Índice
Índice
Sábado, 9 de março, 10h24. Estávamos em 1996 e Mário Soares, o Presidente da República portuguesa durante a última década, o homem que tinha ajudado a fundar a democracia em Portugal, acabava de passar o testemunho a Jorge Sampaio. Nesse mesmo dia, entrou no seu BMW 523 i, juntamente com a mulher, Maria Barroso, e foi para casa fazer as malas. Ia de férias para Espanha, de carro, sem data marcada de regresso, apenas uma ideia de voltar antes de começarem as chuvas de Abril. Saiu feliz, pronto para começar uma nova fase da sua vida. “Vou fazer um intervalo para reflectir e descansar”, disse aos jornalistas. “Temos pena de o ver partir”, comentou José Pacheco Pereira.
O social-democrata não perderia pela demora. Ter-lhe-á escapado no momento a palavra-chave: “Intervalo”. O afastamento da vida política activa foi isso mesmo, apenas um intervalo numa carreira que ainda teria mais duas décadas pela frente, incluindo uma disputa directa com o próprio José Pacheco Pereira.
Em 1996, Soares foi conselheiro de Estado e assumiu a presidência da Fundação Mário Soares. Mas apenas três anos depois, logo no arranque de 1999, o “Bochechas”, como era carinhosamente conhecido pelos portugueses, começou a ser falado para cabeça de lista do PS às eleições europeias. No início, muitos não acreditavam nessa possibilidade. “O que nós verificamos é que é uma sina no PS: cada vez que há eleições europeias, é lançado um nome que não corresponde à realidade. (…) Quem for, passará dois meses a explicar porque é que não é o Dr. Mário Soares”, disse então Marcelo Rebelo de Sousa, ao Diário de Notícias.
O actual Presidente da República estava, na altura, no seu último ano à frente da presidência do PSD. Seria desmentido cinco dias depois, no XI Congresso Nacional do PS, que decorreu entre 5 e 7 de Fevereiro no Coliseu de Lisboa. Mário Soares nem esteve presente e o seu nome ainda não tinha sido formalmente anunciado, mas já era dado como certo pela imprensa.
E foi: passados pouco mais de dois meses, a 9 de Abril, a candidatura de Soares foi oficialmente lançada. O anúncio marcou o regresso do ex-Presidente à política activa: o “intervalo” tinha chegado ao fim.
Soares é “fixíssimo”
Família socialista unida: a meses das europeias, e já a pensar nas eleições legislativas, os militantes do PS receberam a candidatura de Mário Soares em apoteose. O anúncio tinha sido planeado como um encontro mais recatado, destinado a acolher os notáveis. Mas a afluência de socialistas foi tão grande que o comício de encerramento acabou por ser no Pavilhão Multiusos, no Parque das Nações.
Os planos do PS pareciam estar a correr de forma perfeita. O primeiro objectivo era ganhar as europeias, aproveitando ao máximo o facto de o PSD ainda não ter decidido o seu cabeça de lista — nesta altura falava-se em Pedro Santana Lopes, por exemplo, mas acabaria por ser José Pacheco Pereira. Além de Pacheco Pereira, Soares teve como adversários Paulo Portas, pelo CDS, e Ilda Figueiredo, pelo PCP. O Bloco de Esquerda tinha acabado de ser fundado nesse mesmo ano, a 28 de Fevereiro.
A segunda meta eram as legislativas. António Guterres, a terminar o primeiro mandato à frente do Governo, queria que as europeias, agendadas para 13 de Junho, preparassem o terreno para reconquistar a maioria absoluta nas urnas, com a decisão marcada para 10 de Outubro.
E havia ainda um terceiro objectivo: fazer campanha nos bastidores para Mário Soares ser eleito Presidente do Parlamento Europeu, um cargo de prestígio e influência na Europa. Soares assumiu desde logo que estaria disponível para partir o mandato ao meio, conforme a tradição. É que o mandato é de cinco anos, mas os cargos são de dois anos e meio, o que permitiria fazer facilmente a divisão.
Naqueles tempos, os comunistas estariam longe de imaginar que 17 anos mais tarde dariam apoio parlamentar a um Governo socialista, absolutamente comprometido com regras europeias em matéria orçamental e de política económica. A desconfiança em relação a Soares e aos socialistas era profunda. “Tem um cabeça de lista a prazo, que diz em voz alta aquilo que o PS diz em voz baixa envergonhadamente, isto é, que defende uma Europa federal e que se não vier a ser Presidente do Parlamento Europeu faz as malas e volta a sua Fundação”, atirou Carlos Carvalhas, que era então o secretário-geral do PCP.
