti mesmo’, e de a ter substituído por receitas expeditas, como ‘cada um por si e Deus por todos’, e por chavões ‘científicos’ como ‘a luta pela sobrevivência’”.

No ensaio O que é a Ásia para nós? (1881), que se debruça sobre o posicionamento da Rússia no mundo em termos geográficos, políticos e culturais e foi escrito no rescaldo da vitória russa, nesse ano, na Batalha de Geok-Tepe, contra as forças turquemenas, que encerrou, na prática, a conquista da Ásia Central pelo Império Russo, Dostoyevsky queixou-se de que “na Europa vêem-nos como tártaros, enquanto na Ásia vêem-nos como europeus”.

As forças russas ao assalto da fortaleza turquemena de Geok-Tepe, por Nikolay Karazin (1842-1908)

Uma vez que os europeus os consideravam bárbaros, a via que restava aos russos seria, segundo Dostoyevsky, “avançarmos para a Ásia como amos” – uma versão russa e mística do conceito de “Manifest Destiny” que, supostamente, conferiria aos EUA a vocação de levar a sua “missão civilizadora” até à costa do Oceano Pacífico (ver capítulo “Alaska, 1867” em A história dos EUA enquanto polícia do mundo).

Quando Dostoyevsky escreveu O que é a Ásia para nós?, o Império Russo também já tinha chegado ao Oceano Pacífico – e já tinha saltado sobre o Estreito de Bering, apropriando-se, durante algum tempo, do que é hoje o Alaska (ver capítulo “A loucura de Seward” em Esta estrada leva a Clintonville ou a Trump City?) – mas a presença de Moscovo nas vastas e inóspitas extensões do Extremo Oriente Russo era extremamente ténue e levaria muitas décadas a consolidar-se – e deparou-se, amiúde, com a oposição da China e do Japão.

Evolução da expansão da Rússia, 1613-1914

“Somos uma excepção entre os povos”

Vários intelectuais russos contemporâneos de Dostoyevsky produziram reflexões similares às suas sobre a Rússia e o Ocidente. O filósofo Pyotr Chaadayev (1794-1856) afirmou, na Carta filosófica (1829), publicada em 1836 na revista moscovita Teleskop: “Não fazemos parte de nenhuma das grandes famílias da raça humana; não fazemos parte do Ocidente nem do Oriente e não partilhamos tradições com um nem com outro. É como se vivêssemos fora do tempo, como se a educação universal da humanidade não nos tivesse tocado […] Somos uma excepção entre os povos. Fazemos parte daqueles que não são parte constituinte da humanidade e que existem apenas para dar ao mundo algum tipo de grande lição […] Sós no mundo, nada demos ao mundo, em nada contribuímos para o progresso da razão humana e todos os frutos desse progresso que chegaram às nossas mãos foram por nós distorcidos”.

Pyotr Chaadayev, retratado por A. Kozina

A visão messiânica da Rússia patente neste trecho está também presente em Noites russas (Russkie nochi, 1844), do escritor e filósofo Vladimir Odoyevsky (1803-1869, Rússia): “Por vezes, num momento afortunado, a Providência […] adestra uma nação para que reconduza a humanidade ao caminho de que se desviou e assuma, assim, o primeiro lugar entre todas as nações”.

Outro crente no excepcionalismo russo e no pan-eslavismo e adversário figadal do Ocidente foi o diplomata Fyodor Tyutchev (1803-1873), que aliou os seus talentos como vate e como político para tecer loas à inefável alma russa: “Quem é capaz de a Rússia conceber?/ Não foi inventado instrumento para a mensurar/ E a sua alma não tem par/ Só pela fé a podemos conhecer”.

“Encontro com um ícone”, por Konstantin Savitsky, 1878: A pedido dos camponeses, uma carruagem que transporta um ícone miraculoso detém-se e desvela este, para que todos o possam venerar

