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Começa nesta quinta-feira no Vaticano uma reunião convocada pelo Papa Francisco, com 190 líderes católicos de todo o mundo, para discutir os abusos sexuais na Igreja. Após duas décadas de sucessivas investigações que revelaram escândalos por todo o mundo, o Papa argentino tomou a decisão inédita de chamar a Roma os presidentes das conferências episcopais de todos os territórios onde a Igreja está implantada. Durante quatro dias, as atenções estarão voltadas para o Vaticano — mas não é ainda certo que decisões poderão sair da reunião. Nove perguntas e respostas para perceber o que está em causa nesta cimeira.
Que reunião é esta?
O encontro, convocado em setembro de 2018 pelo Papa Francisco sob o mote “A Proteção dos Menores na Igreja”, é uma cimeira que reúne no Vaticano os líderes das estruturas locais da Igreja Católica em todo o mundo. Na sua maioria, são os presidentes das conferências episcopais, o organismo colegial que reúne todos os bispos católicos de um país e que, habitualmente, adota procedimentos que dizem respeito ao país ou território em causa.
É uma cimeira inédita. Nunca o Papa tinha convocado todos os presidentes das conferências episcopais do mundo para um encontro no Vaticano dedicado apenas a um assunto. A Igreja Católica tem, habitualmente, outras formas de reunir os seus líderes para tomar decisões. Por exemplo, através das reuniões periódicas do Conselho dos Cardeais, órgão consultivo do Papa Francisco, composto atualmente por seis cardeais oriundos de várias partes do mundo que aconselham o líder dos católicos em todo o tipo de assuntos.
Os temas mais importantes, para os quais é necessário ouvir uma maior amplitude de vozes e tomar decisões que afetam a Igreja em todo o mundo, são tratados no Consistório, a reunião de todos os cardeais (atualmente mais de 200). As reuniões ordinárias do Consistório contam com todos os cardeais que estiverem em Roma no momento do encontro; já os consistórios extraordinários reúnem todos os cardeais do mundo.
Em simultâneo, a Igreja Católica tem o Sínodo dos Bispos, um órgão permanente criado pelo Concílio Vaticano II (na década de 60) que se reúne periodicamente em Roma para discutir um determinado assunto e que conta com bispos eleitos por cada conferência episcopal, habitualmente especializados no tema em questão.
A convocatória de uma cimeira com os líderes da Igreja Católica em todo o mundo surge, pois, fora do esquema habitual das reuniões magnas do Vaticano. A ideia de convocar esta reunião inédita saiu de um encontro do Conselho dos Cardeais e, inicialmente, foi comunicada sem grandes detalhes. A decisão acabaria por ser justificada pelo Papa Francisco durante o voo de regresso do Panamá, onde esteve para as Jornadas Mundiais da Juventude.
Aos jornalistas, o líder da Igreja Católica explicou que o grande objetivo do encontro é dar uma “catequese” aos bispos de todo o mundo — através dos seus líderes — para que “tomem consciência do drama” que são os abusos sexuais. “Percebemos que alguns bispos não entendiam bem, não sabiam o que fazer, ou faziam uma coisa bem e outra mal”, explicou Francisco. São precisos, acrescentou ainda, “protocolos claros” que indiquem aos bispos em todos os lugares do mundo o que devem fazer perante situações de abuso.
O Papa lamentou ainda que, segundo as estatísticas, apenas 50% dos casos de abusos sejam denunciados e apenas 5% resultem em condenações. “É um drama humano”, assegurou. “Também nós, resolvendo o problema na Igreja, ajudaremos a resolvê-lo na sociedade e nas famílias, onde a vergonha cobre tudo. Mas, primeiro, devemos tomar consciência, ter os protocolos e seguir em frente.”
Porque foi convocada?
A decisão surge após vinte anos de sucessivas investigações que têm vindo a revelar situações de abusos sexuais na Igreja Católica em todo o mundo — fortemente impulsionadas pelas reportagens publicadas em 2000 pelo Boston Globe sobre a ocultação dos abusos nos Estados Unidos. Sucederam-se escândalos em países como a Austrália, a Irlanda, a Alemanha e, mais recentemente, o Chile.
