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A vida de Soares, parte V. "Soares é fixe!" Os anos em Belém

Presidência. A aventura presidencial de Mário Soares começou com 5% nas sondagens e terminou com uma reeleição de 70,35%, com o PS no Governo e com um sucessor socialista em Belém. Nada mal.

Foi o seu último ato público como primeiro-ministro. A 12 de junho de 1985, Mário Soares assinou o Tratado de Adesão de Portugal à então Comunidade Económica Europeia (CEE), hoje União Europeia. No dia seguinte, apresentou ao Presidente Ramalho Eanes a demissão do IX Governo constitucional, mais conhecido por “bloco central”.

A grande coligação entre os dois maiores partidos portugueses, PS e PSD, tinha proporcionado a maioria parlamentar indispensável às dolorosas medidas de austeridade que acompanharam o segundo pedido de ajuda ao Fundo Monetário Internacional (FMI). Mas, com tais medidas, aquele governo deixara um rasto de desemprego, trabalho infantil, salários em atraso e fome – denunciado com especial autoridade moral pelo bispo de Setúbal, D. Manuel Martins –, que afundara a popularidade do primeiro-ministro.

Isso mesmo percebeu o antigo ministro das Finanças Cavaco Silva, que em maio fora ao congresso do PSD, na Figueira da Foz, “fazer a rodagem” do seu novo Citroën BX, e saíra de lá transformado em líder, com um caderno de encargos que incluía tirar o PSD da coligação, derrubar o Governo do “bloco central”, conquistar o poder e apoiar a candidatura presidencial do ex-líder do CDS, Freitas do Amaral.

"O PS aprovou por unanimidade e aclamação a decisão de me candidatar a Presidente. Não tinha ilusões: para alguns membros do PS, foi uma maneira amável de se verem livres de mim. Quem apostaria, então e nos meses que se seguiram, na minha eventual vitória?”
Mário Soares

Soares não se deixou abater. Provavelmente inspirado pelo slogan gritado dez anos antes no célebre comício da Fonte Luminosa, no auge do PREC – “Quanto mais a luta aquece mais força tem o PS” –, apresentou a sua candidatura a Belém. “A 27 do mês de julho de 1985 dei, finalmente, o passo decisivo. A Convenção Nacional do PS, realizada em Lisboa, aprovou por unanimidade e aclamação a decisão de me candidatar a Presidente da República. Alea jacta est. Não tinha ilusões: para alguns membros do PS, foi uma maneira amável de se verem livres de mim. Quem apostaria, então e nos meses que se seguiram, na minha eventual vitória?”, perguntou o próprio Mário Soares no ensaio autobiográfico Um Político Assume-se.

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O pior estava para vir. Nas legislativas de outubro de 1985, os cartazes com a cara de Almeida Santos pediam 43% para os socialistas, percentagem que daria a ambicionada maioria absoluta de deputados. E de facto o PS teve um resultado histórico – o pior de sempre: 20,8%. O PSD de Cavaco ficou em primeiro lugar, mas longe da maioria, com 29,9%. A grande surpresa foi o recém-formado partido eanista (Partido Renovador Democrático, PRD) cujos 17,9% de votos lhe valeram um “exército” de 45 deputados e a entrada direta para o terceiro lugar do ranking parlamentar, à frente dos comunistas.

Sondagem dava-lhe 5%

Num golpe de rins, Soares mudou de tom e, num artigo publicado n’O Jornal, aceitou a derrota como uma “cruel lição” que assumiu “integralmente”, “com humildade e realismo”. Mas ainda faltava bater no fundo. Quando Salgado Zenha, considerado até há pouco o eterno número 2 do PS e o mais fiel amigo do líder (era padrinho da filha de Soares, Isabel), apresentou a sua candidatura presidencial, com o apoio formal dos eanistas e informal do PCP – cujo candidato, Ângelo Veloso, viria a desistir a seu favor –, o cenário ficou ainda mais negro para Mário Soares.

