Uma ideia “ousada” que “trouxe o Japão de volta”. Foi assim que, em 2014, no frio da estância suíça de Davos que anualmente acolhe o encontro do Fórum Económico Mundial, o fundador do clube dos poderosos, o alemão Klaus Schwab, apresentou o Abenomics a uma plateia composta por 1500 CEO, economistas e até o vocalista do U2, Bono Vox. O conjunto de políticas económicas que carregam o nome do seu arquiteto, Shinzo Abe, estava então em vigor há dois anos.
“Não sei quem lhe chamou Abenomics, e hesito em usar o meu nome, mas vou chamar-lhe isso de qualquer forma”, declarou o então primeiro-ministro na mesma ocasião, em Davos, onde deu uma aula sobre a política que propunha retirar a economia japonesa do marasmo em que estava mergulhada há duas décadas, agravado pela tragédia de Fukushima, em 2011. Shinzo Abe morreu esta sexta-feira, 8 de julho, assassinado a tiro enquanto discursava num comício em Nara. Deixa como legado um plano de recuperação económica que esteve sempre a um passo de ser uma promessa cumprida.
Ficou conhecido como o plano das “três flechas”. Era assim que o homem que conduziu os destinos do Japão entre 2006 e 2007 e depois, novamente, entre 2012 e 2020, o apresentava ao mundo. A primeira “flecha” consistia numa política monetária “ousada” e expansionista. A segunda impunha uma política fiscal flexível e a terceira tinha como base a introdução de reformas estruturais com o objetivo de aumentar o investimento privado. As metas de Shinzo Abe eram claras: impulsionar a procura doméstica e o crescimento do PIB.
A primeira “flecha” a ser disparada foi a da política orçamental, logo no arranque do segundo mandato de Shinzo Abe, em janeiro de 2013. O primeiro-ministro japonês anunciou um pacote de estímulos à economia de 10,3 biliões de ienes, que à época equivaliam a cerca de 170 mil milhões de euros, sob a forma de investimento público em, por exemplo, infraestruturas. Numa economia à beira da recessão técnica, o objetivo era impulsionar o PIB em 2% e criar cerca de 600 mil postos de trabalho.
A segunda parte do plano foi colocada em marcha em abril de 2013. Foi quando o Banco do Japão anunciou um programa de flexibilização quantitativa, ou quantitative easing, através do qual foi intensificada a compra de títulos de dívida pública, para 60 a 70 biliões de ienes por ano, cerca de 500 mil milhões de euros a valores da época. Em abril de 2014, o programa foi expandido para 80 biliões de ienes por ano. A política monetária também incluiu taxas de juro negativas no curto prazo, para que consumidores e empresas tivessem acesso a dinheiro barato.
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A terceira flecha foi de implementação mais morosa. Em junho de 2014, Shinzo Abe anunciou um pacote de reformas estruturais que previa medidas como o corte do equivalente ao IRC para as empresas, de 35% para um intervalo entre 20% e 30%, menos restrições à contratação de trabalhadores estrangeiros para enfrentar a escassez de mão de obra, medidas para aumentar o número de mulheres no mercado de trabalho, a liberalização do setor da saúde e apoios ao empreendedorismo.
“Os gurus costumavam dizer que o Japão estava a anoitecer, ou era a terra do sol poente. Diziam que para um país maduro como o Japão, o crescimento seria impossível. Hoje, já mal se ouvem essas vozes. A nossa taxa de crescimento mudou dramaticamente, passando de negativo para positivo”, referiu Shinzo Abe em Davos em 2014. “Daqui por seis anos, Tóquio vai receber os Jogos Olímpicos e Paralímpicos. As pessoas estão otimistas e animadas. Não é o anoitecer, mas um novo amanhecer que está a chegar ao Japão”, antecipou. Mas o resultado do plano não foi assim tão luminoso. Ao invés do amanhecer, ficou-se pelo lusco-fusco.
