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[Nota: esta é a quarta parte de uma série de seis artigos, as anteriores podem ser lidas aqui:]

Miragens a Oriente

Como se viu na parte 3 desta série, desde meados do século XIX, ganhou raízes entre muitos intelectuais russos as ideias de que o povo russo possuía as características ímpares e de que estas, aliadas à posição geográfica da Rússia, predestinavam os russos a liderar um vasto império eurasiático. Estas ideias consolidaram-se a partir da década de 1920 no movimento eurasianista, que floresceu entre intelectuais russos que defendiam a monarquia, perfilhavam a fé ortodoxa e eram anticomunistas e que, em resultado destas convicções, tinham sido forçados a buscar refúgio na Europa Ocidental após a Revolução Bolchevique.

Fyodor Dostoyevsky e Konstantin Leontiev já tinham manifestado a crença na vocação oriental da Rússia, mas foi com Nikolai Sergeivich Trubetzkoy (1890-1938) que o eurasianismo começou a ser teorizado e sistematizado.

Nikolai Sergeivich Trubetzkoy

Nikolai Sergeivich Trubetzkoy provinha de uma influente família da aristocracia russo-lituana, sendo filho do príncipe Sergei Nikolaievich Trubetzkoy (1862-1905), que, quando jovem, se deixara fascinar pelas ideias ocidentais e, em particular, pelo positivismo, mas que acabara por fazer uma volta de 180º, rejeitando a influência ocidental, abraçando o eslavismo e regressando ao seio da Igreja Ortodoxa Russa, num trajecto análogo ao de Vladimir Solovyov (ver A Rússia e o sonho imperial (parte 3): quem foram os professores de História de Putin?), de quem se tornou amigo chegado.

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Um quarteto de filósofos russos: Da esquerda para a direita, Vladimir Solovyov, Sergei Nikolaievich Trubetzkoy, Nikolai Grot, Lev Lopatin; Grot e Lopatin defendiam ideias similares às de Solovyov e Trubetzkoy

A aversão ao bolchevismo levou Nikolai Sergeivich a abandonar a Rússia em 1920 e buscar refúgio a ocidente, onde produziu relevante obra académica na área da linguística e da história e foi professor de filologia eslava na Universidade de Viena. Deixou também abundante produção de artigos pró-eurasianistas, como seja O legado de Genghis Khan: Uma perspectiva da história russa, vista não do Ocidente mas do Oriente (1925), em que defendeu que “a Eurásia constitui uma unidade indivisível, dos pontos de vista geográfico e antropológico […] Desde a primeira hora que a unificação política da Eurásia é uma inevitabilidade histórica […] O próprio ambiente natural revela aos povos da Eurásia o imperativo de se unirem num único Estado e de desenvolverem as suas culturas nacionais ao mesmo tempo que trabalham cooperativamente uns com os outros”. Em Nacionalismo pan-asiático (1927), advogou que, “para que o nacionalismo pan-asiático desempenhe o seu papel com êxito como factor unificador do Estado eurasiático, é necessário voltar a cultivar a consciência dos povos da Eurásia”.

Territórios sob domínio mongol c.1300, delimitados pela linha castanha-clara, e Império Timúrida c.1405, correspondente à área cinzenta)

Outro teórico relevante do eurasianismo foi o economista, geógrafo e sociólogo Pyotr Savitsky (1895-1968), natural de Chernigov, no Império Russo (hoje Chernihiv, na Ucrânia), e que, devido à sua frontal rejeição do comunismo, foi forçado a deixar o país natal (passaria parte substancial da vida na Checoslováquia). No artigo “Eurasianismo”, publicado em 1925 na revista Evraziiskii Vremennik (Crónica Eurasiática), Savitsky apontava que “a ‘perfeição’ científica e tecnológica [do ambiente cultural da Europa Ocidental] foi […] obtida à custa do empobrecimento ideológico e, sobretudo, religioso”, e propunha “uma rejeição firme do ‘eurocentrismo’ cultural e histórico”, e, em particular, da “percepção da cultura que impera sobre os modernos conceitos ‘europeus’. Esta visão universalista encoraja os europeus a qualificar alguns povos como ‘cultos’ e outros como ‘incultos’”.