A primeira sondagem sobre as presidenciais, publicada na primeira página do Expresso de 12 de outubro de 1985, ainda antes da candidatura de Zenha, era arrasadora: Soares aparecia com 5% das intenções de voto. Semanas depois, com a campanha já na rua, continuava a marcar passo com 7,9% – enquanto os principais adversários exibiam todos dois dígitos.

Foi uma batalha épica – e Soares transfigurou-se, fazendo jus à alcunha de “animal político”. Aproximou-se dos eleitores com a ajuda de um slogan genial: “Soares é fixe!” De norte a sul do país deu as bochechas a beliscar, beijou por engano um anão pensando tratar-se de mais uma criancinha, empurrou a impopularidade para trás das costas. Depois de um debate fratricida com Zenha na televisão e de ser agredido no bastião comunista da Marinha Grande, ganhou (com 25,4%) as “primárias da esquerda”, como ele próprio chamou à primeira volta, a Zenha (20,9%) e a Maria de Lourdes Pintasilgo (7,4%).

A primeira volta tinha sido um passeio para Freitas do Amaral, que ficou à beira da vitória. De pouco lhe serviu. Na segunda volta, Soares foi imbatível

LUSA

A ida às urnas da antiga primeira-ministra revelou-se uma ajuda decisiva. Se Pintasilgo desistisse, muitos dos seus eleitores, à esquerda do PS, teriam dado o voto a Zenha, impedindo a passagem do líder socialista à segunda volta. Valeu a Soares o facto de a ativista católica não estar disposta a perdoar aquilo que considerou uma traição de Eanes, cujo apoio tivera por garantido antes de lançar a sua candidatura – e que, na hora da verdade, lhe tirara o tapete para o oferecer a Zenha. Com a intervenção de Jorge Sampaio (apoiante de Soares) e dos seus amigos ex-MES da candidatura pintasilguista, incluindo César Oliveira e o futuro ministro socialista Alberto Martins, a vingança serviu-se fria.

À direita, a primeira volta tinha sido um passeio para Freitas do Amaral, que ficou à beira da vitória, com 46,3%. De pouco lhe serviu. Na campanha para a segunda volta, Soares enviou os seus emissários a encontros secretos com dirigentes de topo do PCP. Resultado: Cunhal convocou um congresso extraordinário do partido e mobilizou os eleitores comunistas para “engolirem o sapo”, isto é, votarem em Soares. Este soube virar a agulha dos seus discursos contra a direita, criando o imaginário de uma mítica “frente antifascista” – e acabou por ser eleito, com 51, 18% contra 48,82% de Freitas.

Presidente de todos os portugueses

Quando tomou posse, a 9 de março de 1986, Mário Soares tornou-se o primeiro chefe de Estado civil em Portugal em 60 anos: desde que o comandante Mendes Cabeçadas assumira o cargo de forma efémera, na sequência do golpe militar de 28 de maio de 1926. “Unir os portugueses, servir Portugal” foi o lema escolhido por Soares para o mandato, começando logo por vincar a ideia, repetida com insistência, de que a “maioria presidencial” acabava naquele momento, passando a ser o “Presidente de todos os portugueses”. E, como os gestos são importantes, entregou no Largo do Rato o cartão de militante do PS.

A coabitação com o primeiro executivo de Cavaco Silva foi relativamente pacífica: logo a seguir à eleição, Soares prometeu “inteira solidariedade” ao primeiro-ministro. E cumpriu. A “guerra das bandeiras”, motivada pela alteração do estatuto político-administrativo das regiões autónomas (que tinha sido aprovado por unanimidade no Parlamento) foi o primeiro obstáculo a ultrapassar. Sem que ninguém tivesse reparado – ou chamado a atenção para esse “pormenor” – o novo estatuto dava primazia, nos Açores e na Madeira, às bandeiras das regiões autónomas sobre a bandeira nacional. Ainda em 1986, Soares foi aos Açores, encarou Mota Amaral e os membros do Governo regional todos com gravatas pretas em sinal de luto… e resolveu o problema às boas, colocando no dicionário político a expressão “autonomia tranquila”.

