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MANUEL DE ALMEIDA/LUSA

MANUEL DE ALMEIDA/LUSA

Advogados e proletários? Como resolver este problema?

A massificação da profissão faz com que os advogados lutem pela sobrevivência entre salários baixos e toneladas de trabalho. Como se resolve o problema lá fora? E cá? Ensaio de Nuno Gonçalo Poças.

Os Ensaios do Observador juntam artigos de análise sobre as áreas mais importantes da sociedade portuguesa. O objetivo é debater — com factos e com números e sem complexos — qual a melhor forma de resolver alguns dos problemas que ameaçam o nosso desenvolvimento.

Não constitui novidade nem exagero afirmar que a proletarização chegou à advocacia. É uma realidade que, de forma direta ou indireta, quase toda a gente conhece: advogados que, apesar de uma qualificação exigente e do exercício de uma profissão tradicionalmente de elevado prestígio social, lutam pela sobrevivência entre salários baixos e toneladas de trabalho. No entanto, até hoje e apesar da evolução do mercado jurídico, não foi avançada qualquer solução para os profissionais da área. Como explicar que um problema há tanto tempo identificado e sentido por tantos profissionais, sobretudo jovens, se mantenha por resolver?

A pergunta não tem resposta clara. Já em 2002, num artigo publicado no Público, Paulo Rangel trazia para o debate a ruína do paradigma liberal da advocacia. E, nas eleições para os órgãos da Ordem dos Advogados, em 2010, todos os candidatos se pronunciavam sobre o excesso de profissionais da advocacia em Portugal: Marinho e Pinto, que seria reeleito nesse ato eleitoral, apontava o dedo ao Estado e sugeria aos jovens profissionais que lhe pedissem (ao Estado) que lhes arranjasse emprego; Fragoso Marques mostrava-se preocupado com a massificação da profissão e pedia numerus clausus para as licenciaturas; Luís Filipe Carvalho exigia requisitos mínimos para o exercício da advocacia. Como as palavras é o vento que as leva, entre 2010 e 2016 Portugal viu o seu número de advogados crescer em mais 2925 profissionais – um dos quais este que vos escreve.

Ou seja, propostas até houve – fossem melhores ou piores. Mas o que é que se fez? Ainda se piorou a situação. Recentemente, em 2015, o Governo levou a cabo a reforma da Caixa de Previdência dos Advogados e dos Solicitadores (CPAS), agravando o valor das contribuições, indexando-as ao valor do salário mínimo, aumentando a idade da reforma, exigindo o pagamento de contribuições aos advogados-estagiários e lançando a possibilidade de cobranças coercivas a quem não tivesse os seus pagamentos em dia. Na altura, dizia-se, a CPAS estava em estado de falência e era isso que se pretendia evitar, onerando as gerações mais novas, a quem competiria minimizar os prejuízos do passado. Sim, os advogados indignaram-se, momentaneamente e sem consequências, com tal estado de falência, uma vez que a advocacia tem, como se mostra neste ensaio, uma pirâmide demográfica sustentável. E depois calaram-se. Até hoje. Fica, portanto, a dúvida: como lidar com a precarização dos advogados? É essa a pergunta que este ensaio visa ajudar a responder.

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Uma explosão no número de advogados

Como disse Paulo Rangel, no tal artigo publicado em 2002, o modelo antigo era o do profissional liberal, que abria escritório, trabalhava sozinho ou com colegas dos tempos da faculdade, com quem dividia despesas e partilhava a sala de reuniões e a receção. Com os anos, mudou tudo. Em 1960, havia 1964 advogados em Portugal. No ano de 1990 eram 11319. Em 2016, o número disparou para 30475. Desde 2007 que não há uma redução no número de advogados, e desde 1960 que a tendência é notoriamente de crescimento desse número (gráfico 1).

Naturalmente, no sistema judicial, não foram só os advogados a aumentar em número. A democratização do sistema judicial e o aumento da população puxaram também para cima o número de magistrados. Mas as realidades são incomparáveis.