Anos depois do início da chuva de milhões na economia, o crescimento continuava anémico. Segundo dados do Banco Mundial, em 2013 o PIB cresceu 2%, e apenas 0,3% no ano seguinte. A taxa de crescimento manteve-se sempre abaixo de 2% até 2019, ano em que a economia voltou a contrair, 0,2%. Em 2020, já em consequência da pandemia, o tombo foi de 4,5%. Excluindo 2020, a taxa média de crescimento nos anos da Abenomics foi de 0,9% ao ano.
Também o objetivo de alcançar uma inflação na casa dos 2% ficou aquém da meta durante a maior parte da década, denotando a pouca eficácia do quantitative easing.
Para os analistas ouvidos pelo Observador não restam dúvidas de que o Abenomics não foi um sucesso estrondoso. Foi, desde o início, um plano ‘assim assim’. “O modelo económico desenvolvido pelo anterior primeiro-ministro japonês acabou por ser controverso, pois houve quem não acreditasse” nas medidas implementadas, nota Henrique Tomé, analista da XTB. “A verdade é que, desde 2012, a economia japonesa tem vindo a abrandar o ritmo de crescimento e as políticas monetárias adotadas pelo modelo Abenomics acabaram por demonstrar algumas fragilidades. No entanto, é importante notar que o Japão recorre a políticas monetárias diferentes daquelas que são utilizadas pela maior parte dos países ocidentais”, destaca o analista.
Paulo Rosa, economista sénior do Banco Carregosa, não tem uma visão muito distinta. Para o especialista, o sucesso da Abenomics, que se propôs a abanar a terceira maior economia do mundo, foi “misto”. “Durante o seu mandato, o crescimento económico recuperou da estagnação das décadas de 1990 e 2000, as exportações aumentaram e o desemprego caiu para o nível mais baixo das últimas décadas. Entre 2015 e 2017, o Japão registou oito trimestres consecutivos de crescimento positivo – a sequência mais longa em quase 30 anos, mas ficou muito aquém da significativa expansão económica no pós-guerra de 1945″, lembra Paulo Rosa.
Já a meta “ambiciosa” de Shinzo Abe de aumentar o PIB nominal para 600 biliões de ienes até 2020 “nunca se concretizou e permanece não cumprida até hoje”. No final do ano passado, nota o analista, o PIB japonês ficava-se pelos 540 biliões de ienes. “Além disso, a inflação e o crescimento salarial ficaram aquém das expectativas, prejudicando os ganhos económicos alcançados”, ressalva.
Um dos objetivos que as reformas de Shinzo Abe podem dar como bem sucedido é o do aumento do número de mulheres no mercado de trabalho, que foi “o mais rápido a que assistimos em qualquer economia desenvolvida naquele período de tempo”, destaca António Fatas, professor de Economia no campus de Singapura do Insead, em declarações ao Observador.
Foi esse, aliás, um dos temas da conversa que o então primeiro-ministro japonês teve com o Nobel da Economia Paul Krugman em 2016, e que foi recordada esta sexta-feira pelo próprio no Twitter. “O que quer que se diga sobre ele, Abe não era um simples conservador social”, afirma Krugman. “É um facto pouco conhecido que em termos de participação na força de trabalho, o Japão ultrapassou largamente os Estados Unidos, apesar de as mulheres ainda estarem muito restringidas a empregos mal pagos”, sublinha o Nobel da Economia. Mesmo aqui, apesar do sucesso, as metas ficaram aquém.
Abe tinha o objetivo de ter 30% das posições de liderança do país ocupadas por mulheres em 2020. “O Japão tem de ser um país onde as mulheres brilham. Hillary Clinton disse-me que o Japão cresceria 15% mais se as mulheres participassem mais na economia. E é isso que vou fazer”, afirmou. A realidade mostra que o valor ainda não vai além dos 8%.
And it's a little known fact that in terms of sheer labor force participation, Japan has pulled far ahead of the US, although women are still largely restricted to lower-paid jobs 7/ pic.twitter.com/e7MsmwJrbx
— Paul Krugman (@paulkrugman) July 8, 2022
No geral, “as reformas de Shinzo Abe tiveram um impacto significativo na economia japonesa”, sentencia António Fatas. “Apesar de poderem não ter cumprido as expectativas, colocaram a economia num caminho muito melhor”. O PIB “não se comportou tão bem devido ao envelhecimento da população, mas não havia expectativas de que o plano pudesse mudar as tendências demográficas”, conclui o professor.