Um dos pensadores oitocentistas que mais tem influenciado Putin – a crer na frequência com que o cita quando expõe a sua visão do mundo – é o filósofo Konstantin Leontiev (1831-1891). Leontiev, que é frequentemente classificado como “conservador” – é conhecido pela frase “é preciso congelar um pouco a Rússia, para que não apodreça” – tinha, ao mesmo tempo, uma faceta revolucionária – também proclamou que “o socialismo é o feudalismo do futuro”. O “socialismo” proposto por Leontiev era, todavia, de uma variedade peculiar: a revolução “socialista” que Leontiev imaginava deveria ser encabeçada, não pelo proletariado nem pelos sovietes, mas pelo czar. Um dos aspectos mais salientes do ideário de Leontiev é a paixão pela autocracia: “Só uma autoridade monárquica, limitada apenas pela sua consciência e santificada pela fé, pode resolver o problema que presentemente se nos afigura insolúvel: a conciliação do capital e do trabalho”; “Pela lei fundamental do nosso Império, pelo espírito essencial da nossa nação, tudo o que emana do Mais Alto Poder é justo e bom […]. O poder do Soberano é sagrado em todas as circunstâncias, mesmo quando a ira de Deus parece abater-se sobre nós, como no tempo de Ivan o Terrível”, “O nosso povo ama e compreende melhor a autoridade do que a lei. Considera um chefe militar mais acessível do que um artigo num código legal”. É uma visão do poder que transcende as polaridades esquerda/direita e conservadores/revolucionários e seguramente mereceria a concordância tanto de Pedro o Grande, como de Stalin e de Putin.

Konstantin Leontiev, c.1880

Os outros eixos do ideário de Leontiev são o sentimento anti-ocidental e russófilo – “[Tenho], por um lado, uma arreigada antipatia filosófica pela forma e pelo espírito da nova vida europeia, e, por outro, tenho uma atracção, estética e pueril, pelas formas exteriores de ortodoxia” – e a visão eurasianista e messiânica da Rússia – “Acredito que a Rússia está fadada a liderar um novo reino oriental que oferecerá ao mundo uma nova cultura, de maneira a que a civilização eslavo-oriental tome o lugar da declinante civilização latino-germânica europeia”.

A Rússia como caso de pseudomorfose histórica

Em Perspectivas da História Universal (Welthistorischen Perspektiven, 1922), o volume 2 de O declínio do Ocidente (Der Untergang des Abendlandes), Oswald Spengler alinhou com os pensadores russos acima mencionados no entendimento da Rússia como possuindo uma natureza incompatível com os padrões culturais e valores da Europa Ocidental.

Spengler recorre ao conceito geológico de pseudomorfose para propor o conceito de “pseudomorfose histórica”, isto é “os casos em que uma Cultura ancestral ocupa uma extensão tão vasta de território que uma Cultura jovem não consegue insuflar-lhe o seu sopro […] Tudo o que emana das profundezas da jovem Cultura é vertido em velhos moldes, os jovens sentimentos anquilosam-se em práticas senis, e em vez de expandir o seu próprio poder criativo, apenas consegue odiar a potência alienígena com uma intensidade que pode tornar-se monstruosa. Esta ‘pseudomorfose histórica’ tem uma manifestação exemplar na Rússia […] O período moscovita das grandes famílias de boiardos e dos patriarca, que tem como elemento constante a resistência da Rússia Ancestral aos partidários da cultura ocidental, deu lugar, com a fundação de São Petersburgo, em 1703, à pseudomorfose, que tentou encaixar à força a primitiva alma russa num molde que lhe era alheio, primeiro o do Barroco, depois o do Iluminismo e, por fim, o do século XIX. […] O czarismo primitivo de Moscovo é, ainda hoje, a única forma de governação que é adequada ao mundo russo, mas em São Petersburgo ele foi distorcido para se conformar ao padrão dinástico da Europa Ocidental. O incêndio que consumiu Moscovo (ateado pelos russos face à aproximação da Grande Armée de Napoleão), esse poderoso gesto simbólico de um povo primitivo, foi seguido pela entrada em Paris de Alexandre I, pela Santa Aliança e pela concertação das Grandes Potências do Ocidente. E foi assim que uma nação que deveria ter continuado sem História por mais algumas gerações foi forçada a aceitar uma história falsa e artificial, que a alma da Rússia Ancestral era simplesmente incapaz de compreender […] Nas terras desoladas habitadas por camponeses rústicos nasceram, como úlceras, cidades de traça estrangeira, postiças, contra-natura, inverosímeis […] Depois disto, tudo o que emana [deste mundo artificial] é percebido pela verdadeira alma russa como mentiras e veneno”.