Em abril de 1987, caiu-lhe nos braços a primeira crise política a sério. O PRD apresentou uma moção de censura ao Governo minoritário do PSD. Vítor Constâncio, que sucedera a Mário Soares como secretário-geral do PS, votou a favor e derrubou o Governo. Estava convencido de que o Presidente da República o iria nomear primeiro-ministro de um executivo socialista com o apoio do PRD e do PCP. Em vez disso, Soares dissolveu o Parlamento e convocou eleições antecipadas, que deram a primeira maioria absoluta a Cavaco.

Vítor Constâncio, que sabia ter ganho a liderança socialista no congresso de junho de 1986 contra a vontade de Soares (ambos os filhos do Presidente, Isabel e João Soares, tinham manifestado apoio a Jaime Gama, o candidato derrotado por Constâncio), ficou magoado. E mais magoado ficou, apesar de ter sido reeleito secretário-geral no congresso de fevereiro de 1988 com 89% dos votos, ao descobrir a “mão” do núcleo duro soarista numa rebelião que estava por detrás da recusa de figuras gradas socialistas se apresentarem às eleições autárquicas marcadas para finais de 1989.

O futuro vice-presidente do Banco Central Europeu acabou por demitir-se da liderança do PS barafustando contra tudo e contra todos, queixando-se de que “não tinha generais para combater” e acusando o Presidente da República de intromissão na vida interna do PS. Segundo um jornal da época, Mário Soares definiu assim o secretário-geral demissionário: “É o nabo mais inteligente que conheço” (O Independente, 4 novembro de 1988).

Ainda em 1988, a administração de Macau, cuja tutela era pelouro exclusivo do Presidente da República, foi abalada pelo “caso TDM”, um escândalo de corrupção com pressões sobre magistrados à mistura, que acabou por levar à extinção da empresa pública Companhia de Televisão e Radiodifusão de Macau, substituída pela Teledifusão de Macau (TDM). Apesar disso, a visita ao território, no ano seguinte – a primeira de um chefe de Estado – foi um triunfo.

Um drama familiar

Em setembro de 1989, a visita de Estado de Mário Soares à Hungria e à Holanda foi ensombrada por um drama familiar. Pouco antes da partida para Budapeste, o casal presidencial foi informado de que o seu filho João Soares tinha sofrido um grave desastre e estava em perigo de vida.

João Soares tinha-se deslocado à Jamba, bastião da UNITA no sul de Angola durante a longa guerra civil que se seguiu à independência da antiga colónia, com outros deputados portugueses (Nogueira de Brito, do CDS, e Rui Gomes da Silva, do PSD), para assistirem a um congresso do partido de Jonas Savimbi. Ao partirem da Jamba com destino à Namíbia, onde tinham encontro marcado com o líder da SWAPO, Sam Nujoma, o avião despenhou-se logo após a descolagem – e João Soares ficou gravemente ferido.

O restabelecimento de João Soares, que esteve durante longos dias às portas da morte na África do Sul depois de um acidente de avião, influenciou a conversão de Maria Barroso, que daí em diante se tornou uma católica devota.

Transportado de urgência para um hospital de Pretória, foi submetido a sucessivas operações. A situação era tanto mais delicada quanto a África do Sul, então ainda sob o regime do apartheid, estava sujeita a um boicote político, diplomático e económico imposto pela Comunidade Europeia. Apesar disso, houve uma conjugação de esforços que envolveu também o primeiro-ministro Cavaco Silva, que estava de visita a Moçambique, e o próprio Presidente da África do Sul, Frederik de Klerk, que se mantiveram em contacto com Soares.

O Presidente cumpriu as visitas de Estado à Hungria e à Holanda, enquanto Maria Barroso, acompanhada pela nora, Olímpia, a filha, Isabel, e o sobrinho médico, Eduardo Barroso, voou para Pretória, onde se manteve à cabeceira do filho até este ficar livre de perigo. O restabelecimento de João Soares, que esteve durante longos dias às portas da morte, influenciou a conversão de Maria Barroso, que daí em diante se tornou uma católica devota.