Se em 1960 havia 2,8 juízes e 2,2 magistrados do Ministério Público por cada 100 mil habitantes, os advogados eram 22,1. Mas em 2016, os primeiros eram, respetivamente, 17,1 e 13,6, enquanto que os advogados já eram 295,6 (gráfico 2 e 3). O que não se poderá deixar de relacionar com a taxa de congestionamento dos tribunais portugueses (gráfico 4). Em 2015, o congestionamento dos tribunais portugueses, nos processos de natureza cível e comercial, atingiu os 214%, sendo o valor mais negativo no quadro da União Europeia. E, de resto, um valor impressionante quando comparado com a Grécia, o segundo pior caso da UE, que tinha uma taxa de cerca de metade (105%), ou ainda com a Polónia ou a Lituânia, campeões da celeridade processual e com taxas de juízes per capita superiores aos nossos, que tinham em 2015 uma taxa de congestionamento de menos de 20%.

Na prática e resumindo: tendo por referência o período 1991-2016, havia em 2016 apenas mais 735 juízes que vinte e cinco anos antes (um aumento de 71%), enquanto os advogados eram mais 20949 (um aumento de 219%).

É claro que as diferenças vão para além dos números: a advocacia do século XXI é diferente do profissional romântico dos anos 60. Há hoje cada vez mais advogados que nunca entraram numa sala de audiências e o mercado jurídico abrange muitas áreas que não passam pela litigância. Mas não deixa de ser natural, olhando para os dados da advocacia praticada na barra dos tribunais, e face ao que foi dito anteriormente, que o trabalho dos advogados tenha desvalorizado: em 1960, cada advogado fazia entrar em tribunal 134 processos por ano. Em 2016, já com o mecanismo do apoio judiciário (inexistente em 1960), esse número baixou significativamente para 19,5. Significa isto que os advogados têm, quando individualmente considerados, cada vez menos trabalho, que são mais dependentes e, logicamente, menos livres em termos profissionais.

Certo, certo, é que a advocacia mudou. Ninguém o nega, mas também ninguém se parece adaptar a essa mudança. Deixou de existir o mundo no qual o advogado abria de par em par as portas do seu escritório ao público, sem necessidade de publicidade, num cenário de tranquilidade concorrencial e de prática privada de um serviço público, dotado de um grau de autonomia e de liberdade assinalável. No seu lugar, surgiu um mercado concorrencial feroz, com estruturas hierárquicas rígidas, com contactos cada vez mais impessoais, com os desafios da (r)evolução tecnológica, com sociedades de advogados cada vez mais influentes.

O mundo mudou. Sim, mudou para os advogados, tal como se alterou para engenheiros, professores, jornalistas ou sapateiros. O ponto nevrálgico do debate não é, portanto, o ilusório saudosismo dos bons velhos tempos que não voltarão. O ponto está em perceber que, num contexto de profundas mudanças, o sector não se reformou e não acompanhou essas mudanças. É que, a par da evolução da própria sociedade e da economia, da abertura de cursos de Direito em várias Universidades, da massificação da profissão e do avanço tecnológico, o Estatuto da Ordem dos Advogados manteve-se empedernido – fiel ao cariz liberal da profissão, ignorando que o mundo mudara, mantendo as proibições de sempre, restringindo a publicidade e não considerando a advocacia uma atividade comercial. De certo modo, o que os debates no sector evidenciam é que, enquanto o mundo discute na cloud, a advocacia avalia a importância do papiro.

O crescente recrutamento de juristas por empresas, para desenvolvimento de trabalho jurídico interno, na qualidade de advogados, e a contratação de advogados, tratados como associados, pelas sociedades de advogados, trouxe novos paradigmas laborais à advocacia.

Profissional liberal ou trabalhador por conta de outrem?

Se os tempos mudaram, que visão faria então sentido para o exercício profissional da advocacia – profissional liberal ou trabalhador por conta de outrem? Voltemos ao artigo de Paulo Rangel. Nele, afirma-se que, “para muitos, as sociedades não passavam de ‘supermercados do direito’, que minavam os fundamentos éticos do múnus profissional. A colaboração com colegas interessados no máximo lucro perturbava a independência, a fusão de clientelas gerava conflitos de interesse, o peso dos custos fixos forçava medidas ínvias de publicidade e angariação. O tempo passou e impôs-se. Perante os grandes clientes, é o advogado isolado quem agora não dispõe de independência. Perante a especialização profissional, não é possível exercer a advocacia sem uma estreita cooperação”.