“Percebemos que é um fenómeno que está presente em todos os países, e não apenas no Ocidente, na América do Norte ou na Europa Central. Está em todo o lado”, disse recentemente ao Observador o padre jesuíta alemão Hans Zollner, um dos homens fortes do Vaticano para a proteção das crianças e jovens e encarregado da preparação desta cimeira inédita.
O ano de 2018 foi um dos períodos mais negros para a Igreja no que toca a este assunto, sobretudo nos Estados Unidos. O caso mais mediático foi o do antigo cardeal norte-americano Theodore McCarrick, que, no último fim de semana, foi oficialmente expulso do clero pelo Papa Francisco e que, em julho do ano passado, tinha sido o primeiro cardeal em quase 100 anos a abandonar o colégio dos cardeais, depois de surgirem contra ele fortes acusações de que teria cometido abusos sobre crianças de 11 anos na década de 60.
O caso McCarrick fez rebentar a outra grande polémica de 2018 quando, em agosto, o antigo embaixador do Vaticano nos EUA, o arcebispo Carlo Maria Viganò, publicou uma carta aberta ao Papa na qual alegava que Francisco sabia dos abusos cometidos por McCarrick desde, pelo menos, 2013. E mais: pela primeira vez na história recente, um elemento da Cúria Romana apelava diretamente à resignação do Papa.
Com a Igreja a chegar a um ponto de ruptura — que fez vir ao de cima velhas guerras entre alas mais conservadoras e outras mais progressistas da hierarquia católica — a decisão de Francisco pode ser interpretada simultaneamente como uma demonstração de autoridade e como um reconhecimento de que o problema é universal. Durante os quatro dias da reunião, o Papa terá oportunidade para dizer aos bispos que houve comportamentos que a Igreja considera hoje intoleráveis. “É qualquer coisa sem precedentes”, resumia o jesuíta Hans Zollner na mesma entrevista ao Observador.
Quem vai participar?
A cimeira de quatro dias, que decorre na ampla Ala Nova do Sínodo (onde habitualmente se reúnem os bispos nas reuniões periódicas do Sínodo), vai ter um total de 190 participantes, nos quais se incluem:
- O Papa Francisco, que vai estar presente durante todo o tempo da reunião;
- Os 114 presidentes ou representantes das conferências episcopais de todo o mundo, a saber:
- 36 de África;
- 24 da América;
- 18 da Ásia;
- 32 da Europa;
- 4 da Oceânia.
- Os 14 líderes das Igrejas Orientais Católicas;
- 15 bispos que não fazem parte de nenhuma conferência episcopal (nomeadamente, representantes de administrações apostólicas em lugares do mundo onde não há católicos suficientes para organizar uma conferência episcopal);
- 12 superiores de congregações masculinas;
- 10 superioras de congregações femininas;
- Os 10 prefeitos dos dicastérios da Cúria Romana (os “ministros” do Governo da Igreja Católica);
- 4 outros elementos da Cúria Romana, nomeadamente adjuntos e secretários;
- 5 membros do Conselho de Cardeais (o conselho consultivo particular do Papa);
- E ainda os 5 membros do comité organizador da cimeira, incluindo o moderador do encontro, o padre italiano Federico Lombardi, ex-porta-voz do Vaticano.
Portugal será representado pelo presidente da Conferência Episcopal Portuguesa, que é neste momento o cardeal-patriarca de Lisboa, D. Manuel Clemente.
O que vai acontecer durante a cimeira?
O Vaticano divulgou esta segunda-feira o programa detalhado da reunião, que inclui momentos de oração, palestras, trabalhos em pequenos grupos organizados por língua e ainda auscultação de testemunhos.
