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Foram necessárias poucas horas para o Conselho Europeu extraordinário de energia anunciar um acordo político histórico para a redução do consumo de gás nos próximos oito meses, que começa por ser voluntário mas que passará a obrigatório caso seja declarado estado de alerta no abastecimento. A proposta inicial da Comissão Europeia para um corte transversal de 15% no consumo de todos os países foi substancialmente revista nos dias que antecederam a reunião e permitiu aos 27 mostrar uma frente quase unida (faltou o voto húngaro) face à “chantagem russa” que usa o fornecimento de gás como arma política, segundo têm afirmado vários políticos europeus.

Mas, para tal, foi necessária uma negociação difícil e a cedência a condicionantes colocadas por quase todos os países, que resultaram numa proposta de regulamento substancialmente revista e com tantas derrogações e exceções que ficou a dúvida colocada várias vezes na conferência de imprensa final, e para a qual  não houve até agora resposta.

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Afinal, que países terão de cumprir a meta de 15% caso o corte do consumo de gás venha a ser vinculativo? Outra interrogação que fica é se este plano de racionamento de emergência, que a agência Reuters qualifica de “enfraquecido” face à versão inicial, será suficiente. Na apresentação dos resultados da reunião de emergência, o ministro da Indústria checo (país que preside à União Europeia), Jozef Síkela, defendeu que este é um sinal para a Rússia, que não conseguiu dividir os países europeus, mas sobretudo para os cidadãos europeus porque significa que “não vamos sofrer as consequências dramáticas de um corte unilateral no abastecimento”.

O que está em causa na meta de 15% da redução do consumo de gás?

O acordo europeu prevê duas dimensões para este objetivo quantitativo de redução no consumo de gás natural, que equivale a 45 mil milhões de metros cúbicos de gás nos próximos oito meses, entre agosto e março de 2023. A primeira dimensão é voluntária. Ou seja, os países comprometem-se a tomar medidas para cumprir ou até ultrapassar esta meta indicativa. Mas há uma segunda dimensão na qual a meta voluntária se torna vinculativa e essa foi a parte mais delicada desta negociação.

Em que condições a meta voluntária passa a vinculativa?

No caso de ser declarado o estado de alerta na União Europeia em matéria de segurança de abastecimento na sequência de um corte unilateral de gás por parte da Rússia, o corte voluntário passa a ser obrigatório em nome da solidariedade europeia e da “partilha da dor”, expressão usada pelo ministro checo. A Gazprom tem vindo a reduzir as entregas através do principal gasoduto de fornecimento à Europa, o Nord Stream, mas até agora tem invocado problemas técnicos ou de manutenção.

Quem pode declarar o estado de alerta na UE?

Esta foi uma mudança importante face à proposta original de Bruxelas, na medida em que transferiu poder para os estados-membros. Caberá à Comissão Europeia apresentar uma proposta para acionar o estado de alarme no caso de verificar um risco substancial de falha grave de fornecimento ou um aumento excecional da procura, mas o estado de alerta terá de ser validado pelo Conselho Europeu com maioria qualificada, o que exige 15 em 27 estados-membros. O alerta europeu também pode ser ativado caso cinco ou mais estados-membros que estejam em situação de alerta nacional o solicitem à Comissão Europeia.

Que derrogações e exceções foram consagradas?

Há dois tipos de exceção que se aplicam à meta vinculativa dos 15%. Algumas são nacionais e aplicam-se a países já identificados. É o caso das ilhas como a Irlanda, Malta e Chipre (que não usa gás natural) que estão geograficamente desligadas das infraestruturas energéticas europeias nomeadamente da rede de gasodutos. E que estão isentas de cumprir esta meta obrigatória. Foi ainda consagrada uma derrogação para os países do Báltico, cujos sistemas elétricos estão sincronizados com a rede russa e que podem, por iniciativa deste país, sofrer perturbações no abastecimento. Estes países estão autorizados a usar o gás para estabilizar os seus sistemas. Apesar de beneficiarem destas derrogações, estes estados comprometaram-se no esforço de reduzir voluntariamente o seu consumo.

Depois há outro tipo de exceções que são transversais e que não são específicas de um país e que são aquelas que se aplicam a Portugal.

Que exceções conseguiu Portugal?

Portugal foi um dos muitos países que manifestou, desde logo, a oposição a um corte cego no consumo doméstico do gás natural. Alguns dos argumentos usados pelo Governo nacional, assim como por outros estados-membros como Espanha, foram acolhidos. Assim, e de acordo com o ministro da Energia e Ação Climática, Duarte Cordeiro, Portugal ficou parcialmente isento do corte vinculativo de 15% sobretudo por duas condições. A primeira corresponde à capacidade de interligação reduzida (e indireta através de Espanha) com a Europa continental, via França. Esta limitação não permite a Portugal enviar gás poupado (ou cortado) para outros países em quantidades que sejam relevantes. Afinal, concluiu, não vamos cortar gás só por cortar, penalizando a economia.

A segunda condição resulta da necessidade de evitar qualquer risco para segurança do abastecimento elétrico num momento em que a produção está mais dependente do gás natural do que nunca.

Porque está a eletricidade em Portugal tão dependente do gás natural?

