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ANDRE TENTUGAL

ANDRE TENTUGAL

A "Vayorken" de Jane Fonda, o encanto de Caetano e o embalo da Língua-mãe nos textos de Capicua

"Aquário" junta crónicas escritas pela rapper a textos inéditos, poemas e letras de canções. O livro da rapper é apresentado agora em Lisboa e no Porto e o Observador revela três excertos.

A primeira parte de “Aquário” tem por título “Cabeça e Cauda”. É o que significa a palavra “capicua”, algo que se lê da mesma forma da cabeça para a cauda e vice-versa. Ana (uma capicua) é o primeiro nome da rapper (e muito mais) que neste livro junta muitas das crónicas que escreveu para a revista Visão (entre 2015 e 2021) a outros textos inéditos, poemas ou letras de canções.

Capicua é Ana Matos Fernandes, que em “Aquário” escreve de forma pessoal e política, artística e socialmente consciente, a partir da memória, mas também concentrada no presente, na vida que faz na música e na maternidade que (também) lhe molda a vida. Esta semana, o livro é apresentado em Lisboa (esta terça-feira, dia 4, Casa Independente, com Mariana Cabral — Bumba na Fofinha — e Joana von Bonhorst) e no Porto (esta quarta, dia 5, com Sara Barros Leitão e Gabriela do Amaral, na Casa Andresen, às 16h). O Observador revela aqui três excertos, três textos que partem de outras tantas experiências.

A capa de "Aquário", o livro que reúne crónicas e outros textos de Capicua (Companhia das Letras)

Jane Fonda

Conheci a Jane Fonda na cassete VHS de ginástica da minha mãe. Era criança e aqueles fatos de lycra em movimento ficaram cristalizados nos meus arquivos de cultura visual. Por isso mesmo, quando escrevi a música “Vayorken”, sobre a minha infância e sobre as referências que dos anos oitenta me ficaram gravadas na memória, a Jane Fonda ocupou o seu altar no refrão. Nada mais justo. Afinal, ela também nasceu em Vayorken, como o hip hop.

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Só há uns meses, porém, conheci melhor a sua história e as reais motivações para a criação do seu primeiro vídeo de ginástica – por sinal, o VHS mais vendido de sempre, recordista absoluto no mundo inteiro. Foi através do documentário biográfico “Jane Fonda in Five Acts”, da HBO, que mostra como a vida da atriz foi sendo dedicada ao seu ativismo corajoso.

Nascida numa família da realeza de Hollywood, marcada pela fama do pai e pela disfuncionalidade das relações, teve sempre muita necessidade de moldar a sua imagem e comportamento para satisfazer as expectativas dos homens da sua vida. No último ato, contudo, já em plena terceira idade, decide viver só, tornar-se independente e praticar o feminismo que sempre defendeu – libertando-se. O filme conta este percurso e a divisão dos capítulos é feita pelas suas relações, do pai até ao último marido, para finalmente ser apenas Jane, emancipada e livre.

Voltando ao ativismo, o documentário retrata o seu papel na luta contra a guerra do Vietname, o orgulho e o arrependimento que marcaram a sua viagem ao terreno e as suas aparições mediáticas a respeito. A solidariedade com a causa dos direitos civis, incluindo a sua ligação aos Black Panther e a adopção de uma criança negra, filha de ativistas presos. A sua capacidade de irritar Nixon e o casamento com o militante da nova esquerda americana, Tom Hayden, com quem viveu uma vida pautada pela frugalidade e pela intensa labuta política, ao serviço da qual investiu a sua notoriedade e o real motivo por trás da criação do famoso VHS.

Só Jane Fonda teria o rasgo de vender o seu workout method para financiar um movimento político de esquerda. Soltei uma gargalhada quando percebi que toda aquela frenética coreografia de lycras coloridas, bestseller do audiovisual e ícone da cultura de massas tinha o único e total objetivo de custear ações de campanha, e que, de todo aquele negócio milionário, Jane Fonda não guardou um dólar para si.

Dizem os céticos que aos quinze anos queremos mudar o mundo e aos trinta, apenas o sofá da sala. Ora, essa não é Jane Fonda, felizmente. E que continue por muitos anos nesta senda pela liberdade, porque o mundo precisa cada vez mais de gente como ela.

Mais recentemente, vimo-la nas marchas de mulheres, discursando ao microfone sobre a importância da luta feminista e da resistência contra o capitalismo selvagem, sobre a desobediência contra todas as políticas de Trump e sobre a importância da solidariedade entre classes, raças e grupos sociais. Nos media tem marcado a agenda permanentemente, levando temas importantes aos talk shows de daytime. Tudo sem perder a graça, a ironia e a capacidade de autoanálise, até para brincar com a sua necessidade de retocar o rosto e colocar silicone, como uma aparente contradição numa mulher com as suas convicções.