Os três primeiros dias da cimeira vão ser passados na Ala Nova do Sínodo, ao lado da Praça de São Pedro, e estarão divididos por temas: o primeiro será sobre a responsabilidade dos bispos, o segundo sobre a prestação de contas e o terceiro sobre a transparência. O último dia vai ser marcado por uma missa de encerramento, após a qual o Papa Francisco fará um discurso com as conclusões da reunião. Como não será publicado um documento final, este discurso é o momento mais aguardado dos quatro dias.
Entre os oradores que os bispos vão escutar ao longo da cimeira encontram-se o cardeal filipino Luis Antonio Tagle, arcebispo de Manila; D. Charles Scicluna, arcebispo de Malta e responsável da Cúria Romana pelas investigações aos casos de abusos sexuais; o cardeal colombiano Rubén Salazar Gómez, arcebispo de Bogotá; o cardeal indiano Oswald Gracias, arcebispo de Bombaim; o cardeal norte-americano Blase J. Cupich, arcebispo de Chicago; Linda Ghisoni, sub-secretária do Dicastério para os Leigos, a Família e a Vida e professora de Direito Canónico; a irmã Veronica Openibo; o cardeal alemão Reinhard Marx, arcebispo de Munique; e a jornalista mexicana Valentina Alazraki.
O moderador dos encontros será o ex-porta-voz do Vaticano e padre jesuíta Federico Lombardi. Em dez oradores, apenas três são mulheres e apenas duas não fazem parte do clero.
De acordo com o programa, os bispos terão duas palestras de manhã e uma à tarde. Entre as palestras, terão de trabalhar em pequenos grupos de cerca de duas dezenas de pessoas, divididos por língua. Cada grupo terá um relator que apresenta as conclusões ao plenário no fim de cada módulo.
Os temas em debate oscilam entre a responsabilidade dos bispos, o conhecimento da dor e do sofrimento do povo cristão, o momento de atual crise da Igreja, a comunicação, a transparência ou a abertura às realidades exteriores à Igreja Católica.
No sábado, dia 23, os bispos vão concluir a reunião com uma celebração penitencial para pedir perdão pelos abusos cometidos pelos membros do clero. Todos os dias, os momentos de oração que concluem os trabalhos serão feitos na presença de vítimas de abuso sexual, que vão ser ouvidas pelos bispos. O Vaticano manteve em segredo a identidade destas pessoas.
No início do encontro serão mostrados vídeos de vários bispos do mundo a relatar encontros que tiveram com vítimas de abusos sexuais. Entre os vídeos já divulgados pelo Vaticano encontram-se os dos presidentes das conferências episcopais de França, da Irlanda e de Itália.
Que relato leva D. Manuel Clemente sobre Portugal?
Pelo menos em público, os bispos de Portugal têm passado a mensagem de que a situação dos abusos sexuais não é mais do que um conjunto de casos pontuais. Ainda no verão passado, o cardeal de Leiria-Fátima, D. António Marto, vice-presidente da Conferência Episcopal Portuguesa, dizia em entrevista ao Observador que “não consta, por exemplo, que [o problema dos abusos] tenha tido uma proporção semelhante nos nossos países, Portugal, Espanha, Itália e outros”, como teve nos Estados Unidos, Irlanda ou Chile.
Por isso, em novembro do ano passado, o cardeal-patriarca de Lisboa, D. Manuel Clemente, defendia que não era necessário, “para já”, um estudo de âmbito nacional sobre os abusos na Igreja em Portugal. “Para já não tratámos disso diretamente. O que fizemos [anteriormente] foi publicar as diretivas, que para já são suficientes e esclarecedoras para aquilo que tem que se fazer”, disse aos jornalistas, referindo-se às normas publicadas em 2012 pela Conferência Episcopal.
Na semana passada, depois de o Observador ter começado a publicar uma série de reportagens sobre a forma como a hierarquia da Igreja lidou com as denúncias de abusos em Portugal, o porta-voz dos bispos portugueses, padre Manuel Barbosa, deu conta, pela primeira vez, da dimensão do problema, falando numa “dezena” de casos investigados pelas dioceses desde 2001. Já um levantamento feito pelo Observador junto de todas as dioceses portuguesas — para o qual mais de metade das dioceses recusaram fornecer dados — resultou na identificação de nove casos investigados.