1867: Camponeses escutam a leitura do Édito da Emancipção, que pôs termo à servidão no Império Russo – uma medida progressista e ocidental introduzida no reinado do imperador Alexandre II. Quadro por Boris Kustodiev, 1907

A ideia de que a Rússia não é um país como os outros, de que os russos nunca irão assimilar os valores ocidentais e de que a governação que mais se adequa ao seu carácter é a autocracia (em qualquer das formas que esta pode assumir) continua a ser esgrimida, um século depois da publicação de O declínio do Ocidente. Porém, as justificações históricas e culturais para a incompatibilidade visceral entre Rússia e democracia liberal vacilam quando se considera o exemplo do Japão e da Coreia do Sul, países com histórias e culturas com raízes mais antigas e mais distantes das do mundo ocidental, e que, todavia, assimilaram plenamente os valores, regras, procedimentos e instituições das democracias liberais ocidentais, ainda que a sua abertura ao mundo ocidental só tenha começado efectivamente na segunda metade do século XIX (os contactos anteriores tinham sido restritos ao plano comercial e tinham sido rigorosamente controlados – se exceptuarmos o breve período de missionação por portugueses e espanhóis no Japão que redundou no redobrar do isolacionismo).

Deus tem um plano para a Rússia

Em 2014, Putin recomendou aos governadores regionais da Federação Russa a leitura de A justificação de Deus (1897), de Vladimir Solovyov, A filosofia da desigualdade (1923), de Nikolai Berdyaev, e As nossas tarefas (1948-54), de Ivan Ilyin. Apesar da natural pressão para agradar ao senhor supremo da Rússia, é provável que poucos entre os burocratas do actual regime russo se tenham sentido inclinados a despender longas horas a tentar penetrar as sofisticadas elucubrações filosóficas e teológicas contidas nestas obras. No entanto, a sugestão de leitura não deixa de ser relevante, uma vez que contribuiu para desvendar o pensamento de Putin.

Apesar de Solovyov, Berdyaev e Ilyin pertencerem a gerações diferentes e de existirem divergências apreciáveis no seu pensamento, as três obras têm algo de essencial em comum: constituem marcos na construção da chamada “Ideia Russa”, isto é, o conjunto de características que definem a “russianidade”, que conferem uma natureza única à Rússia e ao povo russo e que os fadam a desempenhar uma missão transcendente na História da Humanidade. A “Ideia Russa” não é simplesmente a crença de que a Rússia será capaz de superar as dificuldades e privações actuais para se reerguer (uma espécie de “Make Russia great again”), é ver na Rússia o guia espiritual de toda uma humanidade que se transviou e caminha para a degeneração e para o abismo.

Três velhos e uma raposa, por Mikhail Nesterov, 1914

O conceito foi esboçado primeiramente por Dostoyevsky, em 1860, foi desenvolvido por Solovyov no ensaio “L’idée russe”, publicado em Paris em 1888, e tem sido retomado e glosado por uma longa sucessão de pensadores russos, que se estende até ao presente.

Na sua juventude, Vladimir Solovyov (1853-1900) renegou a Igreja Ortodoxa Russa e abraçou o niilismo, mas na maturidade reaproximou-se da fé cristã (passou a advogar que era capital que se sanasse o cisma que fizera divergir a Igreja Ortodoxa Russa e a Igreja Católica) e tornou-se num adversário de correntes filosóficas ocidentais como o positivismo, o empirismo e o racionalismo, concebendo um universo cuja unidade e sentido provinham exclusivamente de Deus.

Vladimir Solovyov, retratado em 1892 por Nikolay Yarochenko

Embora hoje Solovyov seja quase desconhecido fora das fronteiras russas (com eventual excepção dos nichos da Academia que se ocupam da história do pensamento na Rússia), no início do século XX o seu prestígio era suficientemente grande para que o pintor simbolista Nikolay Yarochenko o tivesse elegido, a par de Tolstoy e Dostoyevsky (de quem Solovyov foi amigo íntimo), para representar a intelectualidade russa, no seu monumental e ambicioso quadro Na Rússia: A alma do povo, em que tenta sintetizar, em dois metros por cinco, a história e a alma russas (Solovyov, Tolstoy e Dostoyevsky, todos de barbas, da esquerda para a direita, surgem no extremo direito da composição; o rapazito isolado, à esquerda, é uma alusão a Mateus 18:3: “Em verdade vos digo que se não vos converterdes e não vos fizerdes como crianças, de modo algum entrareis no reino dos céus”).