Presidências Abertas e magistratura de influência

Entre 1987 e 1989, o Presidente patrocinou um ciclo de conferências intitulado “Balanço do Século”, que trouxe à Fundação Gulbenkian, em Lisboa, alguns dos mais importantes pensadores contemporâneos, com destaque para o escritor peruano (futuro prémio Nobel da Literatura) Mario Vargas Llosa, o filólogo e romancista italiano Umberto Eco, o economista norte-americano John Kenneth Galbraith, o filósofo britânico de origem austríaca Karl Popper, o filósofo e politólogo italiano Norberto Bobbio, o filósofo espanhol José Luis Aranguren, o antropólogo francês Marc Augé, o Nobel da Química belga de origem russa Ilya Prigogine ou o Nobel da Medicina francês François Jacob.

Uma novidade introduzida por Mário Soares foi o conceito de Presidência Aberta. Durante uns dias, o chefe do Estado, acompanhado por uma comitiva que incluía quase todo o seu staff, membros do Governo – o primeiro-ministro chegava a ir a despacho ao local e tinha ali a reunião semanal – e uma legião de jornalistas, saía do Palácio de Belém e instalava-se numa cidade cuja região, graças à atenção generalizada da comunicação social, era “posta no mapa”. O objetivo, segundo o próprio Soares, era “falar com o povo em direto”.

Deus está em todo o lado. Mário Soares já esteve…

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O site da Fundação Mário Soares enumera 46 visitas de Estado, desde S. Tomé e Príncipe, em dezembro de 1986, até Angola, em janeiro de 1996. Pelo meio ficaram dezenas de países e muitas voltas ao mundo.

Algumas imagens ficaram para a História, como os encontros com Sakharov e com Gorbachev em Moscovo; a intervenção num comício ao lado de Vaclav Havel, em Praga, no dia da tomada de posse do vencedor da “revolução de veludo”; o doutoramento honoris causa em Oxford; a trágica visita a Israel e à Faixa de Gaza, onde Yasser Arafat lhe deu a notícia do assassínio de Yitzhak Rabin, com quem tinha estado poucas horas antes.

As mais icónicas: na Índia, de turbante, ao lado de Maria Barroso, ambos em cima de um elefante; e nas Seychelles, montado numa tartaruga gigante ou sentado na mesma cadeira que serviu de trono a Sylvia Kristel, no fime “Emmanuelle”.

Era também a maneira privilegiada de “exercer, de forma discreta, aquilo a que chamei ‘uma magistratura de influência’, conversando em privado com todos os agentes políticos e sociais, ouvindo-os e tentando, na medida do possível, influenciá-los. Foi um êxito e resolveram-se, sem barulho, imensos problemas que pareciam insolúveis”, escreveu em Um Político Assume-se (Temas & Debates/Círculo de Leitores, 2011).

A primeira Presidência Aberta foi logo em setembro de 1986, a Guimarães, onde assinou um protocolo intermunicipal de desenvolvimento cultural, no Mosteiro de Tibães, visitou o Parque Nacional da Peneda-Gerês, a Bienal de Vila Nova de Cerveira e o Museu Amadeo Souza-Cardoso, em Amarante. Em fevereiro de 1987 foi a vez de Bragança, onde apelou ao “direito à solidariedade nacional” e visitou a aldeia comunitária de Rio de Onor. Em fins de outubro e início de novembro de 1987 partilhou a visita entre Beja e Évora, em defesa de um “Alentejo verde” contra a desertificação. Durante a visita à base de Beja da Força Aérea, voou num jato T-38 e ultrapassou a barreira do som. Seguiram-se, até ao fim do primeiro mandato, a Guarda, a descida do Douro, Portalegre, os Açores e Coimbra.