Savitsky lamentou que a Rússia tivesse, durante o período soviético, sido seduzida por ideias importadas da Europa Ocidental, como o materialismo histórico e o ateísmo e reprovava que o comunismo soviético tivesse imposto o ateísmo como religião de Estado, o que representou “um tal ultraje contra a natureza humana que todas as imagens empalidecem e todas as palavras são impotentes para descrever a inaudita, terrível e blasfema atrocidade desta realidade […] Não é coincidência que o domínio do primeiro governo ateu [da História] tenha redundado na ascensão de tudo o que é bestial”, já que “a principal força determinante do ser social sob o reinado ideológico do materialismo e do ateísmo é o ódio”.

Capa do n.º 15 (1929) da revista Bezbozhinik (Sem Deus), publicada em Moscovo pela Liga dos Ateus Militantes: Uma vez que Cristo se tornou supérfluo, o texto propõe a substituição da Festa da Transfiguração do Senhor pelo Dia da Industrialização

Como muitos eurasianistas seus contemporâneos, Savitsky era devoto da Igreja Ortodoxa – “O eurasianismo é ortodoxo. A Igreja Ortodoxa é a luz que ilumina o caminho em frente” – ainda que, paradoxalmente, visse a Rússia como “herdeira dos grandes Khans, a continuadora dos empreendimentos de Genghis e Timur [Tamerlão], a unificadora da Ásia”.

Ao contrário dos eurasianistas referidos até agora, Lev Gumilev (1912-1992) fez carreira na URSS e o seu conceito de eurasianismo não requeria a liderança de um czar nem o concurso da Igreja Ortodoxa, mas nem por isso as suas ideias foram bem recebidas pelo regime soviético. Na verdade, Gumilev partiu de uma posição desfavorável para cair nas graças das autoridades soviéticas, uma vez que era filho dos poetas Nikolai Gumilev (executado pela Cheka quando Lev tinha nove anos) e Anna Akhmatova (implacavelmente censurada, perseguida e atormentada pelo regime).

Lev Gumilev, em 1934

Entre 1935 e 1953, a vida de Lev Gumilev decorreu quase toda no Gulag, onde conheceu Pyotr Savitsky (que, em 1945, fora detido pelo Exército Vermelho em Praga), que o converteu ao eurasianismo. Só após a morte de Stalin é que Gumilev foi libertado e pôde dedicar-se ao estudo da antropologia, o que o levou a desenvolver trabalho de campo na região do Cáucaso. As suas investigações levaram-no a conceber a teoria – esdrúxula – de que os russos teriam raízes comuns com os povos turco-mongóis; daqui saltou para a tese de que a conquista (ou, pelo menos, sujeição) da Rússia pelos mongóis no período c.1280-1480 teria sido benéfica para a Rússia, pois isolara esta da influência maligna do catolicismo e outras ideias obnóxias vindas de Ocidente e permitira-lhe desenvolver as suas características civilizacionais próprias.

Mikhail Vsevolodovich (c.1185-1246), príncipe de Chernigov (hoje Chernihiv, na Ucrânia) e Grande Príncipe de Kiev, foi incapaz de unir o fragmentado Rus’ de Kiev para fazer face aos mongóis, liderados por Batu Khan. Após conquistar parte dos domínios de Mikhail, Batu Khan convocou-o para o seu acampamento, a fim de que Mikhail lhe prestasse vassalagem, ocasião em que tentou forçá-lo a abjurar a fé cristã e prostrar-se perante os ídolos mongóis – episódio retratado neste quadro de 1883 por Vasily Smirnov. Mikhail recusou renegar a sua fé e foi torturado e decapitado, o que levou a que seja venerado como mártir, sob o nome de São Miguel de Chernigov

As teorias de Gumilev foram ignoradas em Moscovo mas bem acolhidas na Ásia Central (em 2005 foi erguida uma estátua sua em Kazan, a capital do Tartaristão) e acabaram por conhecer um florescimento tardio após a dissolução da URSS e a morte de Gumilev. Essa reabilitação de Gumilev prossegue até aos nossos dias, como prova o discurso de Vladimir Putin perante a Câmara Cívica da Federação Russa, em Novembro de 2023, que lembrou que, num momento crucial da história da Rússia, quando esta era ameaçada pelos cavaleiros teutónicos, Aleksandr Nevsky obtivera dos mongóis da Horda de Ouro, a quem devia vassalagem, autonomia governativa, de modo a “poder fazer frente à invasão vinda de Ocidente”.