No 10 de Junho, dia de Portugal e do comício de encerramento do PS no Parque das Nações, juntaram-se mais de 20 mil pessoas. “No Parlamento Europeu não serei fixe, serei fixíssimo”, prometeu Soares, aludindo ao slogan das Presidenciais de 1986.
Desiludiu-se Mário Soares, que foi eleito eurodeputado mas nunca chegou a presidente em Estrasburgo, mas também se enganou Carlos Carvalhas. O ex-Presidente da República venceu as europeias com 43,07% dos votos, mas não conseguiu o cargo ambicionado de Presidente do Parlamento Europeu.
Ainda foram feitas diligências para a tal divisão do mandato. Mas a vitória da direita à escala europeia deixou Soares fora de pé. Venceu Nicole Fontaine, eurodeputada francesa do PPE. “Com o PS a candidatar Mário Soares esperava-se mais. Era como se Amália Rodrigues concorresse ao Festival da Canção. Ganhava, mesmo que desafinasse…”, criticou Durão Barroso.
Ainda assim, Mário Soares não regressou à vida lisboeta. Manteve-se como eurodeputado até terminar o mandato, em 2004, demonstrando uma característica que viria a manter até ao fim: só perde quem desiste de lutar.
Dez livros, uma biblioteca e um jardim
Durante os cinco anos em que trabalhou no Parlamento Europeu, Soares foi muito mais do que um eurodeputado. Aproveitou a vista privilegiada do centro da Europa como uma espécie de placa giratória para continuar a conhecer e a pensar o mundo. “Reconheço que o Parlamento Europeu foi, para mim, uma fonte extraordinária de aprendizagem e de informação especializada sobre os grandes temas internacionais”, diria, mais tarde, na sua autobiografia.
Entre 2000 e 2005, Mário Soares publicou dez livros sobre temas tão diversos como poesia e literatura, política, terrorismo, desigualdades sociais, neoliberalismo ou relações entre a Europa e África, ou a Europa e o outro lado do Atlântico.
Por exemplo, em Português e Europeu reflectiu sobre o que é ser português numa Europa em alargamento, cujas relações com os Estados Unidos e África estão em constante redefinição. Mas, em Incursões Literárias, publicado apenas três anos depois, deixou o seu olhar sobre 26 dos mais importantes nomes da literatura portuguesa, da obra de Camilo Castelo Branco às lições privadas com Agostinho da Silva.
Além das obras publicadas, sobravam-lhe ainda ideias para trabalhos futuros. Em A Última Campanha, Filipe Santos Costa enumera os projectos que Soares deixou em suspenso para se lançar na luta pelo regresso à Presidência da República, pela terceira vez. “Estava por acabar um livro que partia de longas conversas com Federico Mayor, seu homólogo no estatuto de ‘ex’, no caso, ex-director-geral da UNESCO. Tinha outra obra começada, sobre as grandes personagens com quem se cruzou ao longo da vida, um misto de memórias e de história pessoal do século XX. E havia outro projecto, entretanto pendurado a um canto, para fazer uma sequela do seu livro mais célebre, Portugal Amordaçado. Seria um olhar sobre o país a partir do 25 de Abril, retomando o fio da história mais ou menos onde a obra original o tinha deixado”, enumera Filipe Santos Costa.
Os livros e as leituras — que tão enfadonhos achava quando era criança — acabaram por se revelar uma paixão para Mário Soares. Acumulou mais de 60 mil títulos nas suas prateleiras. Foi, aliás, por esta altura que iniciou um dos seus projectos mais acarinhados: transformar um apartamento inteiro numa biblioteca. O ex-Presidente vivia no Campo Grande.
O apartamento por cima do seu pertencia ao amigo José Manuel Galvão Teles, hoje senior partner da sociedade de advogados Morais Leitão, Galvão Teles, Soares da Silva. O amigo tinha mudado de casa e Mário Soares alugou-lhe o apartamento. A ideia era enchê-la de livros: “Seriam assoalhadas temáticas — ficção lusófona nesta, Religião naquela, História além, ensaios sobre o iberismo na estante ao lado…”, lê-se em A Última Campanha.
Além disso, Soares transformou o antigo quarto de Galvão Teles num escritório pensado exclusivamente para escrever livros. E para o terraço, a toda a volta, encomendou a Gonçalo Ribeiro Telles um jardim.
