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Patrícia Santos com Pedro Santos ao colo. O bebé de um mês não pôde ser registado com o nome do pai
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Patrícia Santos com Pedro Santos ao colo. O bebé de um mês não pôde ser registado com o nome do pai

Patrícia Santos com Pedro Santos ao colo. O bebé de um mês não pôde ser registado com o nome do pai

A vítima de Pedrógão que não pode dar o nome ao filho

Carlos, um dos feridos mais graves de Pedrógão, estava internado em Espanha quando o filho nasceu. Ainda não o viu, porque não havia dinheiro para a viagem. E o bebé não pode ter o nome do pai.

Patrícia Santos estava a ver televisão quando o fogo começou. Era sábado e Patrícia, 29 anos, estava em casa do irmão e da cunhada, lugar onde tinha vivido nos últimos meses. Em breve, contava mudar-se para a sua nova casa, também ali em Pedrógão Grande, com o filho de um ano e meio e o companheiro Carlos, de 43. Faltava apenas a eletricidade e poderiam depois instalar-se de vez para receber o novo membro da família: o pequeno Pedro, cujo parto estava previsto para dali a um mês.

Na tarde do fogo, Carlos estava fora — tinha saído com o irmão de Patrícia e um empregado deste, oferecendo-se para ajudar no negócio, acartando lenha. Era o seu contributo para compensar a família por lhes ter dado guarida nos últimos meses. Patrícia, grávida de oito meses, esperava e preocupava-se com os três homens, que andavam algures pelos montes ali próximos: “A última vez que tentei entrar em contacto com ele, estava a ver da janela as chamas perto do IC8. Foi aí que percebi que algo estava errado”, conta ao Observador, dois meses depois do incêndio que destruiu grande parte dos concelhos de Pedrógão Grande, Castanheira de Pêra e Figueiró dos Vinhos.

Eram nove da noite quando Patrícia soube da notícia pela cunhada: Carlos estava gravemente ferido, depois de ter sido apanhado pelas chamas numa estrada secundária perto do IC8, que ligava as aldeias de Mosteiro e Troviscais. Quando a notícia chegou, Carlos já estava numa ambulância em Figueiró dos Vinhos e iria ser transferido para o Hospital de Coimbra. Nesse momento, nem mesmo a barriga de oito meses de Patrícia a impedia de arrancar para Coimbra — mas as estradas foram cortadas.

“Só pude ir identificá-lo na segunda-feira. Ao início, por detrás do vidro, não consegui e tive de entrar no quarto. Foi um choque muito grande”, lembra. Perante ela estava o companheiro, mas o homem que tinha à sua frente era quase irreconhecível: tinha queimaduras em 85% do corpo, algumas delas (como nas mãos e nos braços) de terceiro grau. Estava entubado e inconsciente. A gravidade do caso era tal que, no dia seguinte, seria transferido para o hospital La Fé, em Valência (Espanha), para ser submetido a um transplante de pele. É lá que se mantém ainda hoje, a 800 quilómetros em linha reta de Pedrógão. E a última vez que Patrícia falou com Carlos foi naquele sábado de 17 de junho, antes de ele sair para o trabalho.

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Carlos e Patrícia têm agora um filho recém-nascido

Desde então, a vida que planeavam ficou em suspenso. “Está a fazer um ano que nos conhecemos, foi numa feira medieval do Montijo. Os dois fazíamos feiras: eu vendia bijuteria, brinquedos de madeira e outras coisas, ele vendia queijos e enchidos. Depois fomo-nos encontrando noutras feiras, ele começou a vir cá… E pronto, quando fiquei grávida, ele mudou a vida toda dele para aqui.” Carlos já tinha uma filha de 18 anos e Patrícia dois rapazes, um de 7 e outro de um ano e meio, mas só o mais pequeno vive com ela.

No dia 27 de julho, mais de um mês depois do incêndio, Patrícia entrou em trabalho de parto. O pai do bebé estava internado em Espanha, o irmão a recuperar na Unidade de Cuidados Continuados de Pedrógão e a cunhada a trabalhar — Patrícia contou apenas com a companhia de uma amiga no hospital, que filmou o parto para mais tarde mostrar ao pai. A sogra juntou-se assim que conseguiu chegar a Coimbra vinda de Lisboa.