Thorsten Botz-Bornstein afirmou, no artigo Is Vladimir Putin a Eurasianist or a Slavophile? (in Medium, Maio de 2022), que “durante a era soviética, o eurasianismo foi reduzido a uma ideia expansionista que era popular entre o KGB, o Exército Vermelho e as tropas de elite”. Na verdade, o eurasianismo na URSS foi esmorecendo, em boa parte devido à eliminação, durante as purgas stalinistas da década de 1930, dos seus poucos representantes que não tinham fugido para Ocidente. Se o regime soviético alguma vez tivesse cogitado em concretizar a utopia eurasiática, teria sido dissuadido pelo tenso equilíbrio de forças entre URSS e EUA e pela progressiva hostilidade da República Popular da China em relação à URSS. A invasão do Afeganistão pela URSS, em 1979, dificilmente pode ser vista como uma etapa para a criação do Novo Império Eurasiático – visava apenas recolocar no poder o Partido Democrático Popular, de inspiração marxista, e contrabalançar a influência americana no Paquistão (foi um trágico erro de cálculo: a invasão acabou por converter-se numa guerra sangrenta que se arrastou por uma década e causou tal descontentamento na URSS que acabou por contribuir para a queda do regime soviético).

Mensageiros do ataman cossaco Yermak Timofeyevich dão a Ivan IV a notícia dos sucessos na conquista da Sibéria. Quadro por Stanisław Rostorowski, 1884

O eurasianismo na era pós-soviética

Só após a dissolução da URSS os adeptos do eurasianismo voltaram a fazer-se ouvir no espaço público. Um dos que granjeou notoriedade foi Aleksandr Panarin (1940-2003), um filósofo político natural de Horlivka (hoje na Ucrânia), conotado com a direita nacionalista europeia. Panarin alertou para “o risco de decréscimo da diversidade cultural do mundo”, em resultado do processo de “ocidentalização” e considerou que cabe à Rússia tornar possível “que a Humanidade como um todo progrida, não por via do empobrecimento cultural e da despersonalização, mas pela preservação da sua diversidade cultural e civilizacional”.

Actualmente, a figura mais influente do eurasianismo – ou do “neo-eurasianismo”, termo usado para designar o eurasianismo posterior a 1991 – é Aleksandr Dugin (n.1962), já mencionado no capítulo “A descoberta de um passado glorioso” em A Rússia e o sonho imperial (parte 3): quem foram os professores de História de Putin?. Dugin, que é filho de um oficial de alta patente do GRU, o serviço de informações militar soviético, fez parte de círculos anticomunistas na era soviética e após 1991 esteve envolvido com diferentes formações políticas de pendor nacionalista, umas mais inclinadas para a extrema-direita, outras para a extrema-esquerda.

Dugin acabou por transcender estas opções políticas aparentemente contraditórias ao propor a Quarta Teoria Política (explanada no livro homónimo, surgido em 2009), que se apresenta como alternativa à democracia liberal, ao comunismo e ao fascismo e que tem a vantagem de ser “intemporal e não-moderna”. No plano religioso, vale a pena destacar que em 1999 Dugin aderiu formalmente aos Velhos Crentes (Starovery) ou Avvakumitas, uma seita da Igreja Ortodoxa Russa que se mantém fiel às práticas litúrgicas anteriores às reformas introduzidas pelo Nikon, o sétimo patriarca de Moscovo, em 1652-66. O fundamento para esta posição está no facto de a Igreja Ortodoxa “primitiva” não ter ainda sido corrompida pelas ideias malsãs vindas do Ocidente.