Por estes dias, voltei a sorrir quando vi a notícia de que Jane Fonda tinha sido detida, aos oitenta e dois anos, por protestar na escadaria do congresso americano contra a falta de políticas concretas de combate às alterações climáticas. Impecavelmente vestida, de gabardina vermelha e boina pied-de-poule, desafiou a polícia, que pretendia desmobilizar os manifestantes, e, mesmo algemada, reafirmou a sua intenção de repetir o protesto, como Greta Thunberg, todas as sextas-feiras durante as próximas catorze semanas.

Dizem os céticos que aos quinze anos queremos mudar o mundo e aos trinta, apenas o sofá da sala. Ora, essa não é Jane Fonda, felizmente. E que continue por muitos anos nesta senda pela liberdade, porque o mundo precisa cada vez mais de gente como ela. Por tudo isto, faço questão de alterar o refrão da “Vayorken”, afirmando que, quando for grande, já não quero ser “prof.” de windsurf. Quando for grande, quero ser como a Jane Fonda!

O dia em que conheci Caetano

Era uma quarta-feira normal. O Evandro enviou mensagem do Brasil, dizendo que a Paula (“empresária” do Caetano) me queria convidar para o concerto no Coliseu do Porto. Caetano tinha ouvido o Língua Franca e tinha gostado muito. O Língua Franca é um disco de rap luso-brasileiro que fiz com Valete, Rael e Leandro, irmão de Evandro, conhecido por Emicida. Caetano tinha gostado muito! Ele, que é um ativista da língua portuguesa e me inspirou a sê-lo também, tinha adorado a ideia: um disco de rap luso-brasileiro feito na nossa língua franca – a portuguesa. Fiquei feliz!

Enviei mensagem a agradecer o convite, mas já tinha ido ver o concerto na noite anterior. Foi muito bom! Paula disse “Poxa!” e simpaticamente renovou o convite: “e que tal depois do concerto, é muito tarde?” (Formigueiro na barriga, histeria contida, incredulidade: como assim, tarde?!) Como é que, de repente, dali a duas horas, numa quarta-feira normal, se tinha proporcionado conhecer, em carne, osso e timbre, ninguém menos que Caetano Veloso?!

Ainda bem que foram apenas duas horas. Fiquei adolescente. Dei saltinhos. Procurei um disco (dele) para autografar. Procurei um disco (meu) para oferecer. Ponderei mudar de roupa. Desisti. Não estava em condições de tomar decisões estéticas e oscilei entre achar que nenhum trapinho estaria à altura da ocasião e relativizar, convencendo-me que, no fundo, era só uma quarta-feira normal e que ia só ali, meia horita, a dois quilómetros de casa, conhecer Caetano (!!!).

À hora marcada lá estava eu à porta do hotel, com os discos na mão, ainda mais adolescente (e a tentar disfarçar), com a mesma roupa e um batonzinho rosa. Pouco depois, chegaram (simpáticos) Paula e Caetano, que, menos alto do que imaginava, me pareceu ainda mais bonito, com seus movimentos leves, o seu sorriso franco, a sua voz suave… Receberam-me numa salinha contígua ao quarto, e foi no sofá que ficámos à conversa naquela quarta-feira que, em duas horas, passou de normal a efeméride.

"Todas as outras línguas me deixariam órfã de infância e tolhida da minha ancestralidade. Da minha domesticidade"

Fotografia: Capicua

Falámos do Língua Franca, dos concertos no Coliseu, do Porto e suas canções, para chegar às palavras de Tê, que ouvimos juntos, na voz de outro Veloso, num “Porto Sentido” tocado no Spotify. Falámos de Barcelona e de um verão passado na Catalunha dos anos setenta. Falámos de Formentera e da canção de Gil, que Elis também gravou e que Caetano decidiu cantarolar ali, para meu encantamento: “Formentera é uma ilha onde se chega de barco, mãe.” Falámos da língua portuguesa, do tu e do você, de Carminho cantando Tom e de Zambujo cantando Chico. Eles petiscaram. Eu bebi a água que o sobressalto permitiu. Tirámos uma fotografia e ainda bem, porque na manhã seguinte pude confirmar que tinha sido mesmo verdade.

Não consegui dizer-lhe o quanto ele é importante como minha referência, como musa, mito, astro. Não lhe disse que está no meu Olimpo. Que tem a mais bela das vozes, que é uma espécie de guru e que há muito poucos que o igualem na minha hierarquia de genialidade (vivos, mortos, todos eternos…). E nem sequer foi para evitar fazer figura de “fanzoca” (que sou), foi mesmo porque fui violentamente atropelada pela emoção e, mesmo que tentasse, não ia conseguir balbuciar nada à altura da minha devoção. (Valeu-me o abraço apertado que lhe dei.)