Mas, na hora de registar Pedro, Patrícia deparou-se com a informação de que o bebé não podia ter o nome do pai. Ainda na cama da maternidade, com o bebé ao lado e Carlos a quilómetros de distância a receber o primeiro enxerto de pele, foi informada de que, como não era casada e o pai da criança não estava presente, Pedro só poderia ter os apelidos da mãe.

"Disseram-me que podia pôr-lhe outro apelido meu e depois alterar, mas para quê? Eu não quero que ele tenha dois apelidos meus, quero que ele tenha o apelido do pai dele”.
Patrícia Santos, companheira de civil internado em Espanha

“Ele neste momento não tem o nome do pai, porque não somos casados”, diz enquanto embala o filho. Em breve, Patrícia terá de ir a tribunal para responder perante o processo de averiguação oficiosa da paternidade, um procedimento comum do Ministério Público. “Entretanto fui fazer-lhe o Cartão do Cidadão e está lá só como Pedro Santos… Disseram-me que podia pôr-lhe outro apelido meu e depois alterar, mas para quê? Eu não quero que ele tenha dois apelidos meus, quero que ele tenha o apelido do pai dele”.

A situação torna-se ainda mais complicada se o estado da saúde de Carlos se agravar: se por alguma razão vier a falecer e o processo de averiguação de paternidade não estiver concluído, a única maneira de Pedro ser reconhecido oficialmente como seu filho é através de análises ao ADN. Patrícia nem quer pensar nessa hipótese, mas não pode evitá-lo. As fundas olheiras que tem cavadas por baixo dos olhos denunciam as noites difíceis que esta mãe, que toma conta de duas crianças pequenas, tem enfrentado. “Se lhe disser que ainda não dormi uma noite completa desde o incêndio, acredita?”.

A caminho de Espanha, depois de ter pedido ajuda

Desde o nascimento de Pedro que Patrícia está a ser acompanhada por uma assistente social, mas nem por isso viu todos os seus problemas resolvidos. Desempregada e com duas crianças, deu voltas à cabeça para perceber como poderia pagar uma viagem a Valência para ver o companheiro. A amiga que a acompanhou no parto domina bem o espanhol e, por isso, tem sido ela a falar com os médicos ao telefone. As palavras que vêm do outro lado da linha são duras de ouvir: Carlos ainda não está fora de perigo e, mesmo que corra tudo bem, o mais provável é que nunca mais possa voltar a trabalhar.

Desesperada, Patrícia passou noites em claro a pensar numa forma de ir ao Hospital La Fé. Para além do dinheiro, havia todos os problemas logísticos de viajar com um recém-nascido, como o facto de precisar de companhia para poder conduzir e tratar do bebé. Acabou por pedir ajuda à Associação de Vítimas do Incêndio de Pedrógão Grande e, alguns dias depois, recebeu uma chamada com boas notícias. O Hospital de Coimbra não só se oferecia para lhe pagar uma viagem de avião a Valência, como o médico que a contactou sugeria também que tivesse acompanhamento psicológico antes e durante a visita, dada a gravidade da situação. Patrícia aceitou, sem reservas — naquele momento, o seu único objetivo era ver Carlos.

Patrícia Santos não vê o companheiro, internado em Espanha, há dois meses (HENRIQUE CASINHAS / OBSERVADOR)

HENRIQUE CASINHAS / OBSERVADOR

Embarcará esta segunda-feira com Pedro e o psicólogo arranjado pelo hospital, cheia de dúvidas e de incertezas. Disseram-lhe que Carlos está entubado, envolto em ligaduras e que não se sabe como reagirá à sua visita. Os enfermeiros e auxiliares têm-lhe falado sobre o filho que nasceu, na esperança de o animar. “Ao início ele não tinha reação. Mas ontem, pela primeira vez, sorriu”, conta Patrícia, que enviou uma série de fotografias do bebé para o hospital. Agora, se tudo correr bem, espera ser ela própria a pegar no telemóvel e a mostrar a Carlos o pequeno Pedro, em fotos onde dorme tranquilamente. Para além da ansiedade, Patrícia não consegue evitar levar também consigo um bocadinho de esperança: “A melhor notícia que me podiam dar era dizer-me que ele está fora de perigo”.