Ora, é inegável que estes tempos de concorrência e de massificação trouxeram a necessidade de abandonar a advocacia exercida a título individual e que as sociedades ganharam terreno. Os jovens advogados procuram as grandes ou médias firmas de advogados para se estabelecerem. Mas continua a existir um mercado de pequenos clientes que não procura as sociedades de advogados. Se é verdade que exercer a advocacia por conta exclusivamente própria é, nos dias de hoje, uma raridade, não é menos certo que continua a fazer sentido que os advogados em prática individual se juntem, poupando nos custos e entreajudando-se nas suas vidas profissionais. A advocacia não tem de ser necessariamente a preto e branco – e muito menos só a preto ou só a branco.

O crescente recrutamento de juristas por empresas, para desenvolvimento de trabalho jurídico interno, na qualidade de advogados, e a contratação de advogados, tratados como associados, pelas sociedades de advogados, trouxe novos paradigmas laborais à advocacia. Mais uma vez, o ordenamento jurídico que rege a advocacia continuava preso em 1960. Curiosamente, foram os tribunais que aceleraram a mudança, recorrendo às soluções normativas que lhes permitiam aplicar as decisões mais justas.

O Tribunal da Relação de Lisboa, em 2003, num caso que colocou em confronto uma advogada e uma sociedade de advogados, e no qual se discutia se a relação jurídica entre ambos era de natureza jurídico-laboral (como entendia a advogada), ou meramente emergente de um contrato de prestação de serviços (como entendia a sociedade), decidiu a favor da advogada. O raciocínio foi este: “Embora revista características híbridas, mas próprias de um contrato de trabalho, outras próprias de um contrato de prestações de serviços, a prestação por uma advogada de atividade profissional própria de advocacia, virada sobretudo, para a consultoria no âmbito de um escritório de advogados, sendo-lhe os trabalhos distribuídos e a respetiva execução controlada e revista pelos advogados titulares do escritório, a quem cabia a última palavra até se considerarem concluídos, deve ser qualificada como integrando um contrato de trabalho sobretudo se, de diversidade dos indícios considerados, o acento tónico incidiu sobre aqueles que revelam tratar-se de exercício de uma atividade profissional juridicamente subordinada, porque dependente da orientação e supervisão dos Réus [a sociedade de advogados]”.

As sociedades de advogados, institucionalizadas em 1979, tiveram um grande impulso sobretudo com o crescente processo de integração europeia, nomeadamente a partir de 2001, com a aprovação da Lei n.º 80/2001. Hoje, permanecem como entidades de natureza não mercantil, apesar de um dos seus objetivos passar pela distribuição do lucro entre dois ou mais advogados. Não se encontra, na verdade, maior assertividade que aquela que demonstrou Isabel Ribeiro Parreira, no seu relatório de mestrado (Contrato de Trabalho de Advogado: uma tarefa de qualificação, Lisboa, 2000): “As sociedades de advogados funcionam em termos práticos, sobretudo as de maior dimensão, como as empresas”.

E como exercem os advogados a sua atividade quando inseridos em contexto de sociedade de advogados? Cumprindo requisitos típicos do contrato de trabalho: têm horário de trabalho, auferem uma retribuição certa, periódica e regular, trabalham em regime de exclusividade, têm um plano de carreira próprio da empresa, utilizam os instrumentos de trabalho da sociedade, frequentam um único local de trabalho, registam horas faturáveis, são alvos de avaliação de desempenho e mérito, cumprem regras de vestuário e indumentária e cumprem ordens dos superiores hierárquicos. Tudo normal, certo?

Errado. É que os advogados que trabalham em sociedades de advogados, apesar de terem de cumprir todas as exigências de um contrato de trabalho, continuam a sofrer as contrariedades de um prestador de serviços. Emitem recibo verde, fiscalmente são obrigados a reter 25% para efeitos de IRS, cobram IVA à sociedade a 23%, que depois têm de entregar ao Estado, suportam por inteiro as contribuições para a Ordem e para a CPAS, não têm proteção na doença nem no desemprego, não estão dispensados de pagar as contribuições para a CPAS em situação de doença própria ou de familiar, não têm proteção na maternidade e na paternidade.

Pensará o leitor, e bem, que todas as profissões têm as suas contingências e que, muitas das vezes, os salários refletem-no, compensando os trabalhadores através da remuneração. Ora, a história neste caso conta-se de outra forma.