A principal razão, assinalada pelo ministro, é a seca que reduziu em cerca de 50% a produção hidroelétrica, obrigando logo no inverno, e ainda com maior intensidade no verão, a utilizar as centrais a gás natural. Há uma outra razão, não referida por Duarte Cordeiro, para esta dependência do gás — o fecho das centrais a carvão. De acordo com as estatísticas da REN (Redes Energéticas Nacionais), no primeiro semestre a produção a gás natural abasteceu 31% do consumo, que é o valor mais elevado registado até hoje para aquele período. O saldo importador a partir de Espanha atingiu os 21%, que é também o valor mais elevado de sempre registado no sistema elétrico nacional, para este período do ano. E da energia comprada do outro lado da fronteira há também uma fatia importante que foi produzida com recurso ao gás.

Com estas exceções Portugal vai ter de cortar quanto no consumo?

Pelas contas apresentadas por Duarte Cordeiro, e no caso de ser necessário recorrer à meta vinculativa, a redução do consumo por parte de Portugal é inferior em oito pontos percentuais face à meta geral dos 15%. Isto significa um corte de 7% no consumo nacional face à média dos últimos cinco anos. Isto aplicando apenas a isenção parcial que decorre da reduzida capacidade de interligação à Europa. A mesma meta parcial será aplicada a Espanha, de acordo com declarações da ministra Teresa Ribera.

Portugal consome cerca de 5,6 mil milhões de metros cúbicos de gás por ano, o que corresponde a 15% de todo o consumo espanhol. Um corte de 15% representaria menos 268 milhões de metros cúbicos para Portugal, mas esse valor deverá ser metade.

O ministro deixou em aberto que o país poderá ainda beneficiar de uma isenção maior por via da salvaguarda da segurança do abastecimento elétrico que, neste momento, e por causa da seca, depende do gás natural.

Há outras exceções transversais que podem vir a favorecer a posição portuguesa. A exceção para setores industriais, considerados cruciais e que usam gás, e a disponibilidade para exportar para outros países. Portugal manifestou-se disponível para viabilizar, através do Porto de Sines, o transporte através transhipment (transferência de cargas entre navios) de gás para o centro ou norte da Europa.

Quem decide os cortes e onde vão ser aplicados?

A proposta de regulamento aprovada prevê que sejam os países a decidir as medidas concretas a adotar para conseguir poupar no consumo de gás natural, quer na versão voluntária, quer na versão vinculativa. Salvaguarda apenas que deve ficar de fora o abastecimento às famílias e ao serviços essenciais como estabelecimentos de saúde, transportes e defesa.

O que está Portugal a fazer para reduzir o consumo de gás?

Até agora, o esforço político tem-se dirigido para o objetivo de acelerar a transição energética, em particular através do aumento da capacidade de produção elétrica por via de fontes renováveis, reduzindo a necessidade de recorrer a centrais térmicas (a gás). Nessa medida, o Governo aprovou recentemente um diploma que simplifica o licenciamento de centrais renováveis, em particular parques fotovoltaicos. Duarte Cordeiro indicou ainda que o consumo de gás natural em Portugal caiu 23% este ano, excetuando o setor elétrico (onde a procura subiu). Mas não especificou como foi esta redução obtida e se é estrutural. Algumas indústrias grandes consumidoras de gás, como a Siderurgia Nacional e cerâmicas, pararam a produção no início da guerra na Ucrânia devido à escalada dos preços da energia. Duarte Cordeiro revelou ainda que o Governo irá anunciar em breve um pacote de medidas de reforço da segurança energética em Portugal.

Afinal, que países vão ter de cumprir a meta obrigatória dos 15%?

Essa foi uma pergunta que ficou sem resposta. A comissária da Energia Kadri Simson referiu que as exceções transversais, mas condicionadas a determinadas situações, terão de ser pedidas à Comissão Europeia e devidamente fundamentadas por parte dos países. Confrontado com a mesma pergunta, o ministro Duarte Cordeiro referiu que a aplicação do regulamento é complexa e contempla várias situações. Mas parece evidente que algumas das exceções introduzidas, nomeadamente a que aos países isentar os setores industriais considerados cruciais e que dependem do gás, podem ser reclamadas por todos os países, nomeadamente pela Alemanha que é o maior consumidor da Europa.

Se há tantas exceções, a Europa vai conseguir cortar o suficiente para sacudir a ameaça russa?

De acordo com a comissária europeia da Energia, os cálculos iniciais feitos em Bruxelas indicam que mesmo se todas as exceções forem usadas na sua extensão total, será possível atingir uma redução da procura que nos ajudará a atravessar em segurança um inverno médio. E se o Inverno for rigoroso e longo? À pergunta feita na conferência de imprensa, Kadri Simson admitiu que esse cenário irá exigir mais medidas, mas sublinhou a importância de começar já a poupar e diferença que isso pode fazer face a uma resposta tardia e descontrolada a um corte total por parte da Rússia. Duarte Cordeiro sublinhou, por seu turno, que este é o um passo importante, mas um primeiro passo e que caberá à Comissão Europeia avaliar o impacto.

A União Europeia mostrou mesmo uma frente unida na crise do gás?

Não totalmente. A Hungria votou contra o acordo político. Na sessão pública da reunião dos 27 ministros com a pasta da energia, o ministro dos negócios estrangeiros e comércio, Péter Szijjártó invocou os tratados europeus que consagram a política energética como uma competência exclusiva dos estados-membros. E elogiou a estratégia seguida pelo seu Governo que foi duramente criticada pelos parceiros europeus, mas que permite agora à Hungria estar a salvo dos recentes cortes nos fluxos com destino à Europa central e do Norte, ao entrar na construção d0 gasoduto Turkstream.