No país que recebeu os Jogos Olímpicos em 2021, o programa de Shinzo Abe nunca fez mais do que cumprir os mínimos olímpicos, dizem os economistas em coro. A Abenomics “nunca correspondeu às expectativas no que toca às reformas estruturais”, aponta ao Observador Fei Xue, analista para a Ásia da Economist Intelligence Unit (EIU). “A falta de progresso nas reformas do mercado de trabalho travou o crescimento dos salários e da produtividade”, adianta. Um aumento do imposto sobre o consumo “mal implementado” em outubro de 2019 “conduziu a economia a uma recessão ainda antes de o país ser atingido pela pandemia”. Ao mesmo tempo, “o problema da falta de mão de obra persistiu ao longo da liderança de Shinzo Abe, em parte porque os esforços para aumentar as oportunidades para as mulheres e diminuir as restrições para a contratação de imigrantes foram limitados em escala e ambição”, diz o mesmo especialista.
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As falhas detetadas pelos especialistas ouvidos pelo Observador são em tudo semelhantes. “Embora tenha criado um ambiente benigno para o aumento da produtividade e da inovação no país, o sucesso de Abe foi limitado e nunca atingiu o objetivo de 2% de inflação, devido ao inverno demográfico no Japão e à falta de dinâmica dos agentes económicos, que mantiveram barreiras comerciais e a opacidade na governança das empresas”, ressalva Steven Santos, gestor do BIG. “A elevada dívida pública é uma herança pesada que Abe deixa para as próximas gerações”, ressalva ainda, apesar de considerar o legado de Shinzo Abe como “muito positivo”.
É verdade que o programa teve “algumas conquistas”, refere Fei Xue, “nomeadamente ter retirado o Japão do cenário de deflação (apesar de a inflação nunca ter atingido de forma sustentada o objetivo de 2% definido pelo Banco do Japão) e a liberalização do comércio externo”. Neste capítulo, são de assinalar os acordos comerciais assinados com os Estados Unidos e a União Europeia, em 2019. O acordo assinado com a União Europeia criou a maior área de comércio livre do mundo.
Na sua vigência, “devido à política acomodatícia de impressão de moeda e compra de ativos financeiros (obrigações, fundos de ações cotados em bolsa e fundos imobiliários cotados em bolsa), o iene registou desvalorizações expressivas no mercado cambial, beneficiando as empresas exportadoras e levando muitos japoneses a investir as poupanças fora do país”, salienta Steven Santos.
Shinzo Abe renunciou ao cargo no verão de 2020, devido a problemas de saúde. Mas segundo os especialistas, o legado do Abenomics ainda vive. “Uma política orçamental ultra expansionista vai manter-se em vigor no curto prazo para compensar a fraca procura do setor privado e manter baixos os custos dos empréstimos. E a busca do Japão pela liberalização do comércio externo foi cimentada com o papel de liderança que o país assumiu na criação e desenvolvimento do Acordo de Parceria Trans-Pacífica”, ressalva o analista do EIU. Ao mesmo tempo, destaca, “as políticas que pretendem aumentar o emprego feminino e promover a igualdade de género no mercado de trabalho não foram revertidas”.
E é esperado que o atual primeiro-ministro, Kishida Fumio, implemente medidas que resolvam problemas que a Abenomics falhou em concretizar. “Isto inclui o fraco crescimento dos salários e da produtividade, e também a existência de uma estrutura laboral que favorece os trabalhadores com contratos permanentes, enquanto quem tem contratos temporários está amarrado a baixos salários e pouca segurança laboral”, assevera o mesmo economista.
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“Tenho a fervorosa esperança de que, através da Abenomics, consigamos criar um Japão vibrante que possa trazer paz e prosperidade à região e ao mundo”, enunciou Shinzo Abe no encerramento do discurso em Davos, em 2014. Quase dez anos depois de ter sido implementado, o plano não criou um Japão “vibrante” nem revolucionou a economia. Mas garantiu a Shinzo Abe um lugar na História do Japão e da economia mundial.