Para se ter noção da disparidade salarial na advocacia (fruto, também, das múltiplas realidades profissionais existentes), vejam-se os dados afiançados pela consultora Michael Page, em 2017: em sociedades de média dimensão, os salários anuais variam entre os zero (!) e os 90 mil euros, em função dos anos de experiência. Relembre-se, a este propósito, um inquérito realizado em 2011 pelo Conselho Distrital de Lisboa da Ordem, que concluiu que, em média, os jovens profissionais ganhavam 600 euros por mês. O CDL concluía que cerca de 11 mil advogados (aproximadamente um terço do total) tinha menos de dez anos de experiência, pelo que, segundo a análise posterior da Michael Page, estarão mais próximos do zero que dos 90 mil euros anuais. Ao inquérito do CDL, 55% responderam que ganhavam menos de 1500 euros brutos (sem lhe descontarem o IRS, o CPAS e as quotas da OA) – a valores de hoje, para concretizar, 1500 euros brutos, num advogado com cinco anos de experiência equivalem a 840 euros líquidos. Entre os 4300 inquiridos, só 77 afirmaram ganhar mais que 3500 euros mensais. E metade destes trabalhava em prática individual ou dividia escritório com colegas.

O que é que estes números nos dizem? Que o problema é salarial e também não é salarial. A perspetiva remuneratória de quem trabalha numa sociedade de advogados pode até ser grande, mas é mantida à custa da privação de direitos sociais. E, como as sociedades não absorvem a totalidade dos advogados, quem fica de fora (ainda que por opção) tem o problema de ver o seu mercado, quanto à clientela, reduzido a muito pouco. O que une uns (advogados trabalhadores por conta de outrem) e outros (advogados profissionais liberais) é a inexistência de direitos sociais e, em muitos casos, os baixos rendimentos e a elevada carga fiscal e contributiva. Ora, a isto chama-se precariedade. E a ironia é assinalável: aqueles que vivem da defesa dos direitos de todos os cidadãos são os primeiros ignorados pelo ordenamento jurídico no que à defesa dos seus próprios direitos diz respeito.

Ao contrário do português, o legislador espanhol tomou consciência de que muitos advogados, tratados como trabalhadores independentes, para benefício das sociedades de advocacia, eram na verdade meros assalariados sem direitos sociais

E lá fora, que soluções existem para este desafio?

O problema está diagnosticado, tanto na explosão do número de advogados a exercer no mercado de trabalho como na natureza jurídica do seu vínculo laboral, geradora de uma situação de precariedade. A questão que fica não poderia ser mais directa: como solucionar este desafio? Uma vez que as questões acima desenvolvidas não são exclusivas a Portugal, e aliás em muitos países permanecem por resolver, olhar para a forma como alguns países lidaram com a situação ajuda a compreender as opções possíveis. Veja-se, por exemplo, os casos de França, Espanha e as recomendações das maiores organizações internacionais.

França. O legislador francês não entende que a advocacia seja exercida de forma subordinada. Isto poderia indiciar que não reconheceria quaisquer direitos laborais aos advogados, mas optou afinal por um regime que assegura que estes profissionais não ficam juridicamente em terra de ninguém.

O Réglement Intérieur National de la Profession D´Avocat contempla as situações de colaboração associada praticada por advogados, definindo-as como um modo de exercício profissional através do qual o advogado desenvolve a sua atividade profissional junto de um ou mais escritórios, entendendo-se que existe subordinação jurídica estritamente para a definição das condições de trabalho. Assim, a advocacia praticada por advogados associados, isto é, em regime de colaboração com escritórios, é regulada pela legislação laboral, em geral, e pela Convention collective nationale des cabinets d’avocats, em especial. Em suma, o ordenamento francês optou por não considerar formalmente o advogado como um normal trabalhador por conta de outrem, mas dotou-o, ao mesmo tempo, de mecanismos de proteção laboral.

Espanha. Ao contrário do português, o legislador espanhol tomou consciência de que muitos advogados, tratados como trabalhadores independentes, para benefício das sociedades de advocacia, eram na verdade meros assalariados sem direitos sociais.