Com a reeleição, em 1991, as Presidências Abertas foram retomadas em Viana do Castelo, em setembro de 1992. Mas, a pouco e pouco, o tom mudou. Do lado de Cavaco, ouviam-se remoques: que a iniciativa presidencial fazia lembrar os reis da Idade Média, que levavam consigo a corte itinerante pelo país para se darem a conhecer ao povo; outros chamavam-lhe a corte na aldeia… Do lado de Soares, as visitas serviam cada vez mais para lançar farpas sobre o Governo.

A última ronda, em abril de 1994, foi temática, sobre “Ambiente e Qualidade de Vida” – mas nessa altura já Soares e Cavaco estavam em guerra, e a Presidência Aberta foi mais uma arma de arremesso, com o primeiro-ministro a queixar-se das “forças de bloqueio” que não o deixavam trabalhar.

Reeleito com votação recorde

A reeleição de Mário Soares, em janeiro 1991, foi “um passeio triunfal pela Avenida da Liberdade”. Vivia-se o auge do cavaquismo, com o primeiro-ministro no ponto mais alto da sua popularidade, em larga medida graças aos generosos fundos da então Comunidade Europeia (em vias de se transformar na atual União Europeia), que inundara o país com muitos milhares de milhões de contos destinados às reformas estruturais da economia nacional decorrentes da integração de Portugal na Europa comunitária. O “saco de dinheiro” serviu para quase tudo – menos para as tais reformas estruturais –, desde a “política do betão” das autoestradas até às indemnizações e subsídios aos agricultores para deixarem de produzir e aos pescadores para abaterem os barcos. Sem esquecer os aumentos do funcionalismo público e a engorda do Estado que, daí a não muitos anos, receberia a designação — inventada pelo próprio Cavaco Silva — de “o Monstro”.

Mas em 1991 vivia-se ainda um tempo de “vacas gordas”, num clima generalizado de otimismo, respaldado por um consenso político de que o Presidente da República cessante fora um dos principais responsáveis. Facilitara, por exemplo, a segunda revisão constitucional, negociada entre Cavaco e Vítor Constâncio, que acabara com o princípio da irreversibilidade das nacionalizações, abrindo caminho às privatizações de bancos e grupos económicos. Por isso, ninguém ficou surpreendido que Soares se recandidatasse nem que o PSD, prestes a concluir a legislatura e lançado para a renovação da maioria absoluta nas legislativas de outubro desse ano, tivesse decidido não apresentar nem apoiar qualquer outro candidato. Na prática, Cavaco apoiou a reeleição do Presidente.

Quando se candidatou à reeleição, Soares conseguiu 70,35% dos votos

LUIS VASCONCELOS / LUSA

Soares contou também, como era natural, com o apoio do PS, liderado por Jorge Sampaio que em 1989 se tinha feito eleger presidente da Câmara de Lisboa, graças à hábil negociação de uma aliança com o PCP. Os comunistas, por seu lado, apresentaram um candidato próprio. Carlos Carvalhas levou a candidatura às urnas e o resultado – 12,9%, o melhor de sempre num candidato presidencial do PCP – tê-lo-á ajudado a cimentar a posição de delfim do líder histórico Álvaro Cunhal, a quem viria a suceder em 1993. O outro candidato de esquerda foi Carlos Marques, da UDP, que teve 2,57%.

Soares arrasou, conseguindo ser reeleito com 70,35% dos votos, um recorde que ainda se mantém e que ajudou a criar uma certa imagem de unanimismo em torno do que alguns chamaram o Presidente-rei – cognome, aliás, rejeitado pelo próprio.

O caso do fax de Macau

A única nota dissonante naquelas eleições ficou a dever-se ao candidato do CDS, Basílio Horta, antigo ministro do segundo Governo chefiado por Mário Soares e atual presidente da Câmara de Sintra eleito pelo PS. Mas não foi pela votação obtida, que se ficou pelos 14,16%. A grande polémica deu-se quando, em pleno debate televisivo entre Soares e Horta, o challenger chamou à discussão o “caso do fax de Macau”.