Seis feridos ainda internados

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Centro Hospitalar Universitário de Coimbra:

  • 2 doentes na Unidade de Queimados do Serviço de Cirurgia Plástica e Reconstrutiva e Queimados (um doente do sexo masculino, 50 anos; uma doente do sexo feminino, 64 anos)
  • 1 doente do sexo feminino, 68 anos, internada no Serviço de Ortopedia C

Hosital de Santa Maria:

  • 1 doente na Unidade de Queimados, de 47 anos, bombeiro

Hospital de S. João:

  • 1 doente na Unidade de Queimados, de 39 anos, bombeiro

Hospital de La Fé, Valência – Espanha:

  • 1 doente do sexo masculino, 43 anos, queimado

Fonte: ARS Centro

A Administração Regional de Saúde do Centro, organismo que tem seguido a evolução dos feridos do incêndio de Pedrógão Grande e que se mantém em contacto com as equipas médicas que os acompanham, confirma que a situação do civil internado em Espanha é “estável” e que ele “continua a evoluir bem, apesar de a progressão ser expectavelmente lenta”. Segunda-feira à noite, Patrícia regressará já sabendo o que significam em concreto essas palavras.

Seis feridos graves ainda internados

Para além de Carlos, a ARS confirma ainda que se mantêm internados outros três civis (não bombeiros) feridos no incêndio, todos eles no Centro Hospitalar Universitário de Coimbra: uma senhora de 68 anos internada no serviço de Ortopedia com fraturas, um homem de 50 anos na Unidade de Queimados, “a evoluir favoravelmente”, e uma doente de 64 anos que continua “ventilada e com prognóstico reservado”, também ela na Unidade de Queimados. O Observador sabe que serão todos residentes no concelho de Pedrógão Grande.

Há ainda outros dois feridos graves do incêndio de junho ainda internados: são eles o bombeiro Rui Rosinha, de 39 anos, e o bombeiro Fernando Tomé, de 47 anos. Ambos residentes no concelho de Castanheira de Pêra, têm recebido as visitas quase diárias das respetivas mulheres, Marina Rodrigues e Cecília Tomé, nos hospitais da Prelada (Porto) e Santa Maria (Lisboa). Até há duas semanas, Cecília fazia a viagem diária para Lisboa a fim de ver não só o marido, mas também Fernando Tomé, o seu filho mais novo. O jovem de 22 anos teve finalmente alta no dia sete deste mês, mas continua a regressar ao hospital para acompanhar o pai, que ainda tem problemas pulmonares sérios e está a recuperar de duas cirurgias. Fernando Tomé (pai) está, apesar de tudo, numa situação mais estável do que Rui Rosinha, que continua ventilado e com prognóstico reservado.

Cecília Tomé teve até ao início do mês o marido e o filho mais velho internados (HENRIQUE CASINHAS / OBSERVADOR)

HENRIQUE CASINHAS / OBSERVADOR

“O regresso do meu Tomé foi uma alegria no coração”, confessa Cecília, sentada na sala da direção do quartel dos Bombeiros de Castanheira de Pêra, corporação a que pertencem o seu marido e filhos — o mais novo, Rodrigo, tem 18 anos e frequenta atualmente a escola de bombeiros. “Ele veio logo ao quartel, teve uma receção que não estava à espera. Tinha uma faixa a dizer ‘Bem-vindo, Tomé’ e estavam cá os colegas, o comando, toda a gente.” Em casa, pode finalmente comer a sopa caseira que tantas vezes tinha pedido à mãe, quando provava a canja insossa do hospital.

O jovem precisa ainda de fisioterapia e de alguns cuidados, mas o pior já passou. Cecília não esquece o horror daquela noite de sábado, 17 de junho: os gritos e choro nas ruas, o marido deitado numa maca em frente a um Centro de Saúde fechado, o pânico de não saber ao certo o que aconteceu. A retirada dos cinco bombeiros feridos num acidente na estrada 236-1 — Fernando Tomé pai e Fernando Tomé filho, Rui Rosinha, Filipa Rodrigues e Gonçalo Conceição, que viria a falecer dias depois — está longe de ter sido tranquila. O caso de Rui Rosinha, que andou a ser transportado durante horas de local para local, motivou inclusivamente um pedido de esclarecimento ao Ministério da Saúde por parte do PSD. A tutela culpa o fogo que levou ao corte de estradas, mas garante que os “cuidados iniciais exigidos para o tratamento de um doente queimado foram cumpridos”.