80 anos: “Basta de política!”
Tocava o Hino da Europa e Mário Soares chegou com a mulher, Maria Barroso, e com a filha, Isabel. Passava das 21h e tinha mais de duas mil pessoas à sua espera, só para o homenagear. A 7 de Dezembro de 2004, no dia em que completou 80 anos, Mário Soares disse “Basta de política!” e quis passar o testemunho à nova geração. Mas ainda não seria desta.
A homenagem foi ideia de Vasco Vieira de Almeida, que a organizou com a ajuda de Vítor Ramalho, António Dias da Cunha e a filha de Soares. As inscrições foram tantas que o jantar teve de se realizar no Pavilhão 2 do Centro de Congressos de Lisboa. Era a vontade de acarinhar um político histórico que unia personalidades de todas as cores políticas — fizeram-se notar, pela sua ausência, apenas Cavaco Silva, Ramalho Eanes e dirigentes do PCP, embora tenham estado presentes outros militantes comunistas.
Mas não só. Ressurgia com mais força a ideia de uma nova candidatura presidencial — à excepção da filha, que estava decididamente contra, esta era uma vontade clara dos organizadores do jantar. Afinal, faltava pouco mais de um ano para as presidenciais de 2006, agendadas para Janeiro, e não havia um candidato óbvio para os socialistas.
O apurado faro político de Mário Soares não deixou escapar essa intenção velada. “Quando entrei naquele enorme salão da FIL – cerca de duas mil pessoas sentadas à mesa – senti que a maior parte tinha em mente essa ideia de uma nova candidatura. Mas eu não queria”, contou, mais tarde, na sua autobiografia.
Por isso, o ex-Presidente afastou essa possibilidade na hora. O seu discurso ficou conhecido por ter sido o momento em que disse “Basta de política!” e em que preferiu antes falar daquilo que as gerações futuras poderiam dar ao país. “Não se trata de uma comemoração, mas sim de um jantar de amigos”, fez questão de notar. E acrescentou: “Um jantar de amigos, naturalmente, preocupados com os caminhos incertos que parece seguir a Pátria. Mas não um jantar político com objectivos determinados. Nada disso!” Segundo Soares, haveria que olhar para “as gerações que nos sucedem”, sobretudo para “os mais novos”. Até porque, “na política, como nos vinhos, há bons e maus anos, boas e más colheitas — tenhamos esperança nas próximas safras”.
Seja como for, não resistiu a fazer umas achegas à política activa. Pediu uma maioria absoluta para as legislativas que se aproximavam, depois de Jorge Sampaio ter anunciado, uns dias antes, que iria dissolver a Assembleia da República. E até traçou cenários: caso o PS falhasse a maioria absoluta, deveria tentar um entendimento à esquerda. “Apesar das posições diferentes dos partidos à esquerda, essa aliança não está proibida”, atirou. Mário Soares estava mais de uma década à frente do seu tempo, como se veria mais tarde.
O regresso
E houve um dia em que Mário Soares disse sim a Sócrates e aceitou recandidatar-se à Presidência da República. Podia ter optado por continuar na sua casa-refúgio em Nafarros, local de reflexão, trabalho e lazer. Ou podia ter-se deixado ficar na Praia do Vau, onde gostava de passar as férias. Mas, no Verão de 2005, ainda com 80 anos, aceitou lançar-se naquela que viria a ser a sua maior derrota política.
O pedido de ajuda de Sócrates a Mário Soares foi feito em Junho, depois de o PS ter decidido que não apoiaria a candidatura de Manuel Alegre. O homem que já levava dez anos de Presidência na bagagem aceitou e deixou tudo em suspenso para se atirar de cabeça na candidatura. Os livros que ainda estavam por arrumar no seu apartamento-biblioteca ficaram meses esquecidos na bancada da cozinha e as ideias que tinha para escrever ficaram congeladas, contou a Filipe Santos Costa. O seu espírito “muito racional”, nada “dado a desvios místicos”, como se auto-caracterizava, dizia-lhe que, se queria ganhar, tinha de correr. E depressa.
Na véspera do anúncio formal da sua candidatura à Presidência, Manuel Alegre decidiu avançar sozinho, sem o apoio do PS. Tornou a intenção pública em Viseu e, a partir desse momento, cristalizou a ideia de que os socialistas não se entendiam para apoiar um candidato único.
