Evitar deixar um clima de tensão e de afronta no ar. A todo o custo. É para este objetivo que o PS está a dirigir todos os seus esforços, depois de ter decidido voltar a aprovar a lei para a Habitação que o Presidente da República vetou, sem qualquer alteração que satisfaça as exigências de Marcelo Rebelo de Sousa. Para os socialistas, importa agora assegurar que não há espaço para qualquer conflito ou “drama” — nada interessaria menos do que atrapalhar a rentrée de um ano crucial começando uma guerra com Belém.
“Do ponto de vista institucional, o que há a salientar é que nem o veto do Presidente da República é uma afronta à Assembleia da República, nem a confirmação do diploma por esta é uma afronta ao Presidente da República”, diz em declarações ao Observador o presidente do PS, Carlos César.
“A vida continua”, remata César. Um acrescento curioso: foi a mesma expressão — “a vida continua” — que o Presidente usou ao contar aos jornalistas, a partir da Polónia, que não esperava que o PS lhe fizesse a vontade e mudasse o diploma.
Coincidência ou não, a verdade é que a vontade de mostrar que o PS está em relativa sintonia com o Presidente — e não em guerra, nem numa coabitação cada vez mais difícil — marca todas as conversas com dirigentes do partido e responsáveis do Governo. “Não há nenhum drama”, reagia ao Observador fonte do Executivo, minutos depois de ter sido conhecida a decisão de Marcelo Rebelo de Sousa, e insistindo que no Governo a notícia fora conhecida com “tranquilidade”.
Governo já esperava decisão. Negociar de novo seria “irrealista”
Por um lado, a tranquilidade justifica-se porque ninguém no PS esperava outra coisa: “Surpreendeu um total de zero pessoas”, graceja um dirigente socialista. “As coisas estão a seguir o seu curso”, acrescenta outro. Marcelo Rebelo de Sousa, que começou há meses a atacar o pacote de medidas — o tal que disse que teria de abrir, como um melão, para descobrir se era bom ou mau — e a sua aplicabilidade, vinha fazendo avisos constantes sobre o conteúdo do diploma. “Mas sempre a desdramatizar”, lembra um dos dirigentes já citados.
Na semana passada, a partir da praia algarvia onde passava férias, o Presidente desdobrou-se em declarações sobre a necessidade de o Executivo adotar medidas “exequíveis” e chegou a fazer contas de cabeça sobre as consequências de um então hipotético veto — uma decisão que não atrapalharia muito os timings do PS, pois precisaria apenas de cerca de um mês para reconfirmar o diploma tal como estava.
Por isso mesmo, os socialistas estavam prontos para tomar aquela que acreditam ser a única decisão possível, garantindo que não o fazem para “afrontar” o Presidente. Por todo o lado no PS se repete a tese: “Sem afrontas, com equilíbrio”.
Ou seja, os dirigentes socialistas acreditam que neste tópico as posições à esquerda e à direita já estão tão “extremadas e polarizadas” — um ponto que o Presidente da República também frisou, embora atribua a culpa dessa polarização à proposta do PS — que seria “irrealista” pensar que seria possível reabrir as negociações e chegar a um novo acordo político.
“O PSD é que disse que o Governo devia rasgar o pacote…”, ironiza um dirigente socialista, sugerindo — apesar da “disponibilidade” que Luís Montenegro disse esta segunda-feira ter para negociar com o PS — que ninguém no PSD estaria verdadeiramente interessado em negociar.
Além disso, na cúpula do PS vinga a ideia de que Marcelo Rebelo de Sousa, consciente de que a maioria absoluta de deputados do partido seria suficiente para reconfirmar a lei sem novas alterações, decidiu ainda assim avançar com um veto recheado de críticas com um objetivo particular: agradar a parte do que será o seu eleitorado natural, de direita, preocupado com os interesses dos proprietários e dos investidores (os mesmos que Marcelo insistiu por várias vezes terem ficado “perplexos” com as propostas socialistas).
Socialistas usam professores como exemplo da boa coabitação
Registada a “manifesta” discordância entre Belém e São Bento, como o líder parlamentar do PS, Eurico Brilhante Dias, reconheceu a partir do Parlamento, o núcleo duro dos socialistas fechou a decisão: perante o rol de críticas de Marcelo, que atingia todos os principais pontos do diploma, e as posições longínquas dos partidos tanto à esquerda como à direita, não haveria mais esforços para negociar.
O que não significa que haja qualquer desejo dentro do PS em abrir uma guerra com o Presidente. Logo nas primeiras reações à notícia do veto, dirigentes e membros do Governo apressaram-se a recordar um dado: o Presidente da República não decidiu apenas sobre o polémico diploma que continha medidas como o arrendamento coercivo de casas devolutas ou as restrições ao alojamento local. Também se pronunciou favoravelmente sobre outro diploma relativo ao licenciamento urbanístico e, particularmente importante, promulgou o diploma sobre a carreira dos professores, que tinha vetado em julho.