Famílias de bombeiros interrogam-se

A mulher de Rui Rosinha, Marina Rodrigues, fala em “inconsistências” nas declarações do ministério, mas, como explicou ao jornal Expresso a 10 de agosto, preocupa-se agora sobretudo com o futuro: “Preciso ter a certeza de que [ele] terá acesso à fisioterapia, aos transportes, medicamentos, consultas e tudo o que for necessário. Preciso de saber quem assegura, preto no branco, os custos de saúde vitalícios dele”, disse. Também Cecília se angustia a pensar no que aí vem. “O que me preocupa agora é quando eles saírem. Ainda não há previsões, mas sabemos que não vai ser igual ao que era. Até à data não nos tem faltado apoio, só não queremos que caia no esquecimento”, diz.

“O que me preocupa agora é quando eles saírem. Ainda não há previsões, mas sabemos que não vai ser igual ao que era. Até à data não nos tem faltado apoio, só não queremos que caia no esquecimento."
Cecília Tomé, mulher e mãe de dois dos bombeiros feridos

Olga Silva crê que isso já aconteceu: “Acho que fomos esquecidos”, declara ao Observador a mãe de Filipa Rodrigues, que também ia naquele camião de bombeiros. “Quero saber qual vai ser o futuro dela, se vão ajudá-la a ter as mínimas condições”, pergunta, sentada num banco em frente à Câmara Municipal de Castanheira de Pêra. “Ela trabalha como administrativa numa serração, mas agora não pode estar exposta ao pó. Como vai ser?” O salário que Olga recebe como cozinheira num bar da Praia das Rocas é baixo; o do marido, jardineiro na Câmara Municipal de Castanheira de Pêra, idem. “Também tenho esta criança para sustentar e contas para pagar”, diz, apontando para a filha mais nova, Francisca, de 8 anos.

Olga e a filha mais nova, Francisca (HENRIQUE CASINHAS / OBSERVADOR)

HENRIQUE CASINHAS / OBSERVADOR

Os médicos já lhe indicaram os cuidados que a filha mais velha, de 24 anos, vai necessitar: roupas de algodão, cremes específicos, proibição de exposição ao sol. Para além disso, vai ter de continuar a fisioterapia para a perna esquerda, já que os tendões encolheram um pouco. “O que ela já perdeu e o que ela viu naquele dia… As marcas que ficaram são muitas”, conta Olga. “Quando ela soube da morte do Gonçalo foi-se mais abaixo e começou a ter paragens respiratórias.” Desde então, Filipa não quer falar muito sobre o que aconteceu naquela noite de sábado, tal como Fernando Tomé filho, que preferiu não dar nenhuma entrevista ao Observador. As feridas do corpo vão sarando, é certo, mas as memórias do que aconteceu ainda estão em carne viva.

A conversa com Olga é interrompida por um telefonema da própria Filipa, dando conta de que terá alta nos próximos dias e provocando lágrimas de alegria e risos de alívio da parte da mãe e da irmã. “Tenho tudo preparado para a ir buscar”, garante Olga. “No primeiro dia que a fui ver a Coimbra levei uma mochila com roupa que ainda está por desfazer. Pensava que a podia trazer para casa, só quando cheguei ao hospital é que percebi que não. Caiu-me o mundo todo em cima.”

A recém-criada Associação das Vítimas do Incêndio de Pedrógão Grande garante não haver para já qualquer tipo de apoio oficial montado para os feridos graves e seus familiares. “Apenas nos foi garantido, em reunião conjunta com o primeiro-ministro e o Presidente da República na passada semana, que aos feridos seriam concedidas todas as ajudas regulares e extraordinárias, capazes de manterem uma vida digna”, esclarece Nádia Piazza, presidente da Associação que será formalmente constituída no próximo dia 8 de setembro. Ela, como tantos outros, é familiar de uma vítima — o seu filho de apenas cinco anos morreu na tragédia.