“Na Rússia: A alma do povo” (1914), por Mikhail Nesterov

Pouco se sabe sobre as convicções religiosas íntimas do cidadão Vladimir Vladimirovich Putin, mas o presidente da Federação Russa tem vindo a cultivar uma relação simbiótica com a Igreja Ortodoxa Russa: o Estado russo financia a reconstrução de igrejas e encoraja os oligarcas a imitá-lo e Putin participa nas grandes cerimónias religiosas e enaltece valores afins dos que são cultivados pela igreja – eis um exemplo, retirado de um discurso de 2013: “Constatamos que muitos dos países euro-atlânticos estão hoje a rejeitar as suas raízes, incluindo os valores cristãos que são o fundamento da civilização ocidental. Estão a renegar os princípios morais e as identidades tradicionais: nacionais, culturais, religiosas e até sexuais”. Ao mesmo tempo que acarinha a Igreja Ortodoxa Russa, o Estado russo tem tomado medidas para coarctar a actividade das restantes confissões religiosas.

Em contrapartida, a Igreja Ortodoxa Russa tem dado apoio incondicional à actuação do Governo de Putin e manifestado aprovação pelas concepções políticas e geoestratégicas de Putin. Kiriil, Patriarca de Moscovo, chegou mesmo a proclamar que o líder russo era “um milagre de Deus”. Não é, portanto, surpreendente que o Putin que passou a envergar as vestes de defensor da Cristandade, endosse as concepções teológicas de Solovyov, ainda que este nem sempre esteja alinhado com as posições da Igreja Ortodoxa Russa.

Tal como Solovyov, Nikolai Berdyaev (1874-1948) começou por renegar a religião, mas, após um período em que aderiu ao marxismo, acabou por regressar à fé cristã, de que se tornou um dos mais proeminentes defensores, ao arrepio do ateísmo vigente na Rússia bolchevique – o que resultou na sua expulsão do país em 1922.

Nikolai Berdyaev em 1912

Berdyaev manifestou particular interesse pela “Ideia Russa” e pela crença de que a Rússia estava predestinada a tornar-se num farol da Cristandade e foi ao ponto de – mediante tortuosas elucubrações – ver na “Ideia Russa” a origem da Revolução Bolchevique: “O povo russo não cumpriu o seu sonho ancestral de fazer de Moscovo a Terceira Roma. O cisma eclesiástico do século XVIII revelou que o czarado moscovita não era a Terceira Roma. O povo russo assumira que a sua ideia messiânica assumiria uma forma apocalíptica ou revolucionária – e então o destino do povo russo foi abalado por um evento surpreendente. Em vez da Terceira Roma, cumpriu-se a Terceira Internacional e muitos aspectos da Terceira Roma foram transferidos para a Terceira Internacional. A Terceira Internacional é também um Sacro Império e também se funda na fé ortodoxa. A Terceira Internacional não é internacional, mas sim uma ideia nacional russa”.

Capa do n.º 22 (1929) da revista Bezbozhinik (Sem Deus), publicada em Moscovo pela Liga dos Ateus Militantes: Os deuses das três religiões abraâmicas – judaica, cristã e islâmica – são esmagados pelo Primeiro Plano Quinquenal

Esta terra, plana, aberta, indefesa

Já o filósofo Ivan Ilyin (1883-1954) via a Revolução Bolchevique como uma “catástrofe nacional” – esta posição, juntamente com as suas convicções monárquicas e conservadoras (que, mais tarde, assumiriam a forma de apreço pelo fascismo) e o seu apoio ao “Russos Brancos”, levaram a que, tal como aconteceu com Berdyaev, fosse expulso da URSS em 1922 (teve mais sorte do que um dos seus irmãos, Igor, que foi executado pela NKVD). Passou a desenvolver o seu activismo antibolchevique na Alemanha, mas o seu apreço pelo fascismo não era incondicional nem ortodoxo, pelo que os atritos com o regime nazista foram multiplicando-se, o que o levou, em 1938, a mudar-se para a Suíça (onde se sustentou, em parte, graças à ajuda financeira de outro exilado russo da Revolução Bolchevique, o compositor Sergei Rachmaninoff).

