Nenhum dos três adeptos do Sporting que pediram ao Tribunal da Relação para afastar o juiz Carlos Delca do processo lhe aponta qualquer interesse pessoal. Nem qualquer motivação que o leve a prejudicar os 44 arguidos suspeitos de, em maio de 2018, terem invadido a Academia de Alcochete e terem provocado ferimentos a jogadores, ao treinador Jorge Jesus e a alguns funcionários. Mas todos os três pedidos — todos já chumbados pelo tribunal superior — pediam que o magistrado fosse afastado do processo, por considerarem que foi não foi imparcial e isento.
Todos tinham, também, um outro elemento em comum: foram apresentados nos momentos em que era suposto começar a instrução do caso, ou seja, avançar com uma espécie de pré-julgamento para decidir se o processo avança ou não para julgamento e com quem. Os dois primeiros incidentes de recusa coincidiram com a primeira data prevista para esta fase processual, no início de março. Por causa deles, a instrução foi adiada, mas os pedidos acabaram recusados pelo Tribunal da Relação de Lisboa. Já o último pedido foi entregue três dias antes da nova data para começar esta fase processual, a 13 de maio. E, mais uma vez, o processo parou — até esta sexta-feira, altura em que o Tribunal da Relação de Lisboa voltou a chumbar o pedido para afastar Carlos Delca.
Neste momento, só cinco dos 44 arguidos se encontram em liberdade, com a mais recente prisão preventiva do líder da claque sportinguista, Mustafá. Mas o prazo máximo da prisão preventiva dos primeiros arguidos presos deverá esgotar-se em setembro, se não houver decisão instrutória até lá. Esta decisão da Relação permite que o processo possa avançar, de novo, para a fase de instrução — isto, claro, se a estes três incidentes de recusa não se seguem outras tentativas de afastamento do magistrado, com novos adiamentos. Afinal, o que têm estes advogados contra o juiz de instrução Carlos Delca?
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A decisão que foi tomada sem ouvir os advogados
O incidente de recusa mais recente contra o juiz de instrução Carlos Delca foi enviado para o Tribunal do Barreiro às 17h29 do dia 10 de maio de 2019, uma sexta-feira. A instrução arrancaria na segunda-feira seguinte e logo na terça, dia 14 de maio, seria ouvido o ex-presidente do Sporting, Bruno de Carvalho. No dia 13, pelas 10h00, os advogados estavam já na sala de audiências, os arguidos tinham sido trazidos das várias cadeias onde estão distribuídos e o Campus da Justiça era já palco da operação policial montada por causa deste processo.
O juiz Carlos Delca acabaria por nem sequer abrir a audiência, entrando na sala e justificando a todos os presentes as suas razões: minutos antes, tinha tido conhecimento do incidente de recusa que o impedia, até decisão do Tribunal de Relação, de fazer qualquer ato no processo — apenas os urgentes. Era o terceiro pedido de afastamento apresentado contra pela por um dos arguidos do processo. Sem grandes alternativas, acabou por adiar a diligência sine die.
O pedido do arguido Tiago Neves, representado pelo advogado Nuno Areias do escritório de João Nabais, foi feito precisamente três dias depois de ter recebido uma resposta a um recurso que enviara ao Tribunal da Relação de Lisboa.
Tiago Neves é descrito na acusação como o adepto que, sob as ordens de Nuno Mendes (Mustafá), comprou várias tochas e levou-as para a sede da Juve Leo, com o propósito de as lançar contra os jogadores para impedir que continuassem a jogar, no encontro de 5 de maio de 2018, em Alvalade, frente ao Benfica. O arremesso de tochas, logo no início do jogo, faria com que a partida fosse interrompida, obrigando mesmo o guarda-redes Rui Patrício a fugir do campo. Estava aberta a guerra que terminaria, depois, na academia de Alcochete, com uma invasão combinada através do Whatsapp.
No pedido enviado para o tribunal superior, a defesa deste arguido focava-se na declaração de especial complexidade do processo, decidida pelo juiz, dando, assim, ao Ministério Público mais tempo para proferir a acusação e, consequentemente, prolongando o período possível de prisão preventiva para os arguidos.