E por isso o combate de Soares não se fez só com o concorrente de maior peso, Aníbal Cavaco Silva, que congregava as direitas. Poucos dias antes da eleição, Marcelo Rebelo de Sousa, como comentador, sintetizou bem as fragilidades da candidatura de Soares. “É uma campanha difícil, nomeadamente por causa da candidatura de Manuel Alegre”, notou, a um domingo, 15 de Janeiro, na RTP. “Tem três problemas quase insuperáveis. Um é o do tempo: esta é uma candidatura fora do tempo. Ele disse-o a certa altura: ‘Eu entrei tarde de mais.’ Eu concordo, só que o meu ‘tarde de mais’ são dez anos. Já nem vou falar dos 81 anos, é o tempo psicológico. O eleitorado tem um feeling para dizer ‘Este é o tempo daquele candidato ou não é, o que é que ele pode dar de útil’. E essa luta contra o tempo marcou o conteúdo da candidatura”.
De facto, uma semana antes, no arranque oficial da campanha eleitoral, a sondagem da Marktest para o DN e TSF tinha dado uma boa medida do desafio. Cavaco Silva arrancava com 61% das intenções de voto e Soares reunia 14,3%, deixando Alegre no terceiro lugar.
À medida que os dias foram passando, Soares foi perdendo posição, distribuindo as intenções de voto pelos restantes candidatos da esquerda. No dia seguinte àquele comentário dominical de Marcelo, Soares tinha caído para 11,4% e tinha-se deixado ultrapassar por Alegre, com 19,5% das intenções de voto. Cavaco caíra, mas continuava com a maioria, nos 56,4%. Cinco dias antes da ida às urnas, o Diário de Notícias tomou nota de um comentário ouvido pelo candidato nas ruas de Viseu: “Eu sempre gostei muito do senhor, mas no passado. O tempo do senhor já passou”.
A 22 de Janeiro, Mário Soares perdeu as eleições com um resultado histórico — pela negativa. Obteve 14,3% dos votos, o valor mais baixo alguma vez conseguido por um candidato to PS. Foi pouco além dos 770 mil votos, tanto quanto Jerónimo de Sousa e Francisco Louçã juntos.
Manuel Alegre tirou-lhe o segundo lugar e a esquerda toda junta não evitou a eleição à primeira volta de Cavaco Silva. Soares sabia que tinha cometido erros, tanto durante a campanha como logo no arranque, na análise das principais dificuldades.
O problema da idade tinha sido desvalorizado, a dinamização dos socialistas fora insuficiente, as novas técnicas de marketing político tinham-lhe escapado — mesmo com o apelo de última hora aos profissionais das eleições, como Jorge Coelho. Para o ex-Presidente derrotado, tinha perdido para o homem da direita que apenas colocava a economia à frente das pessoas, e para o concorrente directo socialista, que se tinha alavancado só com a ideia de não ter apoios partidários. No dia D — neste caso, de derrota –, Soares subiu ao palco, assumiu a desilusão dos resultados e procurou salvar o que podia ser salvo: na campanha, tinham sido lançadas ideias, e “essas ideias farão o seu caminho”.
“Só é vencido quem desiste de lutar”
“Como mais uma vez demonstrei, não desisto de lutar”, disse Mário Soares, na noite da derrota eleitoral. “Esta minha campanha ficará, creio, como uma referência cívica para o futuro”, defendeu. E rematou: “Pelo que a vida me ensinou, este combate cívico não termina hoje. Em democracia, perdem-se e ganham-se eleições. É essa a regra do jogo. Mas – como sempre disse também – só é vencido quem desiste de lutar”.
O discurso da derrota emocionou os apoiantes. Levantou-se metade da sala, houve aplausos e voltou a ouvir-se o slogan “Soares é fixe”. Os votos podiam ter sido desbaratados, mas o capital de influência do ex-Presidente continuava forte.
O motivo pelo qual tinha aceitado o pedido de José Sócrates — o sentido de dever cívico, a convicção de que o país precisava da sua intervenção, e a certeza de que não travava combates apenas pelo poder — seria o mesmo que o levaria a continuar a travar batalhas já bem dentro da “quarta idade”, como uma vez se referiu depois de ter completado oito décadas de vida.
Nos anos que se seguiram à derrota nas presidenciais, Soares voltou aos livros. Entre 2009 e 2010 publicou mais três. Em Um Mundo em Mudança analisa a crise económica, a forma como esta se contagiou dos Estados Unidos à Europa e a esperança que Barack Obama conseguiu espalhar tanto entre os jovens como entre as minorias. No Elogio da Política, reflecte sobre o próprio exercício da política, bem como sobre o conceito de democracia, em termos nacionais e internacionais.