Ivan Ilyin

Tal como outros eslavófilos e adeptos da “Ideia Russa” que o antecederam, Ilyin defendeu a Igreja Ortodoxa Russa e a autocracia e criticou impiedosamente o Ocidente: “O Ocidente nunca conheceu ou compreendeu a Rússia. Desconhecendo a sua língua e não apreendendo o seu espírito, o Ocidente acreditou em todas as atoardas sobre a Rússia e inventou novas atoardas e propagou-as. A Europa temia, detestava e desprezava a Rússia. Nos últimos 100 anos, a Europa esteve sempre pronta a prejudicá-la, debilitá-la e caluniá-la. O Ocidente estava interessado na Rússia só no que respeitava ao comércio e à guerra. E talvez no que o seu eventual desmembramento ou subjugação significariam para a sociedade. Seguindo as instruções secretas emanadas dos centros políticos europeus – que hão-de ser averiguadas e expostas pelos historiadores – a Rússia tem sido exibida com estardalhaço pelo mundo como um baluarte do reaccionarismo, um antro de despotismo e servidão, um alfobre de anti-semitismo e um colosso com pés de barro” (“O que o desmembramento da Rússia oferece ao mundo”, 1950). Não é, portanto, de estranhar que Ivan Ilyin não só faça parte das sugestões de leitura de Putin, como seja citado por figuras gradas do aparelho de Estado (incluindo Sergei Lavrov e Dmitri Medvedev), da Rússia Unida (o partido de Putin) e da Igreja Ortodoxa Russa (como o patriarca Kiriil).

Ivan Ilyin por Mikhail Nesterov, c.1921-22

Sobre a “Ideia Russa”, escreveu Ilyin em 1934, em tom arrebatado, que “deverá ser histórico-estatal, nacionalista-estatal, patriótica-estatal e religiosa-estatal. Deverá emanar do âmago da alma russa e da história russa, da sua fome espiritual. Deverá falar da essência dos russos – os do passado e os do futuro – e deverá iluminar o caminho das gerações de russos ainda por nascer, insuflando sentido e vigor nas suas vidas […] Que ideia é esta? É a ideia de fomentar a qualidade espiritual nacional no povo russo. Isto tem precedência sobre tudo. Isto é artístico. Isto é para a eternidade. Sem isto não haverá Rússia”.

Embora menos dado a êxtases místicos e ruminações teológicas do que Solovyov e Berdyaev, Ilyin também via o destino da Rússia como estando indissoluvelmente ligado ao da fé ortodoxa: “Ser russo é muito mais do que simplesmente falar russo. Implica aceitar a Rússia com todo o coração, amar a sua preciosa identidade, a sua originalidade sem par em toda a História humana. Significa compreender este carácter único como uma dádiva de Deus e, ao mesmo tempo, como um sinal divino que protege a Rússia das ameaças das outras nações […] Ser russo significa ver a Rússia à luz de Deus, na sua tessitura eterna, na sua substância imperecível”.

Numa perspectiva menos etérea e mais terra-a-terra, Ilyin saiu em defesa da legitimidade das fronteiras “históricas” da Grande Rússia: “Não fomos nós que ‘tomámos’ esta terra, plana, aberta, indefesa – ela veio ao nosso encontro; fez com que nós a possuíssemos”.

“Viandantes: Para lá do Volga”, por Mikhail Nesterov, 1922

Sobre o sempre candente caso da Ucrânia escreveu Ilyin, em 1938, que esta “é, reconhecidamente, a mais perigosa região da Rússia, em termos de secessão e conquista. O separatismo ucraniano é um fenómeno artificial e destituído de fundamento. Os malorusski [literalmente “os pequenos russos”, i.e., os ucranianos] são um ramo do mesmo povo eslavo-russo. Este ramo não tem qualquer razão para estar em conflito com outros ramos do mesmo povo e para constituir um Estado separado. Em caso de separação, este Estado tornar-se-á no alvo de conquista e pilhagem por estrangeiros. A Pequena Rússia e a Grande Rússia estão unidas pela religião, pela tribo, pelo destino histórico, pela localização geográfica, pela economia, pela cultura e pela política”. E conclui com esta advertência ominosa: “Os estrangeiros que apostem na separação da Ucrânia devem ter presente que estão a envolver-se numa guerra interminável com a Rússia”.

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