Dizia a defesa que o juiz tomou essa decisão sem ouvir o que todos os advogados do processo tinham a dizer sobre isso, como manda a lei. No incidente de recusa a que o Observador teve acesso, os dois advogados que representam o arguido diziam que o Ministério Público pediu que fosse declarada a especial complexidade do processo a 7 de novembro de 2018, numa altura em que também as medidas de coação aplicadas foram reapreciadas e mantidas. Ora, esta reapreciação das medidas de coação foi enviada por escrito aos advogados e aos arguidos.
Problema: nas notificações recebidas pelos advogados, havia um espaço em branco, logo depois da fundamentação do reexame das medidas de coação, surgindo no final a data e o nome do juiz de instrução. Esse espaço vazio, porém, não aparentava ser o original: perceber-se-ia que tinha sido tapado com um pedaço de papel em branco, no momento em que foram feitas as fotocópias. E isso ficou claro nas notificações que chegaram, na mesma altura, aos arguidos propriamente dito: nesses exemplares, já não havia espaço em branco, mas sim a decisão do juiz sobre o pedido do Ministério Público da especial complexidade. Nesse dia, porém, corria ainda o prazo de dez dias para ouvir o que todas as partes tinham a dizer sobre a declaração de especial complexidade, pelo que a decisão do juiz, por lei, ainda não poderia estar tomada.
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O mesmo arguido acabou por pedir a nulidade desse despacho, mas, quando o fez, já o juiz tinha emitido uma nova decisão, com a data do dia seguinte, 8 de novembro, corrigindo, assim, aquilo que considerou ser um mero lapso.
O arguido recorreu, então, para o Tribunal da Relação, alegando a suspeição do magistrado. Justificou que a decisão do juiz já estava tomada antes de os advogados serem ouvidos, o que inquinava a sua isenção e imparcialidade. “Uma gritante violação” dos direitos constitucionais, sublinhou. “O lapso foi expedir a notificação para os arguidos com o despacho já ali consignado”, lê-se.
Ainda assim, consideravam os advogados que não havia qualquer interesse pessoal do juiz de instrução no processo em causa, ressalvando que não é esse o motivo para pedirem o afastamento do magistrado. As dúvidas da sua imparcialidade surgiam, sim, pelo facto de ter, alegadamente, decidido antes de ouvir a outra parte, o que “constitui um ato processual por ação grave e sério que faz gerar desconfiança sobre a sua imagem e sobretudo da justiça (isenção e imparcialidade) e que constitui fundamento de recusa”.
Os juízes desembargadores, porém, não concordaram e chumbaram o pedido. A nova data para o início da instrução deverá ser conhecida nos próximos dias.
O tempo que o juiz demorou a responder
Antes deste pedido, e do primeiro agendamento para início de março da instrução, já o arguido Afonso Ferreira tinha tentado afastar Carlos Delca por via do seu advogado, Miguel Matias. Razão: o magistrado teria ignorado uma série de requerimentos por ele apresentados.
Afonso Ferreira é tido como um dos adeptos que ameaçaram Acuña e que se juntaram ao plano do ataque à Academia de Alcochete.
Um dos requerimentos que a defesa alega terem sido ignorados data de 16 de novembro de 2018 e pedia o reexame da prisão preventiva aplicada. A defesa diz que não obteve qualquer resposta e que as medidas de coação foram, depois, reapreciadas em conjunto, de forma “tabeliónica”, tratando os arguidos de forma igual, sem cuidar de apreciar as medidas concretas de cada um.
O arguido queixa-se, também, de não ter sido chamado a pronunciar-se sobre o pedido de constituição de assistente do Sporting no processo e de lhe ter sido recusada a abertura de instrução, por ter sido pedida fora do tempo. Ainda assim, diz o advogado, a 11 de fevereiro deste ano de 2019, o juiz fez um despacho a responder a várias questões suscitadas e, mesmo assim, nada disse sobre os seus pedidos. Considera a defesa que não ficou garantido o direito de defesa de Afonso Ferreria.
Também neste incidente de recusa o advogado sublinha que não está em causa a idoneidade do juiz.
Ao Tribunal da Relação, o próprio magistrado elencou o trabalho que tinha em mãos para ter optado por reapreciar todas as medidas de coação em conjunto e verter essas decisões num mesmo documento. Carlos Delca sublinha que, em janeiro, despachou mais de uma centena de processos de instrução, fora interrogatórios, debates instrutórios e inquirições a testemunhas noutros casos. O volume de trabalho foi tal que o juiz acabou mesmo por pedir à juíza presidente da comarca de Lisboa que colocasse alguém a ajudá-lo. A juíza responsável decidiu auxiliá-lo com mais uma funcionária judicial e uma juíza que se desloca ao Barreiro às segundas e terças-feiras.