O número avançado pelo padre Manuel Barbosa resultou de um levantamento feito entre os bispos portugueses durante o processo de preparação para a cimeira que agora se realiza. A Conferência Episcopal Portuguesa continua, porém, sem ter nos seus planos a realização de um estudo aprofundado sobre eventuais casos que nunca tenham sido relatados ou que tenham sido escondidos nas últimas décadas pelos vários bispos que lideraram as dioceses portuguesas.
Até porque, como sublinhou o padre Manuel Barbosa, o entendimento da Conferência Episcopal é que “os casos tratados nos tribunais eclesiásticos onde chegam as denúncias são pouquíssimos“. O responsável salientou ainda que, desses, em mais de metade “a investigação prévia parou por falta de fundamento”.
Olhando para os casos que chegaram à justiça civil, há três padres portugueses que foram condenados em tribunal a penas de prisão (duas delas suspensas) por abusos sexuais de menores, totalizando nove vítimas.
A investigação publicada pelo Observador na semana passada revelou ainda que, em vários dos casos que foram conhecidos nos anos recentes, os bispos responsáveis ou outras pessoas da hierarquia da Igreja souberam dos abusos mas não os reportaram às autoridades civis com competências para investigar crimes.
Foi o que aconteceu no caso do padre António Júlio dos Santos, que abusou de duas menores da paróquia da Golegã, diocese de Santarém, em 2013. O então bispo de Santarém, D. Manuel Pelino, soube do primeiro crime poucos dias depois de este ter acontecido e deu início a uma discreta investigação interna, não aplicando nenhuma medida cautelar nem comunicando as suspeitas à polícia. Quando o sacerdote cometeu o segundo crime de abuso, já era investigado pela Igreja, que voltou a não denunciar o caso. As autoridades só souberam dos crimes por uma notícia do jornal regional O Mirante.
Já no mediático caso do antigo vice-reitor do seminário do Fundão, a investigação do Observador mostrou que, de acordo com os registos que constam do processo, o padre que dirigia o externato onde os seminaristas estudavam foi informado dos abusos três semanas antes da investigação policial e desvalorizou a denúncia, argumentando que não iria interferir na vida de “família” do seminário.
Na diocese do Funchal, na ilha da Madeira, o padre Anastácio Alves foi transferido, primeiro de paróquia e depois de país, em momentos coincidentes com os dois processos por abusos em que foi investigado — e que acabaram sem acusação. Num deles, a vítima voltou atrás no testemunho. Na altura, o bispo do Funchal, D. Teodoro de Faria — o mesmo que não tinha aberto um processo canónico ao padre Frederico, que foi condenado por homicídio de um jovem e que fugiu para o Brasil — optou por não investigar as denúncias, ao contrário do que manda o Código do Direito Canónico.
Entre os casos analisados pelo Observador, o único em que a hierarquia da Igreja não só cumpriu com todas as orientações a que estava obrigada como ainda foi mais longe do que a própria justiça civil foi o do padre Pedro Ribeiro, em Vila Real. Ali, a denúncia contra o sacerdote — que abusou de duas menores através de mensagens sexualmente explícitas pelo Facebook — partiu da própria Igreja, que foi mais dura do que o tribunal na aplicação de uma pena, condenando-o a quatro anos de suspensão do sacerdócio, durante os quais terá de residir num mosteiro.
O cardeal-patriarca de Lisboa leva ainda para a reunião o testemunho pessoal de uma vítima de abuso sexual com quem se encontrou antes de partir para Roma. Em dezembro, o comité organizador da cimeira enviou uma carta a todos os participantes pedindo-lhes que escutassem as vítimas de abusos nos seus países.
“O primeiro passo deve ser tomar consciência da verdade do que aconteceu. Por esta razão, pedimos a cada presidente da conferência episcopal que se aproxime e visite as vítimas que sofreram abusos do clero nos seus respetivos países, antes da reunião de Roma e ouvir, em primeira mão, o seu sofrimento”, lia-se na carta.