E no livro Em Luta por um Mundo Melhor deixa as razões pelas quais não conseguia dar a luta contra as desigualdades e a desregulamentação dos mercados de capitais como perdida. “É preciso regulamentar e supervisionar os mecanismos de mercado. Reforçar os Estados de direito. E reformular o socialismo democrático — que em muitos casos se deixou ‘colonizar’ pelo neoliberalismo — dignificando o trabalho, aprofundando as políticas sociais e lutando a sério em defesa do planeta, ameaçado, e pela solidariedade entre os humanos, sem exclusões”, escreveu.
Aula Magna: o encontro das esquerdas
Estávamos em 2013, em plena austeridade da troika. Os contribuintes já tinham sofrido o enorme aumento de impostos, a taxa de desemprego tinha atingido o máximo histórico de 17,5% e os indicadores económicos mostravam os portugueses no auge do pessimismo. Menos um: aos 89 anos, apenas um ano depois de ter estado à beira da morte, Mário Soares encontrou forças para iniciar a união das esquerdas contra o Governo de direita, liderado por Pedro Passos Coelho.
“Gostava que os partidos de esquerda se entendessem, mas não quero pedir tanto… Talvez um dia seja possível”, desejou o histórico fundador da democracia portuguesa, em entrevista à revista Visão, publicada a 30 de Maio desse ano. E dramatizou: “Lembro uma coisa: os social-democratas e os comunistas alemães passavam a vida a discordar e a discutir quando apareceu o Hitler. Acabaram todos em campos de concentração. Temos de pensar nisso.”
Sem medos, Mário Soares voltava ao activo. A encefalite que o tinha deixado, em Janeiro de 2012, dez dias em coma estava completamente ultrapassada. Mário Soares já participava novamente nos Conselhos de Estado, embora tivesse criado o ritual de sair sempre antes das 20h, a tempo de jantar em casa. “Quando recuperei a consciência, comecei a fazer o que sempre fiz, com o meu médico, Daniel de Matos (que foi quem me levou para o hospital) e a quem sempre, como é meu hábito, obedeci”, contou ao jornal i, em Abril.
O primeiro encontro das esquerdas, realizado na Aula Magna, aconteceu exactamente a 30 de Maio. Teve como mote “Libertar Portugal da Austeridade” e uniu militantes do PS, Bloco de Esquerda e PCP. Mas os promotores, onde se encontravam, além de Soares, Vítor Ramalho e Manuel Alegre, sabiam que a proposta de congregar esforços à esquerda ainda estava verde, precisava de tempo para fazer o seu caminho. À Visão, Mário Soares assumiu que juntar as diferentes esquerdas na mesma conferência não tinha sido simples. “Não terá sido fácil (risos)… Falei com todos, por várias vezes”, revelou.
No dia, os promotores repetiram até à exaustão que aquela era uma iniciativa “que se esgota em si mesma”. O encontro centra-se num “mínimo denominador comum”: o combate à política de austeridade e a luta pela queda do actual Governo, frisaram.
Houve ainda o cuidado de evitar os convites aos dirigentes partidários e dar preferência a militantes de base. Os discursos ficaram a cargo de Mário Soares, de Maria do Rosário Gama (da associação Apre!), da bloquista Cecília Honório, do eurodeputado comunista João Oliveira, do socialista Ramos Preto e do reitor da Universidade de Lisboa, Sampaio da Nóvoa.
Mas a semente estava lançada. E Soares nem fez particular esforço para esconder o objectivo último, admitindo, em declarações ao jornal Público, que gostava que o PS se encostasse mais à esquerda. “Agora os partidos políticos devem reflectir. Aqueles que pensam só no centro têm de ver que o PCP e o BE estão a crescer. Por vezes, por se querer ganhar o centro, acabam por perder a esquerda”, avisou.
E, afinal, o encontro que era suposto ter ficado por ali acabou por ter uma segunda edição. Na noite de 21 de Novembro, a Aula Magna voltou a acolher os contestatários do Governo, sob o lema “Em defesa da Constituição, da Democracia e do Estado Social”.
Desta vez, Soares endureceu o tom
“Não desgrace mais Portugal, senhor Presidente”, pediu a Cavaco Silva, que já se tinha destacado por ter promulgado um Orçamento do Estado (o de 2012) que o Tribunal Constitucional viria a considerar ter normas que não estavam de acordo com a Constituição.