O semanário O Independente reproduzira na edição de 16 de fevereiro de 1990 um fax enviado por uma empresa alemã de estudos e consultoria, a Weidleplan, ao então governador de Macau, Carlos Melancia, destacado militante socialista e amigo de Mário Soares. O fax pedia a devolução de 50 mil contos doados à empresa portuguesa Emaudio (cujos administradores eram conhecidos militantes socialistas próximos de Soares) pela Weidleplan, preterida no concurso para o projeto de construção do aeroporto de Macau.

Soube-se depois que o fax tinha sido entregue ao jornal por Rui Mateus, um dos fundadores do PS, responsável pelas Relações Internacionais do partido, administrador da Emaudio e considerado o mais fiel dos fiéis soaristas, entretanto caído em desgraça. Mateus viria a escrever o livro Contos Proibidos. Memórias de um PS Desconhecido (Publicações Dom Quixote, 1996) – que, segundo o jornalista Joaquim Vieira, autor de Mário Soares. Uma Vida (Esfera dos Livros, 2013), mereceu ao seu biografado “impropérios irreproduzíveis”. Na autobiografia Um Político Assume-se, o próprio Mário Soares atribuiu o caso a uma “ofensiva que fizeram contra mim, vinda da direita extrema”, em cuja origem esteve “um fundador do Partido Socialista, de poucas letras”.

[Veja um excerto do debate entre Mário Soares e Basílio Horta]

A manchete de O Independente deu brado. A Justiça investigou. Melancia demitiu-se. Quando o caso chegou finalmente à barra da Boa Hora, em Lisboa, em dois processos separados, o resultado foi curioso: os administradores da Emaudio foram condenados, embora não tivessem cumprido pena; o ex-governador Melancia, acusado de corrupção passiva, foi absolvido, com o voto de vencido do juiz presidente do tribunal coletivo, em 1993.

Soares, que sempre afirmou só conhecer do caso o que leu nos jornais, permaneceu imune ao escândalo. Mas Basílio Horta tirou-o do sério ao confrontá-lo com o assunto no frente-a-frente eleitoral, arrancando ao Presidente um desabafo indignado: “Eu não sou um chefe de gangue!”

Republicano, socialista e laico

Quando apresentou a sua candidatura à reeleição, no Hotel Altis, em Lisboa, em 1990, Mário Soares autodefiniu-se, pela primeira vez, com a expressão “Sou republicano, socialista e laico”. Viria a repeti-la com frequência nos anos seguintes, mas aquele momento marcou uma viragem no seu relacionamento com Cavaco Silva.

O que durante os primeiros cinco anos de Mário Soares em Belém tinha sido quase sempre um casamento harmonioso transformou-se, a partir do início do segundo mandato, numa coabitação tempestuosa. Em junho de 1991, quatro meses antes das eleições legislativas, Soares enviou uma mensagem à Assembleia da República insurgindo-se sobre a governamentalização da RTP, patente na suposta manipulação dos telejornais. José Eduardo Moniz, então diretor da televisão do Estado (e única: SIC e TVI só iniciariam as emissões em outubro de 1992 e fevereiro de 1993, respetivamente) contra-atacou e Cavaco manteve-o no lugar.

Daí em diante, Belém passou a ter os portões abertos sempre que algum grupo socioprofissional entrava em conflito com o Governo. No livro-entrevista de Maria João Avillez Soares. O Presidente (Círculo de Leitores, 1997), o biografado explicou ter procurado “defender as minorias contra o risco de asfixia”, assumindo o papel de “força de contenção contra os demónios da arrogância e do autoritarismo (…) uma válvula de segurança do regime”, contra o “triunfalismo” e o “autismo” do Governo laranja escudado na maioria absoluta, a que não faltava “um certo perfume de corrupção”.