À segunda tentativa, Marcelo promulga diploma sobre carreira dos professores
Para o PS, há todo o interesse em salientar essa posição de Belém: afinal, foi por causa da norma relativa à carreira dos docentes que o Presidente da República escreveu um longo texto a atacar o Governo. Depois disso, chegou a um acordo (“mínimo”, chegou a comentar em público) com António Costa, com quem conversou por telefone, para ficar inscrita no preâmbulo da lei uma garantia de que as negociações sobre a carreira docente não ficam definitivamente fechadas. Marcelo queria deixar “uma ponta de esperança” aos professores, o Governo fez-lhe a vontade.
E esse, espera o PS, é um exemplo de que a coabitação funciona (“é estreita e dialogante”, garantia Eurico Brilhante Dias esta segunda-feira) e que a decisão sobre o pacote da Habitação é circunstancial. Mais importante: não faz parte do pano de fundo de uma relação mais complicada com o Presidente, nem da vigilância mais apertada que Marcelo prometeu fazer depois do caso João Galamba.
Nessa altura, o Presidente falou ao país e o PS deu ordem às tropas para pôr gelo nos pulsos — depois de o primeiro-ministro ter entrado em confronto direto com Belém, segurando o controverso ministro Galamba, não havia necessidade de mais responsáveis socialistas virem espicaçar o Presidente nem cantar vitória em público.
Com um Conselho de Estado marcado para 5 de setembro e um ano decisivo a começar — com eleições europeias no horizonte –, a lógica é a mesma: desvalorizar toda e qualquer discordância com Marcelo e tentar que o momento seja de viragem numa legislatura acidentada. “Isto não piora nem melhora as relações institucionais. É preciso normalizar as convergências e divergências”, viria a ministra da Habitação reforçar a meio da tarde, enquanto visitava as obras de construção de 100 novas casas no âmbito do Plano Integrado de Almada.
O pacote da Habitação surgiu, de resto, numa altura, no início do ano, em que o PS tentava recuperar o controlo da narrativa política enquanto era atropelado por notícias sucessivas de polémicas na TAP. A ideia era voltar a controlar o discurso político e mostrar iniciativa, agarrando na questão problemática da Habitação.
Agora, Marcelo mostra-se pessimista — o Presidente garantiu que “não há drama” na decisão do PS de reconfirmar a lei, mas continua convicto de que a lei “não vai dar” resultado — e coloca um nível de pressão extra sobre o Executivo. Até porque, depois de encolher os ombros e lembrar que “a vida continua”, o Presidente acrescentou um aviso: “E cá estaremos vivos daqui a dois, três anos, para ver os resultados” do pacote.
Marcelo diz que Mais Habitação “não vai dar certo”. Veto foi por “consciência”, mas “não há drama”
É o mesmo pacote sobre o qual até boa parte do PS tinha sérias dúvidas, o que obrigou, no início do ano, a ministra da Habitação, Marina Gonçalves, a desdobrar-se em apresentações das medidas em plenários com militantes, um pouco por todo o país. E que foi sendo “descafeinado”: os moldes das medidas mais polémicas, à cabeça o arrendamento coercivos de devolutos e as restrições ao alojamento local, foram sendo progressivamente suavizados até estas acabarem aprovadas, ainda que apenas pelo PS, no Parlamento.
PS gere expectativas: “Não há balas de prata”
Agora, Marcelo questiona a eficácia das medidas e no PS vai-se avisando: “Não há balas de prata” nem soluções imediatas para o problema da Habitação, “demasiado complexo” para se poder garantir que, pelo final do mandato do Governo, em 2026, estará resolvido. “O que é que significaria estar resolvido…?”, atira um dirigente, apontando para as várias dificuldades em cima da mesa, da necessidade de disponibilizar mais casas para habitação à de tentar controlar no imediato as prestações de créditos afetados pela subida das taxas de juro.
Até porque este é um drama que está, insistem vários dirigentes, longe de ser um exclusivo português, e que o Governo tenta resolver em várias frentes, do Mais Habitação ao investimento de dois mil milhões de euros no setor, no âmbito do Plano de Recuperação e Resiliência. “Bom mesmo será no futuro investir e fazer prova desse investimento“, avisa um alto dirigente socialista.
Feita a gestão de expectativas, uma coisa é certa: se o pacote não for suficiente para uma situação que já descreveu como “muito sensível”, Marcelo estará pronto para lançar um “eu bem te avisei” ao Governo quando os mandatos de ambos acabarem — ou seja, no final do prazo de “dois, três anos” que o próprio acabou por fixar.