Os feridos bombeiros, contudo, têm contado com algum apoio mais organizado, segundo garante o comandante da corporação de Castanheira de Pêra, José Domingues. “As companhias de seguro dos bombeiros estão a acompanhar e, futuramente, pode entrar o apoio do Fundo Social da Liga”, diz, referindo-se ao Fundo de Proteção Social do Bombeiro, gerido pela Liga dos Bombeiros Portugueses e financiado pelo ministério da Administração Interna, que prevê benefícios e subsídios para os bombeiros acidentados em serviço. Mais do que isso, o comandante está confiante nas promessas que lhe foram feitas por parte do governo central: “A nível institucional isto não vai ser esquecido. O volume da tragédia impõe isso.”

José Domingues é bombeiro voluntário há 43 anos e comandante há 9 (HENRIQUE CASINHAS / OBSERVADOR)

HENRIQUE CASINHAS / OBSERVADOR

Quanto a Cecília, continuará a ir ao Santa Maria todos os dias. A recuperação agora é lenta, passo a passo, marcada por objetivos como o de trocar umas primeiras palavras com o marido. “O que é que ele me dirá?”, interroga-se. “Porque eu digo-lhe tudo. Eu digo barbaridades, choro e depois ele chora também, porque sabe a falta que faz lá em casa”, confessa, sorrindo timidamente. É lá por casa que se vai distraindo com o filho mais novo, fazendo as habituais recomendações de mãe: “Eu digo-lhe: ’Rodrigo, tens é de insistir na escola’. Mas ele diz que quer ser bombeiro como o pai e o irmão.”

Apoio psicológico é necessidade mais urgente

Ao longo destes últimos dois meses, enquanto os feridos graves iam sendo acompanhados nos hospitais, os mais ligeiros iam regressando a casa. Foi o caso de Álvaro Quevedo, de 80 anos, que teve alta do Hospital de Coimbra ao fim de três semanas. “Já lá fui três vezes à consulta depois disso, porque a minha mão está assim”, diz, tirando a mão direita da trouxa branca às riscas que a envolve e mostrando a pele rosada e sensível e as unhas com sangue ainda pisado por baixo. Desde então, Álvaro tem sido acompanhado, não só pelo hospital, mas também pela enfermeira do Centro de Saúde de Pedrógão, à semelhança do que acontece com os outros feridos ligeiros.

Apesar de tudo, e tendo em conta o que aconteceu naquela noite de 17 de junho, a situação de saúde de Álvaro podia ser bem pior: “Isto aconteceu a fugir do fogo. Tenho trombose nas pernas, não me aguentei e… fui abaixo. Depois fui a arrastar-me pela estrada, o fogo a vir e eu a gritar ‘ajudem-me!, ajudem-me!’. Felizmente chegou um senhor de carro e levou-me. Já tinha fogo na camisa, os documentos na minha carteira já tinham derretido.”

Álvaro perdeu a sua casa, onde vivia há 54 anos, desde quando se casou. Foi a única habitação da aldeia de Barraca da Boavista a arder por completo. Consigo viviam a sua mulher, Alzira, com quem o Observador falou nos dias a seguir ao incêndio, e o sobrinho Jorge, portador de deficiência, de quem o casal toma conta há anos. “À minha casa só consegui voltar passados oito dias”, conta Alzira, sentada à mesa da cozinha desta nova casa, em Pobrais, onde vivem agora por empréstimo de uns primos. “O meu Jorge chegou lá e debulhou-se a chorar agarrado ao carro. Não acreditava. Antes ainda me dizia de vez em quando ‘aquelas calças que eu lá tenho, tenho de ir lá buscá-las’. Só quando ele lá chegou é que se convenceu que tinha ardido tudo.”

Antes, durante e depois do fogo. Como a vida de seis pessoas mudou numa noite

Homem de poucas palavras, Álvaro aproveita esse momento para fazer uma confissão brusca: “Fui lá na quinta-feira ver aquela miséria, para ver o suor da minha vida todo queimado”, atira, sem mais nada a acrescentar. Alzira suspira e fala pelo marido, enumerando o rol de queixas, sobretudo em relação à reconstrução da casa. Garantem-lhes que o seu processo é prioritário, mas Alzira não se acalma com a lentidão — tem a urgência de voltar a mexer em armários que são seus, de saber onde estão guardadas coisas pequenas como as agulhas e o dedal, de cuidar das árvores de fruto no seu pomar.