Acusado de fazer uma “obstrução sistemática" ao Governo de Cavaco Silva, Mário Soares foi apontado nas reuniões do PSD como “o principal agente da oposição”

Ao mesmo tempo que recebia sindicatos, representantes do patronato ou associações de defesa do ambiente que lhe apresentavam intermináveis queixas contra o executivo, Soares fazia chegar aos ouvidos dos líderes socialistas – primeiro Jorge Sampaio, depois António Guterres – o seu descontentamento pela falta de eficácia do PS enquanto maior partido da oposição.

Multiplicaram-se os choques entre Belém e S. Bento: quando o Governo pôs em vigor o Tratado de Maastricht, assinado em fevereiro de 1992, que transformou a Comunidade na União Europeia e abriu caminho para a entrada em circulação do euro, o Presidente defendeu – isolado, uma vez que o PS, liderado por Guterres, apoiou o PSD – a realização de um referendo. Os vetos políticos e o envio de legislação para o Tribunal Constitucional (TC) com pedido de fiscalização preventiva da constitucionalidade quadruplicaram em relação ao primeiro mandato. Diplomas de grande impacto mediático, como a “lei das propinas”, a “lei dos coronéis”, a “lei dos disponíveis” da função pública ou as alterações à lei da greve foram alvo do veto presidencial ou remetidas ao TC.

Esta “obstrução sistemática”, como lhe chamou o Governo, acabou por fazer com que Cavaco Silva reagisse. Primeiro nas reuniões do PSD, onde Soares foi apontado como “o principal agente da oposição”. Depois em público, no XVI congresso laranja, no Pavilhão Rosa Mota, no Porto, em novembro de 1992, onde se ouviu pela primeira vez a expressão “forças de bloqueio”, disparada contra todos aqueles que “travavam” a “ação reformista” do executivo – com o Presidente à cabeça. Meses depois, durante a campanha para as eleições autárquicas de dezembro de 1993, o desabafo cavaquista já soava a queixume: “Deixem-nos trabalhar!”

Choque psicológico

A Presidência Aberta na Área Metropolitana de Lisboa, em fevereiro de 1993, provocou, nas palavras do próprio Mário Soares, “um choque psicológico” a nível nacional. “Porquê? Porque foi amplamente divulgada, pela primeira vez, a realidade negra e paupérrima das condições de vida de muitos portugueses – e de imigrantes, sobretudo africanos lusófonos – que contrastava com a festejada ‘democracia de sucesso’ que se dizia ser o Portugal membro da CEE.”

Então assessora de imprensa em Belém, Estrela Serrano aproveitaria, anos mais tarde, a experiência na matéria para a sua dissertação de mestrado, depois publicada em livro: As Presidências Abertas de Mário Soares – as estratégias e o aparelho de comunicação do Presidente da República. Referindo-se em particular à Presidência Aberta na Grande Lisboa, revelou que “ao longo dos 14 dias em que decorreu (…), agricultores, estudantes, moradores, sindicalistas, ambientalistas, organizaram manifestações e dirigiram petições ao Presidente, esperando-o nos locais cobertos pelo programa da Presidência Aberta. Soares era informado dessas manifestações, com alguma antecedência, pelos assessores e pela segurança pessoal, o que lhe permitia preparar um determinado discurso para os manifestantes”.

Resultado: “Mediante um programa estrategicamente delineado, Soares deixou que as coisas acontecessem naturalmente, proporcionando a outros (sindicatos, ambientalistas, desempregados, idosos) a iniciativa das críticas ao Governo”.

Para o êxito mediático – e político – da iniciativa contribuiu em muito a presença de repórteres das novas televisões privadas, em concorrência aberta com a RTP: a SIC tinha começado a emitir em outubro de 1992 e a TVI começaria a fazê-lo dias depois, a 20 de fevereiro de 1993 (a Presidência Aberta terminou a 14 de fevereiro). As mesmas televisões exibiram até à exaustão um episódio insólito então ocorrido: o autocarro onde seguia a comitiva parou e as câmaras mostraram o Presidente da República a assomar a uma janela e a ordenar a um motociclista da escolta da GNR: “Ó sr.guarda, desapareça… Não queremos polícias!”