Feodosia Morozova (1632-1675), uma partidária dos Velhos Crentes, é levada para a prisão (onde faleceria, vítima das torturas a que foi submetida), por ordem do czar Aleksis, por se opor à reforma das práticas litúrgicas. Neste quadro de 1887 por Vasily Surikov, Morozova faz o antigo sinal da cruz com dois dedos, contrariando a reforma do patriarca Nikon, que impôs o sinal da cruz com três dedos

O Ocidente é, para Dugin, a raiz de todos os males, em particular do liberalismo, da globalização unipolar e da “ideologia do progresso”, que “representa um genocídio moral das gerações passadas – por outras palavras, genuíno racismo” (A Quarta Teoria Política, 2009). Também a “ideia de globalização unipolar é indubitavelmente racista. Baseia-se no facto de a sociedade ocidental, e em particular a americana, fazerem equivaler a sua história e os seus valores a leis universais. e de tentar, artificialmente, construir uma sociedade global baseada nesses valores, que são específicos de um lugar e de uma história – democracia, mercado, parlamentarismo, capitalismo, individualismo, direitos humanos e desenvolvimento tecnológico ilimitado. Estes valores são locais, mas a globalização está a tentar impô-los a toda a humanidade como se fossem algo de universal e irrefutável. Esta pressão tem implícita a ideia de que os valores de todos os outros povos e culturas são imperfeitos e incipientes e deverão ser sujeitos a um processo de modernização e padronização tendo como referência o modelo ocidental. A globalização não é, portanto, mais do que uma aplicação à escala global do etnocentrismo europeu ocidental, ou melhor, anglo-saxónico – o que é a mais pura manifestação de ideologia racista” (A Quarta Teoria Política).

Em alternativa à globalização unipolar imposta pelo Ocidente, Dugin exorta a Rússia a abraçar o eurasianismo, cujos fundamentos e objectivos são detalhadamente explanados no livro Fundamentos de geopolítica: O futuro geopolítico da Rússia (Osnovy geopolitiki: Geopoliticheskoe budushchee Rossii), publicado em 1997. Nele podem encontrar-se passagens que parecem dar razão aos que apontam Dugin como “o ideólogo de Putin”, “o guru de Putin” e até “o cérebro de Putin”, ainda que Dugin não desempenhe funções formais no aparelho de Estado da Federação Russa.

Veja-se, por exemplo, o que Dugin diz da Ucrânia: “Como Estado, […] não tem significado geopolítico. Não possui uma cultura relevante, nem significado universal, nem individualidade geográfica, nem exclusividade étnica”.

A Ucrânia como espaço em branco: Detalhe da carta “Delineatio generalis Camporum Desertorum vulgo Ukraina” (“Esboço geral dos campos desertos vulgarmente conhecidos como Ucrânia”), publicada em 1648 pelo cartógrafo franco-polaco Guillaume Levasseur de Beauplan, que, em 1639, elaborou o primeiro “mapa descritivo” da Ucrânia. A rarefacção populacional dos “Campos Desertos” ou “Campos Selvagens” decorreu de, durante vários séculos, ter sido devastada pelas incursões mongóis/tártaras

Para Dugin, a Ucrânia não só não possui nada que justifique a sua existência como Estado, como “a soberania ucraniana é um facto tão negativo para a geopolítica russa que, em princípio, poderia facilmente estar na origem de um conflito”, por tal implicar que a costa do Mar Negro entre Ismail e Kerch fique sob controlo de um país que não a Rússia (um velho temor dos nacionalistas e russos, como se viu no capítulo “Na Europa vêem-nos como tártaros” em A Rússia e o sonho imperial (parte 3): quem foram os professores de História de Putin?). Portanto, conclui Dugin, a mera existência da Ucrânia “como Estado independente com algum tipo de ambições territoriais representa uma tremenda ameaça para toda a Eurásia, pelo que enquanto não se resolver o problema ucraniano não faz sentido falar de geopolítica continental”.

A expressão “problema ucraniano” traz à memória a expressão “a questão judaica”, central na retórica nazi: converter um povo ou uma nação num “problema” é, frequentemente, o primeiro passo no caminho que conduz à conclusão de que se impõe a sua eliminação, ou, pelo menos, a supressão da sua identidade. Tendo esta visão da Ucrânia, não é surpreendente que Dugin tenha apoiado a “operação militar especial” e tenha proclamando que “a Verdade e Deus estão do nosso lado. Estamos a combater o mal absoluto, encarnado pela civilização ocidental, pela sua hegemonia totalitária-libertária, e pelo nazismo ucraniano”. Também não é surpreendente que as autoridades ucranianas tenham proibido a venda de alguns dos livros de Dugin.