Álvaro, Alzira e Jorge têm recebido o apoio não só de família, mas também de instituições sociais como a Cáritas e dos bombeiros, como todos os que perderam a sua habitação. Mas, ao contrário das paredes que mais cedo ou mais tarde se voltarão a erguer, o ânimo deste casal não dá sinais de melhorar. Alzira e Álvaro já mal saem de casa, nem mesmo para ir ver os primos que vivem ali ao lado. “No outro dia convidaram-me para ir aos fados em Vila Facaia. Mas que alegria é que eu tenho para isso? Às vezes o meu homem liga o rádio e parece que já não aguento, digo logo para ele desligar”, declara Alzira, fechando os olhos com força e levando a mão ao peito, como se sentisse um aperto. “Mas agora estamos cá, há alguns que não estão… Temos de levar esta cruz ao Calvário.”

Álvaro, Jorge e Alzira, na casa emprestada pelos primos (HENRIQUE CASINHAS / OBSERVADOR)

HENRIQUE CASINHAS / OBSERVADOR

Raúl Garcia, médico de família do Centro de Saúde de Pedrógão Grande há mais de 30 anos, diz que neste momento a necessidade mais premente no apoio aos feridos é o apoio psicológico: “Estamos preocupados. Esta situação precisa de continuidade durante pelo menos dois anos. A presença de psicólogos está prevista até ao final de setembro, mas para a maioria das pessoas isso não chega”, diz o clínico, que tem sabido de vários casos de utentes que, depois de inicialmente terem rejeitado o apoio psicológico por ele sugerido, abordam agora o Centro de Saúde para pedir ajuda de um profissional de saúde mental. Até muitos dos que não foram fisicamente afetados pelo fogo sentem agora a necessidade de procurar ajuda — há quem tenha perdido tudo, quem tenha escapado à morte por um triz e há até quem tenha visto os cadáveres de amigos e vizinhos. E, claro, há aqueles que perderam os que lhes eram mais próximos, o que já levou a Associação de Vítimas de Pedrógão a sublinhar a necessidade de ter no terreno equipas especializadas em luto.

A falta de psicólogos durante o verão, devido às férias, levou ao estabelecimento de um protocolo com a União de Misericórdias, que terminará no próximo mês. Raúl Garcia, que faz parte de uma comissão que inclui as equipas de saúde dos três concelhos afetados e que é coordenada pelo Agrupamento de Centros de Saúde Pinhal Interior Norte (ACeS PIN), tem aproveitado as reuniões da comissão para instar o ministério da Saúde a reforçar as equipas de psicólogos no terreno, seja através de novo acordo com IPSS, seja contratando mais pessoal.

“Estamos preocupados. Esta situação precisa de continuidade durante pelo menos dois anos. A presença de psicólogos está prevista até ao final de setembro, mas para a maioria das pessoas isso não chega”
Raúl Garcia, médico de família em Pedrógão Grande

Questionada pelo Observador sobre se está previsto algum reforço para lá de setembro, a ARS Centro respondeu que para já está “garantida a resposta através dos quatro psicólogos do PIN e dois da equipa de Saúde Mental Comunitária” e avançou que a situação “será revista até final de setembro”, podendo “eventualmente ser continuada a referida colaboração” com a União das Misericórdias.

O presidente da câmara de Pedrógão Grande, Valdemar Alves, crê que esse reforço irá mesmo acontecer, devido à necessidade clara que se sente na região. “A tragédia ainda não acabou, as pessoas estão muito em baixo”, diz o autarca ao Observador. “A parte que mais me preocupa é mesmo o aspeto psicológico.”