No fim, ainda conversei um pouco com Paula Lavigne, que me contou porque é que deixou de trabalhar em cinema para se dedicar à indústria musical. Falámos de filmes, de internet, de música e, sobretudo, de música na era da internet. Carismática, gesticulando muito e do alto da sua sapiência matriarcal, disse-me: “Minha filha, música não é comércio, agora é serviço! Ninguém mais vende discos, só aluga no streaming. Pode escrever, quem não ganhou dinheiro com música, não vai ganhar mais não!” Pode ser. Mas para mim, que nem sequer tinha sonhado em viver da música, com mais esta quarta-feira, estou no lucro!

Língua-Mãe

Uma rima involuntária foi o pretexto. “Leite com pão é uma boa refeição” e tinha chegado o momento de lhe explicar o que é a RIMA. A sagrada instituição. A mágica alquimia da fonética. O meu ofício. À hora de ir para a cama, começámos o jogo. Inicialmente, era eu quem perguntava e respondia, mas rapidamente começou a ser ele a perguntar para me ouvir responder com entusiasmo. O que é que rima com cão? Mão. Com cabelo? Novelo. Com luz? Truz truz. Com sapato? Pato, gato e chato. Com bigo? Amigo! Com mar? Dançar, brincar, cantar! Com areia? Baleia. Com almofada? Nada! Com pijama? Chichi cama! A cada resposta uma gargalhada em cascata, daquelas que só os bebés conseguem fazer soar. E claro que depois da descoberta, no auge da excitação com o “brinquedo” novo, tive de lhe contar a história em rima e recapitular um ou outro episódio da Porquinha Pepa como quem improvisa um rap numa sessão de open mic.

Perante este encantamento, as lengalengas já familiares passaram a ter mais piada e tivemos de relembrar as mais recorrentes. Do “Dlim dlão, cabeça de cão” ao “Pico pico maçarico, quem te deu tamanho bico”, atravessámos o nosso repertório partilhado (já vasto), para regozijo de ambos, apesar da hora tardia. Mas o melhor foram mesmo as gargalhadas. Como se ao entender o mecanismo da rima se surpreendesse ainda mais com as possibilidades e da surpresa nascesse a diversão. Emparelhar palavras, criar jogos fonéticos, novos sentidos, trocadilhos é, de facto, muito entusiasmante para quem, como eu, cultiva uma relação lúdica com as palavras. E mais feliz do que ele em plena cascata de riso, estava eu, por perceber que partilha do meu encantamento e sentido de humor. Ainda por cima, em pleno processo de absorção de uma língua inteira. No esplendor máximo da capacidade de aprendizagem. Repetindo cada nova palavra como quem prova, a ver ao que sabe.

Que coisa maravilhosa! A infância, a língua e o seu encontro. Com alguns encontrões, claro. Sobretudo nos verbos irregulares. Mas que engraçadas são as calinadas e as experimentações de quem se expressa sem pudores numa língua nova, numa vida nova, na novidade total. E é muito por isto que seria incapaz de criar um filho noutra língua que não a minha. A língua-mãe é mãe precisamente porque dela nos alimentámos e já nos conhece desde pequeninos.

Em qualquer outra língua, perderia o elo com as minhas próprias cascatas de riso, ao ouvir o meu pai dizer palavras ao contrário, a minha mãe repetir a lengalenga do macaco ou a minha irmã trocar as sílabas. Definitivamente, só consigo ser mãe na minha língua-mãe. Até porque se é no colo dela que me deito quando a coisa está difícil, é também com ela que me rio à gargalhada.

Foi nela que esboçámos as primeiras tentativas de comunicação verbal. Foi ela quem nos deu os vocábulos com que expressámos as primeiras necessidades, com que demos sentido ao contexto, com que construímos as primeiras reflexões, bloco por bloco, como num castelinho. Foi a língua-mãe que nos deu as primeiras canções e as primeiras histórias antes de dormir. Só com ela temos esse grau de intimidade. Só nela nos exprimimos totalmente, com todas as nuances, com as inflexões que denunciam outras camadas de intenção e de pensamento. Em tudo o que somos hoje e no que fomos sendo, desde sempre.

Todas as outras línguas me deixariam órfã de infância e tolhida da minha ancestralidade. Da minha domesticidade. Seria como criar um filho em casa alheia. Fazendo sempre cerimónia. Sem mostrar as costuras da minha própria criação. Todas as outras línguas seriam insuficientes para a expressão profunda das minhas emoções, para a transmissão do meu imaginário, do meu património cultural e afetivo e do meu sentido de humor.

Em qualquer outra língua, fico à superfície. E não se pode criar um filho à superfície. É preciso mergulhar fundo, entregar todo o corpo e todo o fôlego, dispostos ao afogamento. Em qualquer outra língua, perderia o elo com as minhas próprias cascatas de riso, ao ouvir o meu pai dizer palavras ao contrário, a minha mãe repetir a lengalenga do macaco ou a minha irmã trocar as sílabas. Definitivamente, só consigo ser mãe na minha língua-mãe. Até porque se é no colo dela que me deito quando a coisa está difícil, é também com ela que me rio à gargalhada.

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