Através da Ley n.º 22/2005, Espanha atribuiu a esta relação jurídica a forma de relação laboral especial, que viria a ser concretizada em maior detalhe por Decreto Real, já em 2006. Significa isto que o poder legislativo espanhol entendeu que a relação jurídica dos advogados em regime de colaboração com escritórios é dotada de singularidades tais que justificam a sua consagração como especial, nomeadamente as que envolvem as situações de natureza deontológica e ética que o caráter da própria profissão naturalmente envolvem. A solução jurídica espanhola definiu, então, o caráter laboral dos advogados de empresa e dos advogados em sociedade de advogados, e distinguiu-os dos reais profissionais liberais, ainda que em parceria com outros colegas, mas que trabalham autonomamente, sem horário de trabalho, com clientes próprios, com instrumentos de trabalho próprios e sem rendimento fixo.

As organizações internacionais. A Organização Internacional do Trabalho (OIT) tem manifestado grande preocupação com o combate ao falso trabalhador independente – o comummente chamado em Portugal de “falso recibo verde”. Já em 2006, através da recomendação n.º 198, a OIT reconhecia a existência de relações laborais que vedavam o acesso dos trabalhadores à proteção que lhes seria naturalmente devida, e recomendou à União Europeia que adotasse medidas de combate a essas relações contratuais dissimuladas, nomeadamente que os Estados-membros criassem uma variedade de meios para determinar a existência de uma relação de trabalho e que criassem mecanismos de presunção legal de que uma relação de trabalho existe quando um ou mais indicadores se mostrassem presentes. Para isto, sugeria a OIT que os Estados-membros reconhecessem contratos de trabalho quando este fosse realizado de acordo com as instruções de uma empresa, que fosse executado para benefício de terceiro, quando existisse um horário de trabalho, quando os instrumentos de trabalho fossem do empregador, quando existisse remuneração periódica certa ou quando inexistisse risco financeiro para o trabalhador. Como se verá adiante, estas recomendações chegaram a Portugal. Mas não à advocacia.

Então, e o que se fez em Portugal?

Em bom rigor, quase nada. O problema não tem sido a falta de combate à precariedade, sublinhe-se. De resto, o Decreto-Lei 63/2013 veio já instituir mecanismos de combate à utilização indevida do contrato de prestação de serviços em relações de trabalho subordinado, cumprindo as recomendações da OIT e da UE. Daí que a pressão para a mudança pudesse ser concentrada na ação da Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT), na expectativa de que, verificando esta os vínculos precários dos advogados em regime de sociedade, resolvesse o problema. Mas se o combate à precariedade se tem feito em diversos sectores de atividade, a advocacia continua a ser o elefante no meio da sala. Todos sabem da existência de falsos recibos verdes na profissão, mas ninguém fala abertamente sobre isso. Nem os partidos, nem os Governos, nem as bancadas parlamentares, nem a própria Ordem dos Advogados. Qual é afinal o problema?

Os limites impostos pelo Estatuto da Ordem dos Advogados, nomeadamente quanto às buscas em escritórios ou sociedades de advogados, ajudam a explicar a inação da ACT. Com exceção desse impedimento legal, não se vê de que forma possa a lei continuar a ser incumprida. É verdade que se tem avançado com o histórico argumento da incompatibilidade da advocacia com o contrato de trabalho. Mas já nem isso é legalmente admissível, visto que o artigo 73.º do Estatuto da Ordem permite que os advogados celebrem contratos de trabalho. Mas, e então?

Que se comece por enterrar o romantismo da profissão que, no nosso ordenamento jurídico e no que à advocacia diz respeito, se desfasou da realidade. Ora, a realidade é a do mercado. E o mercado não teme os melhores. É só preciso deixá-lo funcionar. 

Talvez olhar para trás ajude a perceber. A entrada em cena das sociedades de advogados e a sua generalização cativou os melhores alunos das universidades e proletarizou-os, sem lhes garantir direitos. A OA assegurou as suas receitas com dezenas de cursos de estágio pagos pelos recém-licenciados (e por quotas de 37,50 euros multiplicados por dezenas de milhar) e a CPAS garantiu a sua sustentabilidade graças ao aumento das contribuições por parte de advogados mais jovens que, por sua vez, terão pensões mais baixas e mais tarde. Talvez não seja estranho, por isso, que 72% dos advogados portugueses, em 2017, tenham equacionado mudar de emprego e que 76% estivessem disponíveis para emigrar, segundo o Guia do Mercado Laboral de 2017, da consultora Hays.