Porém, a Ucrânia é apenas um dos muitos territórios a que Dugin nega a possibilidade de ter existência autónoma da Rússia: em Fundamentos de geopolítica, proclama que a missão da Rússia é criar um “Novo Império planetário”, de matriz eurasiática e terrestre ou continental, por contraposição à natureza do império americano, que Dugin vê como possuindo uma matriz marítima. E como Dugin, além de ser um pensador prolífico é também um homem de acção, em 2001 fundou o Partido Eurásia (Partiya Yevraziya), a fim de fomentar o surgimento do Império Eurasiático e o desencadear de “uma revolução anti-burguesa e anti-americana”.

Por vezes também se inclui na lista de representantes do neo-eurasianismo Nursultan Nazarbayev (n.1940), que foi o primeiro presidente do Cazaquistão independente e se manteve no cargo entre 1991 e 2019 (e continuou a governar na sombra até 2022). Porém, ao contrário dos nomes acima citados, Nazarbayev não produziu obra teórica sobre o assunto; tem a seu crédito ter instigado, logo em 1994, a criação da União Económica Eurasiática – todavia, esta tem uma vertente estritamente aduaneira e dá mostras de escassa vitalidade. Nazarbayev ficará na História, não como filósofo político visionário, mas como o autocrata que governou o Cazaquistão durante três décadas marcadas pelo desrespeito pelos direitos humanos, pelo nepotismo, pela corrupção e pelo culto da personalidade.

Falácias e incongruências do eurasianismo

Como já se terá percebido por esta altura, existem quase tantas variantes de eurasianismo quanto os seus teóricos. Como aponta Françoise Thom, uma especialista nesta matéria, em Le renouveau des courants eurasistes en Russie: Socle idéologique commun et diversité d’approches (publicada em 2000 na revista Slavica Occitania), “cada corrente de neo-eurasianismo radicalizou o pensamento fundador e o eurasianismo converteu-se numa corrente estritamente geopolítica com Dugin, estritamente naturalista com Gumilev, estritamente culturalista com Bagramov, estritamente económica com Nazarbayev, estritamente filosófica com Panarin, estritamente científica ou literária [nas revistas] Vestnik Evrazii e Literaturnaja Evrazii, centrada apenas nas relações entre a Rússia e as minorias nacionais para o eurasianismo turcomano, etc.”.

O cerco de Samarcanda (hoje no Uzbequistão) pelas tropas imperiais russas, em 1868. Quadro de 1871 por Vasily Vereshchagin

Na verdade, o eurasianismo enfermava, logo à partida, de grandes fragilidades e de uma débil conexão à realidade: os pioneiros do eurasianismo pouco conhecimento directo tinham da Ásia e dos povos que a habitavam e, ao exilarem-se na Europa Ocidental, ainda ficaram mais afastados desse Oriente pelo qual nutriam um fascínio romântico – boa parte das teorias eurasianistas não passam de fantasias inflamadas, congeminadas na atmosfera bafienta de uma biblioteca por quem nunca passou uma noite numa yurt e só conheceu as estepes da Ásia Central através do poema sinfónico homónimo de Borodin.

Não só existem grandes divergências entre os vários eurasianistas, como as teses de cada um deles não primam pela congruência. Por exemplo, o eurasianismo de Pyotr Savitsky reclama-se herdeiro dos mongóis pagãos, mas também acredita que a via para o eurasianismo seria iluminada pela Igreja Ortodoxa. Aleksandr Panarin esperava que a Rússia salvasse a Eurásia do “decréscimo da diversidade cultural do mundo” imposta pela globalização de cariz ocidental, quando, na verdade, os Impérios Russo e Soviético terraplenaram sistematicamente, durante dois ou três séculos, a diversidade cultural dos territórios entre o Leste da Europa e a Península de Kamchatka.