O juiz, na sua defesa, até admite que possa ter demorado mais tempo a responder aos requerimentos do que o que era esperado — afirmando que respondeu — , mas também ele tinha um serviço “muito superior àquilo que também seria aceitável”. Defendeu também os seus dez anos de trabalho como juiz de instrução, em que se limitou a “aplicar estritamente a lei”
Em março de 2019 chegaria a decisão do Tribunal da Relação de Lisboa: o advogado podia ter pedido a nulidade do despacho conjunto relativamente às medidas de coação. Por outro lado, “pela abrangência do processo em que se insere o presente incidente, pela quantidade de intervenientes processuais que se encontram em prisão preventiva e pela quantidade de incidências processuais que são submetidas” ao juiz Carlos Delca, os juízes desembargadores consideraram ” humanamente impossível manter um ritmo atualizado, diário e em tempo real” de junção e apreciação imediata dos requerimentos.
As razões invocadas pela defesa não permitiram, por isso, formular um juízo de desconfiança ou suspeição quanto à imparcialidade e isenção do juiz e não chegaram para fundamentar o pedido. Por isso, este tribunal superior não afastou o magistrado do caso.
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O juiz que apareceu aos jornalistas — e que não devia
O advogado Pedro Madureira, que representa o arguido Valter Semedo, também próximo de Mustafá e, alegadamente, do plano traçado para atacar os jogadores, foi o primeiro a tentar travar a presença do juiz no processo, por ter sido ele quem indiciou os arguidos dos crimes de terrorismo e decidiu pela medida de coação mais grave.
Também este advogado deixou claro que não se tratava de colocar a dignidade pessoal e profissional do juiz em causa, mas invocou outras razões para alegar a parcialidade do homem que tem em mãos o processo.
No incidente de recusa, o advogado que considerava “estranho” que tivesse sido o juiz a entregar pessoalmente à comunicação social, no Tribunal do Barreiro, os comunicados que resumiam horas e números de interrogatórios, nos dias em que os arguidos foram ouvidos para aplicação de medidas de coação. O advogado considerava que estas condutas violavam o dever de reserva de um juiz e demonstravam “um sentimento de autoprojeção”.
Neste caso, Carlos Delca defendeu-se lembrando que, desde o início dos interrogatórios, “atenta a repercussão do mesmo e ao acompanhamento pela comunicação social”, reuniu-se com a juíza presidente da comarca e com o coordenador do tribunal para decidirem como agir. Que sempre disse aos jornalistas para não captarem imagens suas e que eles respeitaram.
Também ressalvou que não foi apenas ele que entregou os comunicados, mas também houve momentos em que foram os próprios seguranças ou a secretária da justiça que o fizeram. E com uma razão: impedir qualquer fuga de informação ou informação falsa.
Quanto ao dia em que decidiu colocar os arguidos em prisão preventiva, Carlos Delca explica que entregou um comunicado com essa informação à secretária de justiça do tribunal. E que pediu-lhe que esperasse 20 minutos antes de o divulgar — pensando, assim, ter tempo para ler as 19 páginas da decisão aos advogados e arguidos em audiência. Mas aconteceu uma situação imprevista e a informação das medidas de coação acabou por ser dada à comunicação social ainda antes de o magistrado acabar de as divulgar aos visados. Na altura, pediu desculpa aos advogados e eles compreenderam, garante, explicando que nunca violou o dever de reserva
A 28 de março viria a decisão do Tribunal da Relação de Lisboa: a interação com a comunicação social não suscita qualquer suspeição e apenas se destinou a preservar a reserva do processo, sem pôr em causa o direito à informação. Mais: o simples facto de um juiz ter tomado decisões no processo antes da fase de instrução — como, por exemplo, a determinação de medidas de coação — não pode significar, por si, que violou a sua imparcialidade.
Os juízes desembargadores lembram que o facto de o juiz que vai fazer a instrução do processo ser o mesmo que, no início, indiciou os arguidos dos crimes de terrorismo não é contrário à lei. A lei só impede o juiz inicial de intervir na fase de julgamento e não nesta fase de instrução.
Nos dois incidentes de recusa apresentados contra o juiz Carlos Delca, o Tribunal da Relação de Lisboa demorou cerca de um mês a decidir. No terceiro precisou de apenas duas semanas.