Quando questionado pelos jornalistas sobre se o presidente da Conferência Episcopal Portuguesa o tinha feito ou se tinha planos para o fazer, o porta-voz dos bispos respondeu apenas que existe uma “disponibilidade ativa” para ouvir “presumíveis vítimas” que se queiram aproximar. O padre Manuel Barbosa sublinhou que “não há uma lista” de vítimas — mesmo quando questionado sobre as nove vítimas concretas dos três padres condenados em tribunal.
Esta quarta-feira, numa entrevista à Agência Ecclesia, D. Manuel Clemente sublinhou que, face à disponibilidade manifestada, “apareceu um caso de uma pessoa” que quis falar com ele. “Falou longamente comigo, eu ouvi e com certeza que estive com essa pessoa no seguimento do caso”, disse o cardeal-patriarca de Lisboa.
Que resultados se podem esperar?
O Papa Francisco tem feito um esforço para baixar as expectativas relativamente aos possíveis resultados desta reunião. No voo de regresso do Panamá, no final de janeiro, quando falou aos jornalistas sobre esta reunião, disse sentir que existe “uma expectativa de certo modo exagerada” relativamente à cimeira.
“É preciso moderar as expectativas em relação a estes pontos de que lhes falei, porque o problema dos abusos continuará. É um problema humano, em todos os lugares”, disse o Papa Francisco.
Também o padre jesuíta Hans Zollner, organizador da cimeira, disse em entrevista ao Observador que “não podemos esperar que, em três dias e meio, se mude toda a Igreja, se mude todo o mundo”. “Este é um passo num caminho maior, que começou há anos”, considerou Zollner, reconhecendo, contudo, que é “um passo importante” por ser “a própria liderança da Igreja a envolver-se”.
Além disso, não é esperada a publicação de um documento final com orientações concretas, o que indicia que o objetivo da reunião não é tomar decisões específicas, mas sim dar aos bispos de todo o mundo ferramentas para que tomem decisões nos seus próprios países.
Esta segunda-feira, o cardeal norte-americano Blase J. Cupich, um dos responsáveis pela organização desta cimeira, disse numa conferência de imprensa no Vaticano que “o Santo Padre quer tornar claro para os bispos em todo o mundo que cada um deles tem de assumir responsabilidade por este problema” e “assegurar que as pessoas entendem, a nível individual, enquanto bispos, quais são as suas responsabilidades”.
O objetivo desta reunião é que os bispos saiam com novas ideias e orientações sobre qual deve ser a responsabilidade das estruturas locais da Igreja na forma como se lida com o problema dos abusos. Por isso, será expectável que, nos meses seguintes à cimeira, as conferências episcopais de todo o mundo, incluindo a portuguesa, adotem procedimentos e aprovem novas medidas sobre a investigação de abusos sexuais e a colaboração com as autoridades civis nesta matéria.
Que impacto poderá ter em Portugal?
Os bispos portugueses têm agendada para o próximo mês de abril uma reunião da Assembleia Plenária da Conferência Episcopal Portuguesa — e têm remetido todas as decisões sobre os abusos sexuais para esse encontro.
Numa conferência de imprensa na semana passada, o padre Manuel Barbosa explicou que é nesta reunião que D. Manuel Clemente vai apresentar aos bispos portugueses o resultado da cimeira do Vaticano e que vão ser pensadas eventuais medidas a adotar. O porta-voz admitiu ainda que, “se vier uma orientação da Santa Sé nesse sentido”, poderá ser tomada em abril a decisão de levar a cabo uma investigação de âmbito nacional aos abusos sexuais.
A Conferência Episcopal Portuguesa tem um conjunto de linhas orientadoras que os bispos devem seguir se souberem de denúncias de abusos sexuais. Este documento foi publicado em 2012, na sequência do escândalo surgido em 2009 na Irlanda — que obrigou à intervenção direta do Papa Bento XVI. É expectável, porém, que este documento possa ser ajustado, atualizado ou até mesmo substituído por um novo num futuro próximo, de modo a respeitar as indicações dadas pelo Papa Francisco nesta reunião.