Outra das incongruências do eurasianismo reside no seu relacionamento dúbio com o pan-eslavismo: enquanto este último pretende unir todos os eslavos sob a égide da Rússia, assentando, portanto, no nacionalismo russo, o eurasianismo, ao encarar a Eurásia como uma unidade, requer (ou deveria requerer) a rejeição do nacionalismo e a colocação dos eslavos (russos e não-russos) no mesmo plano que as outras etnias da Eurásia. E, todavia, vários eurasianistas (e proto-eurasianistas) foram também pan-eslavistas. Como aponta a historiadora francesa Marlène Laruelle (outra especialista em eurasianismo), na perspectiva dos eurasianistas “só a cultura russa, entre todas as culturas eurasiáticas, é potencialmente imperial, só ela é capaz de ligar os vários elementos nacionais ao todo. O eurasianismo conjuga, sem dar-se conta da contradição, o culto da diversidade eurasiática e uma definição da Eurásia como espaço de expressão da espacialidade e da orientalidade da Rússia” (Le néo-eurasisme russe: L’empire après l’empire?, in Cahiers du Monde Russe, 2001). No coração do pan-eslavismo estão as ideias complementares de que os russos são o “povo eleito” e de que a Rússia ocupa o lugar central no palco da História.

Entrada das tropas russas em Samarcanda, em 1868. Quadro por Nikolay Karazin (1842-1908)

Apesar do que os separa, a maioria dos eurasianistas parte do pressuposto de que todos os povos da Eurásia aceitariam de bom grado que as suas vidas fossem regidas por burocratas sedeados em Moscovo – o que é desmentido pela resistência que, ao longo dos séculos, os povos da Eurásia ofereceram à sua absorção pelo Império Russo-Soviético. Esta resistência à hegemonia russa ganhou a forma de teoria pseudocientífica e movimento político com o turanismo, que advoga que os povos eurasiáticos que falam línguas da família uralo-altaica (onde não se incluem as línguas eslavas) devem cooperar entre si, de forma a fazer face às crescentes pretensões, pressões e ingerências das potências europeias – incluindo a Rússia. O turanismo surgiu na viragem dos séculos XIX-XX e recorreu a argumentos antropológicos e linguísticos tão dúbios e enviesados quanto os do eurasianismo. O termo provém da Bacia de Turan, uma vasta região desértica situada a leste do Mar Cáspio (e englobando o Mar de Aral), no que são hoje territórios do Turquemenistão, do Uzbequistão e do Cazaquistão, e que seria, segundo conjecturas pouco sólidas, o berço da maior parte dos povos da Eurásia setentrional. Na acepção mais ampla, o turanismo poderia incluir povos tão diversos quanto finlandeses, lapões, estónios e húngaros, num extremo, e japoneses e coreanos, no outro, mas existem variantes mais restritivas, como a que abrangeria apenas os povos turcos. Qualquer delas encara, naturalmente, o eurasianismo russo como uma ameaça.

A Bacia de Turan, delimitada pela linha laranja

Ainda que os seus fundamentos científicos sejam pouco substanciais, o turanismo tem, ao menos, o mérito de desafiar o pressuposto do eurasianismo de que cabe “naturalmente” à Rússia o papel central e dominante no utópico Novo Império Eurasiático. Com efeito, seria muito mais “natural” que o “direito” a governar a Eurásia coubesse à Mongólia, uma vez que Genghis Khan e os seus sucessores criaram um formidável império eurasiático – o de maior extensão (contígua) na história da humanidade – no tempo em que Moscovo era um esquálido aglomerado de barracas.

Os teóricos do eurasianismo esmeraram-se a pintar, num tom róseo e altissonante, a futura união fraternal da Eurásia – “Na irmandade eurasiática, os povos estão vinculados uns aos outros não por um dado número de características, mas pela natureza comum dos seus destinos históricos. A Eurásia é um todo geográfico, económico e histórico. Os destinos dos povos eurasiáticos estão entrelaçados e firmemente unidos num nó impossível de desfazer”, proclamava Nikolai Trubetzkoy no ensaio “Nacionalismo pan-eurasiático”, de 1927 – mas a história remota e presente da Rússia fornece pistas mais do que suficientes para que os outros povos da Eurásia possam antever qual é o papel que o eurasianismo russo lhes reservaria no Novo Império. Basta ver como Vladimir Putin, vendo-se forçado a obter matéria humana fresca para colmatar as pesadas baixas que o Exército Russo tem sofrido na “operação militar especial”, tem concentrado a mobilização nas regiões mais remotas e pobres da Federação Russa, e, sobretudo nas que são habitadas sobretudo por minorias étnicas, como a Yakutia, e poupa a zona ocidental do país e, em particular, os centros urbanos como Moscovo e São Petersburgo.