Pouco depois, a 23 de fevereiro, Cavaco cometeu um erro, ao recusar conceder a habitual tolerância de ponto na terça-feira de Carnaval. A popularidade do Governo entrou em perda e precipitou-se ainda mais em abril seguinte, quando os repórteres destacados para a Assembleia da República decidiram boicotar a cobertura das atividades do Parlamento, em protesto contra uma iniciativa de José Pacheco Pereira, então líder da bancada do PSD, que impedira o acesso dos jornalistas ao corredor dos gabinetes dos grupos parlamentares.

Na reunião semanal com o primeiro-ministro, na quinta-feira seguinte, o Presidente da República saiu em defesa dos profissionais da informação. E fez um ultimato: ou Cavaco resolvia o diferendo ou ele não iria a S. Bento para a sessão solene das comemorações do 25 de Abril, daí a dias. Mais: avisou que considerava o caso de tal modo grave que “estava em causa o regular funcionamento das instituições democráticas”. Ao usar aquelas precisas palavras, Soares sabia que Cavaco sabia o que ele queria dizer: invocara a “fórmula mágica” consagrada na Constituição para permitir ao chefe do Estado dissolver o Parlamento. Soares ameaçara demitir o Governo. O facto é que, pouco depois, José Pacheco Pereira desistiu dos seus intentos e houve tréguas entre Belém e S. Bento.

Direito à indignação

Durou pouco. Na mensagem de Ano Novo de 1994, Mário Soares deu nova alfinetada no Governo: “Não podemos tapar os ouvidos, fechar os olhos, tentar ignorar a realidade”. E voltou à carga no discurso do 20.º aniversário do 25 de Abril.

Em junho de 1994, o cavaquismo atingiu o ponto de não-retorno. O aumento em 50 por cento das portagens na Ponte 25 de Abril, imposto pelo Governo com o objetivo de custear o pagamento da nova Ponte Vasco da Gama, enfureceu os automobilistas. O protesto tomou a forma de um enorme engarrafamento, com uns a pagarem a portagem com notas altas para dificultar os trocos, outros com as moedas mais pequenas, para demorar a contagem, outros ainda a passarem, pura e simplesmente, sem pagar. E todos a buzinarem freneticamente. Foi o “buzinão”, com camiões, carros e motas a bloquearem durante longas horas a principal travessia do Tejo, cortando o acesso a Lisboa e com ele a ligação entre o sul e o norte do país.

O Governo mandou a polícia carregar sobre os manifestantes (um rapaz de 18 anos foi baleado e ficou numa cadeira de rodas para o resto da vida), enquanto Mário Soares defendia o “exercício legítimo do direito à indignação”.

Pouco antes, em maio, decorrera o congresso “Portugal, Que Futuro?”, patrocinado pelo Presidente da República e que se tornou ponto de encontro obrigatório dos mais destacados opositores ao Governo. O próprio Guterres não gostou da iniciativa, receando que pudesse esvaziar a dinâmica oposicionista do PS.

Não esvaziou. Cavaco apresentou a demissão e assistiu à derrota do seu sucessor, Fernando Nogueira, às mãos de Guterres, nas legislativas de outubro de 1995. O primeiro-ministro demissionário ainda alimentou o tabu durante uns meses, mas acabou por lançar-se na corrida a Belém. Perdeu para Jorge Sampaio, em janeiro de 1996.

Mário Soares deu posse ao Governo de Guterres e, antes de entregar o testemunho a Sampaio, ainda teve tempo para um último gesto polémico. Em fevereiro de 1996 enviou uma mensagem à Assembleia da República onde recomendava que fossem amnistiados os condenados pelos atentados terroristas das FP 25.

Quando concluiu o segundo mandato como chefe do Estado, a 9 de março de 1996, o fundador do PS deixou um Governo, uma (quase) maioria e um Presidente socialistas.

Fonte para a infografia: “Mário Soares — uma Fotobiografia”, de Maria Fernanda Rollo e M. M. Brandão de Brito, Bertrand Editora, 1995

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