“O Presidente e o Governo devem demitir-se, enquanto podem ainda ir para suas casas pelo seu próprio pé. Caso contrário, serão responsáveis pela onda de violência que também os atingirá”, atirou ainda. “É preciso ter a consciência de que a violência está à porta”, avisou. “Por isso, ouso dizer, patrioticamente: senhor Presidente, demita-se!”
Apesar de não ter conseguido o apoio que era esperado de várias personalidades do centro-direita (só José Pacheco Pereira compareceu), o encontro de 21 de Novembro teve mais peso do que o de Maio, por ter reunido homens ligados às instituições militares. Além de Pinto Ramalho, que discursou, estavam na sala Pezarat Correia e Mourato Nunes. Os generais Loureiro dos Santos, Manuel Monge e António Pires Veloso enviaram uma mensagem.
Atravessava-se um período de fogo do mandato de Passos Coelho. Fazia um ano desde que a grande manifestação do final do Verão de 2012 — contra o aumento da taxa social única (TSU) para os trabalhadores — tinha obrigado o primeiro-ministro a recuar, sob pena de perder o país para a instabilidade social. A crise da demissão “irrevogável” de Paulo Portas, que acabou por se manter no Executivo com a recompensa de uma promoção para vice-primeiro-ministro, tinha acontecido em Julho daquele ano e Cavaco Silva tinha encontrado forma de segurar a coligação PSD/CDS-PP no poder.
A referência de Mário Soares à possibilidade de violência foi por isso interpretada como incentivo à violência, mas Mário Soares negou essa intenção dias depois: “Ao contrário do que alguns especuladores da comunicação social, ao serviço do Governo, têm vindo a dizer, eu odeio a violência. Se falei em violência foi para prevenir as pessoas e para a evitar. Sempre fui pacifista e contrário à violência.”
O desejo de Mário Soares de ver o país virar à esquerda não se concretizou logo. Foi preciso esperar pelo fim do mandato de Passos Coelho e pelas novas eleições. Os sociais-democratas venceram a votação mas não encontraram apoio suficiente no Parlamento para formar Governo. O PS, pela mão de António Costa, tomou posse em Novembro de 2015, com o apoio parlamentar do Bloco de Esquerda e do PCP.
“Não há ninguém com quem esteja zangado”
De bem com a vida, sem zangas, confiante de que a Europa saberá ultrapassar as crises que atravessa. A partir dos 90 anos, Mário Soares deu muitas entrevistas de vida aos jornais onde falou de si e da sua forma simples e descomplexada de ver o mundo. “Não faço História. Conheço a História, mais ou menos. Mas não acho que eu tenha sido especial. Não sou nada de especial. Ser Presidente da República é igual a ser outra coisa qualquer”, disse, ao jornal i, em Fevereiro de 2015.
Antes disso, já tinha contado como fez as pazes com Manuel Alegre, na sequência dos 10 dias em coma, numa cama do Hospital da Luz. “O Manuel Alegre, durante a minha doença, preocupou-se muito com a minha saúde. Falou muitas vezes com os meus filhos e a minha mulher e a perguntar por mim e pelas minhas melhoras. Percebi que era meu amigo e que punha a amizade acima da política. Eu também. Por isso lhe telefonei. Estando ao lado do Seguro, perguntei-lhe se tinha o telefone do Alegre e falei-lhe a agradecer o cuidado que teve por mim e a pôr uma pedra sobre o passado. Foi assim que fizemos as pazes. Depois disso, já almoçámos juntos e temos falado quase todos os dias pelo telefone”, lembrou.
Nem em relação a Passos Coelho, alvo preferencial da sua última batalha política, guardava rancor. “Não há ninguém com quem esteja zangado agora”, disse noutra entrevista ao jornal i. “Mas vou contar-lhe uma situação engraçada. Há dias estava a almoçar num restaurante e senti alguém tocar-me nas costas. Olhei para trás e era Passos Coelho, que me disse: ‘Venha de lá esse abraço, querido amigo!’. Ao que respondi: ‘Amigo, com certeza. Mas sabe que todos os dias digo mal de si nos jornais e em todo o lado. Todos os dias sem excepção!’ Respondeu-me: ‘E que importância é que tem isso? O importante é a amizade! Venha de lá o abraço!’ De facto, mantive relações de amizade com Passos Coelho até ele ir para o governo. Pessoalmente gosto dele. Mas tem feito, a meu ver, muitos disparates e eu não posso deixar de escrever isso!”