O emir de Bukhara, acompanhado por vários notáveis, contempla as cabeças decapitadas de soldados russos, em exibição em frente à madrasah de Sher-Dor, no centro de Samarcanda. Quadro de 1872 por Vasily Vereshchagin

Messianismo e utopia

No artigo Le néo-eurasisme russe: L’empire après l’empire?, Marlène Laruelle oferece uma síntese do pensamento eurasianista: “O [seu] postulado fundador […] é a rejeição do Ocidente. A Europa é invariavelmente, sinónimo de capitalismo, a sua consciência é hedonista e consumista, o seu desenvolvimento tecnológico tanto é invejado como é criticado por ter preferido uma ‘tecno-racionalidade abstracta’ aos valores éticos e religiosos. A Europa é igualmente rejeitada num plano que pode ser definido como metodológico: a universalidade não pode senão resultar da hegemonia de uma cultura particular – a da Europa – que coloniza o âmago das outras civilizações ao fornecer-lhes um referencial de autoconsciência que é necessariamente falseado pelo facto de ser eurocêntrico. Este último pressupõe uma unilateralidade do desenvolvimento, uma hierarquia cultural entre países dadores e países receptores. […] A Europa não representa, portanto, um estado de desenvolvimento que todas as nações deverão atingir, mas um modo de desenvolvimento específico, que não é reprodutível. Para que a Rússia se reencontre, é necessário que desaprenda o Ocidente, que assuma um olhar autocentrado face ao imperialismo identitário da Europa”.

É revelador constatar que o eurasianismo floresceu em períodos em que a Rússia atravessava uma crise de identidade e enfrentava uma conjuntura internacional hostil, ou percebida pelos russos como hostil. Despontou na segunda metade do século XIX, quando a Rússia via os seus ímpetos expansionistas frustrados pelas potências da Europa Ocidental. Ganhou força nas primeiras décadas do século XX, quando a Revolução Bolchevique derrubou o Império, perseguiu a religião e estilhaçou a ordem social e a Guerra Civil trouxe privações, a ameaça de secessão de boa parte do antigo Império e o risco de intervenção por potências estrangeiras. Ressurgiu depois de 1991, quando a URSS e o Pacto de Varsóvia se extinguiram, componentes “históricas” do espaço russo se tornaram independentes e os “Estados-vassalos” do Bloco de Leste se libertaram da influência russa e aderiram à NATO, deixando as fronteiras russas mais expostas; quando o capitalismo selvagem, a venalidade e a corrupção devastaram e instabilizaram a economia e a sociedade russas e o nível de vida caiu a pique; quando a fé nos “amanhãs que cantam” – que tomara, imperfeitamente, o papel da fé ortodoxa russa como cimento da sociedade – se esboroou, deixando milhões sem nada em que acreditar; e quando a Rússia deixou de ser uma superpotência inspiradora de temor para se tornar no “homem doente da Eurásia”. Os portugueses não têm de admirar-se com a emergência de mitos messiânicos e utópicos em alturas de crise nacional, pois foi no mais sombrio momento da história nacional que emergiram o sebastianismo e a profecia do Quinto Império.

Resta concluir que, por trás da profusão de conjecturas e devaneios produzidas pelos teóricos do eurasianismo, este não é, no fundo, mais do que uma recauchutagem do velho imperialismo russo, agora sustentado em elementos antropológicos e linguísticos fantasiosos, formulado numa retórica pseudo-universalista e envolto em vapores místicos e messiânicos.

Próximo artigo: A Rússia e o sonho imperial pt. 5: Inimigos, cúmplices, não-alinhados e sonsos e cínicos