Autoridades públicas e instituições privadas já colocaram em marcha vários apoios aos habitantes afetados pelo incêndio, como o fundo REVITA (que gere os vários donativos enviados às populações de Pedrógão Grande, Figueiró dos Vinhos e Castanheira de Pêra), a atribuição de fundos por parte do ministério da Agricultura ou a reconstrução de parte das casas destruídas. Valdemar Alves reforça que “todas as necessidades estão cobertas” com os técnicos da câmara a colaborarem com os órgãos nacionais que têm dado o apoio mais imediato às famílias das vítimas, nomeadamente através da Segurança Social. E deixa uma mensagem a feridos e familiares: “Não tenham receio. Estou orgulhoso do governo, que está inteiramente do nosso lado. E se precisarem de alguma coisa, venham bater à porta da Câmara.”

Contudo, não há ainda qualquer programa ou apoio específico criado de propósito para auxiliar familiares de vítimas do incêndio. No próximo mês, o Parlamento irá discutir um projeto de lei conjunto de PSD, PCP e CDS que prevê, não só um regime de gratuitidade no acompanhamento no Serviço Nacional de Saúde para as vítimas, mas também a possibilidade de as suas famílias requererem indemnizações — o documento foi aprovado na generalidade, mas terá ainda de ser analisado na comissão de Agricultura.

Valdemar Alves (à direita) assegura que o governo está a acompanhar a situação na região afetada pelo incêndio (MIGUEL A. LOPES / LUSA)

Miguel A. Lopes/LUSA

A Associação Portuguesa de Seguradores anunciou também a criação de um fundo solidário de 2,5 milhões de euros para as vítimas. Já estão definidos os critérios para atribuição destas compensações, que abrangem todas as famílias de vítimas mortais, bem como os feridos graves (definidos como todos os que tenham “uma incapacidade permanente geral igual ou superior a 65 pontos”). Contactada pelo Observador, a empresa responsável pela comunicação da APS nesta matéria garantiu que “o processo de identificação e contacto dos beneficiários está em curso”.

“Os carros compram-se, as casas reconstroem-se. As vidas ninguém as traz de volta”

Alguns familiares dos feridos ouvidos pelo Observador lamentam a falta de apoio mais estruturado à sua situação, mas por vezes o que sentem mais falta é de um contacto direto. Patrícia Santos, por exemplo, diz que gostava de ter recebido um telefonema do autarca do concelho que escolheu para morar, Pedrógão Grande. Valdemar Alves defende-se dizendo que “só há um presidente de câmara e que este não pode estar em todo o lado” e que entende este tipo de comentários como “um desabafo”. “Mas se a Patrícia quer falar com o presidente, vou ligar-lhe, com certeza”, promete, sublinhando estar atento “à situação complicada desta família”.

Comum a quase todos os familiares das vítimas é o sentimento de que a sua situação tem sido pouco discutida. “Tem-se falado muito das perdas materiais e da urgência na resposta a tais prejuízos, quer por parte dos privados quer por parte das entidades públicas”, diz Nádia Piazza, reconhecendo que essa é uma questão importante, sobretudo no que diz respeito à agricultura de subsistência. “Contudo, nada se compara à perda irreparável daquelas 64 pessoas que morreram de forma completamente evitável e de dezenas de feridos.”

Sentada no jardim principal de Pedrógão Grande, Patrícia Santos concorda com essa ideia. “Eu preferia que me tivesse ardido a casa”, diz secamente a companheira do ferido civil deslocado em Espanha, enquanto embala nos braços o recém-nascido de três semanas. “Os carros compram-se, as casas reconstroem-se. As vidas ninguém as traz de volta”.

“Os carros compram-se, as casas reconstroem-se. As vidas ninguém as traz de volta”
Patrícia Santos, companheira de civil internado em Espanha

Patrícia aguarda com ansiedade o dia em que vai poder seguir viagem até Valência, buscando forças na família, amigos e, sobretudo, nos seus filhos. Repete a expressão que é dita várias vezes por todos os familiares de feridos: “Não há nada a fazer senão esperar”. Todos os passos da recuperação de Carlos — a sobrevivência no imediato, o recobro das cirurgias, o poder voltar a falar, a possível transferência para Portugal, o ainda mais distante regresso a casa — não dependem de Patrícia, mas ela deseja-os com todas as forças. Tanto como quanto deseja que chegue o dia em que possa finalmente dar ao seu filho Pedro um último nome: Guerreiro, como o pai.

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