Será, então, a solução final esperar que os advogados desistam, face a tantos entraves e ilegalidades, em vez de ser o mercado a selecioná-los? Antes disso, talvez fosse melhor clarificar a legislação e fazê-la aplicar. A resposta parece estar, então, no poder legislativo e na Ordem dos Advogados. Caso contrário, a solução que resta é sempre o recurso à via judicial (sendo que os tribunais da Relação e o Supremo Tribunal de Justiça têm produzido jurisprudência suficiente em defesa dos advogados ilicitamente despedidos), quando a fiscalização o poderia evitar.

O que há por fazer? Três ideias a reter e uma conclusão

1. As reivindicações dos advogados, que convocaram uma manifestação para o dia 26 de janeiro, são em grande medida legítimas e compreensíveis. Não há qualquer equidade ou justiça em cobrar, no mínimo, 243,60 euros a todos os advogados com mais de quatro anos de inscrição na OA, sem olhar aos seus rendimentos – quer aos dos que auferem retribuições fixas (e que, nalguns casos, não chegam aos mil euros brutos), quer aos verdadeiros profissionais liberais (que podem passar mais de um mês sem auferir qualquer rendimento). Se a CPAS foi levada à insolvência, mesmo tendo a advocacia mais jovens contribuintes que reformados beneficiários, tal é, em parte, devido a um regime que favoreceu esse percurso: reformas elevadas, calculadas com base nos anos de maiores descontos. Reequilibrar a CPAS e conferir-lhe maior sentido de justiça passa, então, mais por criar regras de descontos em função dos rendimentos dos advogados e menos por exigir o pagamento das contribuições a quem aufere benefícios como o de maternidade ou de incapacidade temporária. Na CPAS como na Segurança Social, o que está em causa é a sustentabilidade, mas também a solidariedade intergeracional.

2. O regime espanhol, mais até que o francês, responde às necessidades de quem, nesta altura, é advogado por conta de outrem sem ser titular de quaisquer direitos. A advocacia, quando prestada em regime de sociedade de advogados, como associado, pressupõe, efetivamente, a existência de um contrato de trabalho que, com o regime em vigor, não assegura ao trabalhador o direito à proteção no desemprego, ao cumprimento de horários de trabalho, ao pagamento de horas extraordinárias ou à licença de maternidade e paternidade. A situação aparenta ser insustentável: uma advogada-trabalhadora, chamemos-lhe assim, se for mãe, não tem assegurado o direito à licença normal de maternidade, pelo que a entidade empregadora (a sociedade de advogados) pode despedi-la sem consequências (ou não lhe pagar o salário enquanto decidir ficar em casa com o filho). Ao mesmo tempo, a advogada, apesar de ter recebido o benefício de maternidade da CPAS, é obrigada a pagar mensalmente as contribuições, mesmo se não estiver a trabalhar. A ausência de uma solução para casos deste tipo em muito penaliza os seus profissionais.

3. A massificação e a proletarização da advocacia só serão combatidas, por outro lado, se o mercado concorrencial funcionar, de forma a criar condições para que um advogado se possa instalar no mercado sem ter que integrar uma sociedade de advogados ou uma empresa, ou viver exclusivamente do mecanismo de apoio judiciário. A forma como tem funcionado o modelo atual, além de não fomentar uma concorrência efetiva, séria e leal, só tem contribuído para avolumar advogados, para lhes baixar o valor de mercado e para acumular problemas. É, pois, necessário que a regulamentação da atividade se abra aos sinais dos tempos, abrindo portas à publicidade ou assumindo que a profissão pode ser exercida de forma impessoal, nomeadamente por meios eletrónicos, por exemplo.

Concluindo. Em 2017, o debate que importa não pode ficar acantonado numa eventual diminuição do número de vagas nos cursos superiores – cenário que tanto se discute, mas que não é uma solução para o problema. E se em algum sítio é necessário começar, então que se comece por enterrar o romantismo da profissão que, no nosso ordenamento jurídico e no que à advocacia diz respeito, se desfasou da realidade. Ora, a realidade é a do mercado. E o mercado não teme os melhores. É só preciso deixá-lo funcionar. Para gerar ilusões, já bastam as séries televisivas ou a mediatização televisiva dos advogados.

Nuno Gonçalo Poças é advogado e foi assessor no XIX Governo. Escreve no Observador sobre o sistema político e a justiça.

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