Como foi preparada a reunião?
O comité organizador desta cimeira, orientado pelo padre Hans Zollner e composto por clérigos e leigos com experiência no estudo dos abusos sexuais, começou a trabalhar na preparação do encontro logo em setembro, quando o Papa o convocou.
A maior parte do trabalho de preparação consistiu na recolha de informação. Todas as conferências episcopais do mundo receberam um extenso inquérito cujas respostas foram remetidas para Roma e serviram para ajudar os organizadores a perceber em que pé estão os bispos de cada país. Foi a partir destas informações que os temas a abordar na reunião foram escolhidos. O conteúdo deste inquérito foi mantido em segredo.
Segundo explicou ao Observador o padre Hans Zollner, a decisão de realizar a reunião partiu diretamente do Papa, que não deu aos organizadores um caderno de encargos detalhado. “Ele pediu-nos para organizar uma reunião sobre a proteção das crianças na Igreja. Ele queria, e quer certamente, que os bispos de todo o mundo reconheçam a necessidade de trabalhar neste assunto e que recebam informação e instruções sobre tudo o que é necessário para que as instruções da Santa Sé e a lei civil de cada país sejam seguidas”, explicou Zollner.
O alemão, mesmo sem revelar ao Observador o conteúdo do inquérito enviado aos bispos ou as conclusões que retirou das respostas, afirmou que o trabalho de preparação do encontro permitiu perceber que o fenómeno “está em todo o lado”. Foi na sequência desta conclusão que o comité pediu aos vários presidentes das conferências episcopais que se encontrassem com as vítimas antes de viajarem para Roma, para que levassem os testemunhos do sofrimento por que aquelas passaram quando entrassem na cimeira.
Depois de recebido o feedback dos bispos de todo o mundo, o comité elaborou um programa para os quatro dias, que o Papa Francisco aprovou no mês passado.
O que significa este gesto inédito do Papa?
O Papa Francisco descreveu recentemente o encontro como “um ato de forte responsabilidade pastoral diante de um desafio urgente do nosso tempo”. O facto de ser a primeira vez na história da Igreja Católica que é convocada uma reunião magna desta dimensão já diz muito da importância que o Papa argentino dá a este problema.
Convido-os a rezar nestes dias pelo encontro sobre a proteção de menores na Igreja, evento que eu desejei como um ato de forte responsabilidade pastoral diante de um desafio urgente de nosso tempo.
— Papa Francisco (@Pontifex_pt) February 18, 2019
A decisão, aplaudida e aguardada com expectativa por católicos em todo o mundo, foi apelidada de “Super Bowl” do Vaticano pelo jornalista norte-americano John Allen Jr., um dos mais reputados vaticanistas anglo-saxónicos, que alerta, porém, para o facto de a reunião ter de ser “avaliada pelos resultados” que produzir.
Espera-se, na opinião de Allen, que na sequência deste encontro inédito a Igreja endureça a sua posição de “tolerância zero” em duas frentes: por um lado, adotando medidas concretas que levem à demissão permanente de qualquer clérigo que seja alvo de uma acusação credível de abuso sexual; por outro lado, que o Vaticano faça “mais do que aceitar discretamente a resignação dos bispos acusados” de encobrir os casos, instaurando processos a estes responsáveis e condenando-os a penas semelhantes às aplicadas aos padres abusadores.
Esta cimeira será um dos eventos do Vaticano com maior cobertura mediática, equiparável a um conclave para a eleição do Papa, com a sala de imprensa da Santa Sé a receber centenas de jornalistas de todo o mundo. Durante uma semana, os olhos do mundo — especialmente nos países tradicionalmente católicos — vão estar virados para o Vaticano à espera de respostas.
Artigo atualizado às 21h54, com a nova informação de que D. Manuel Clemente se encontrou com uma vítima de abuso sexual.