Índice
Índice
Uma fonte do FSB, os serviços secretos russos, relatou ao jornal Moscow Times qual foi o briefing daquelas reuniões que tiveram lugar nos últimos dias, sobre os preparativos para o funeral de Alexei Navalny: “A tarefa era a de prevenir uma fotografia semelhante à do adeus a Sakharov”.
O funeral de Andrei Sakharov, o físico soviético que se tornou uma figura política pelos direitos humanos no seu país — foi galardoado com o Nobel da Paz em 1975 —, foi um evento marcante dos últimos anos da União Soviética. Dezenas de milhares de pessoas saíram à rua e ficaram horas em filas para prestar uma última homenagem ao dissidente entretanto regressado, graças aos ventos da glasnost de Mikhail Gorbachev.
Esse era precisamente o ponto que separa fundamentalmente o último adeus a Sakharov e o que se antecipava para Navalny: enquanto Gorbachev e outros membros do Politburo foram ao funeral do físico, ninguém esperava que Vladimir Putin, que se recusava a mencionar o nome de Navalny em público, aparecesse na cerimónia do seu principal opositor, que morreu há duas semanas numa prisão no Ártico.
Mas o Kremlin compreendeu como o funeral de Navalny — envenenado com novichok em 2020, preso em 2021 depois de regressar à Rússia e atualmente a cumprir uma longa pena por “extremismo” — tinha potencial para galvanizar os russos que se opõem ao seu regime da mesma forma que o de Sakharov fez contra o regime soviético. “O funeral de Navalny pode produzir um oceano incontrolável de pessoas a denunciarem Putin pela sua corrupção, autoritarismo e guerra cruel na Ucrânia”, notou a historiadora russa Ani Kokobobo num artigo publicado na véspera da cerimónia na revista Time. “Um rio destes pode ser difícil de controlar e refletiria um ‘Estado da Nação’ real, que difere dramaticamente dos espetáculos patrióticos projetados pela propaganda russa”.
[Já saiu o primeiro episódio de “Operação Papagaio”, o novo podcast plus do Observador com o plano mais louco para derrubar Salazar e que esteve escondido nos arquivos da PIDE 64 anos. Pode ouvir também o trailer aqui.]
Era isso que Vladimir Putin temia e foi exatamente isso que aconteceu. Milhares de pessoas saíram à rua em Moscovo esta sexta-feira para prestar uma última homenagem a Alexei Navalny. Para além do seu nome, as palavras de ordem que gritaram revelam, acima de tudo, a oposição ao Kremlin: “Não tiveste medo, nós não temos medo”, “A Rússia será livre” e “Tragam os soldados para casa” foram alguns dos gritos que se ouviram ao longo do dia nas ruas da capital russa.
Cerimónia na igreja em menos de meia hora, com a maioria a não poder tocar no caixão
Até à hora do início do funeral (14h em Moscovo, 11h em Lisboa), contudo, ninguém tinha ainda a certeza se haveria sequer cerimónia. Os últimos dias haviam sido marcados pela viagem da mãe do político, Lyudmila, pelo círculo Ártico, à procura do corpo do filho em várias morgues. A certa altura, disse, foi chantageada: só lhe entregariam o corpo caso aceitasse fazer um funeral privado.
Por momentos, muitos ainda pensaram que o medo do Kremlin de um funeral como o de Sakharov era tanto que o regime optaria por fazer o mesmo que fez a Anatoly Marchenko, o último prisioneiro político soviético a morrer na prisão — enterrá-lo perto da prisão periférica onde estava a cumprir pena, bem longe da capital e das multidões.
Acabou por não ser assim no caso de Navalny, mas nem por isso foi fácil. Nos últimos dias, segundo a família, a maioria das agências funerárias de Moscovo não quiseram fazer o serviço, por terem sido alvo de ameaças. O padre da igreja Ícone de Mãe de Deus Alivia as Nossas Mágoas, no bairro de Maryino (onde Navalny viveu durante anos), só terá aceitado celebrar as exéquias porque o político frequentou durante anos aquela paróquia, tendo até batizado o filho mais novo ali — foi isso que divulgou uma jovem que conseguiu participar na cerimónia dentro da igreja e que falou com o jornal independente Meduza.
Enquanto lá dentro se juntavam menos de 100 pessoas, a maioria familiares como os pais e os sogros de Navalny, lá fora a multidão ia crescendo. Quando a cerimónia religiosa teve início, a fila para tentar entrar na igreja já tinha mais de um quilómetro e meio de comprimento, segundo a edição russa da BBC.
De nada lhes valeu esperar ao frio, porém. Menos de meia hora depois, a cerimónia estava concluída. O académico especializado em religião Sergei Chapnin denunciou no Facebook que a igreja teria recebido ordens diretas do Patriarcado de Moscovo para encurtar ao máximo o rito.
O jornalista Javier G. Cuesta, do El País, foi um dos poucos que conseguiram entrar na igreja e relatou que apenas “a mãe e outros poucos familiares” tiveram autorização para tocar no caixão. “Enquanto a mãe se despedia do filho, vários funcionários começaram a levar féretro entre gritos de indignação dos que assistiam”, escreveu. “‘Isto é satanismo, é imoral, na nossa cultura é uma falta de respeito absoluta para com o falecido’, clamava uma mulher.”
À saída, vários dos que esperavam cá fora se aproximaram dos pais de Alexei Navalny. “Obrigado pelo vosso filho”, diziam alguns a Lyudmila e Anatoly. “Perdoem-nos”, diziam outros. O mesmo pedido que alguém deixou escrito na base do caixão de Sakharov durante o funeral de 1989, como notou na altura o correspondente do Washington Post: “Andrei Dmitrievich, perdoa-nos.”
Um cortejo com palavras de ordem e um enterro ao som de Sinatra
O cortejo fúnebre que se seguiu até ao cemitério de Borisov, no sul de Moscovo, foi o momento em que o funeral de Navalny deixou de ser apenas privado. Centenas de pessoas acompanharam o carro funerário, enquanto outras atiravam flores à sua passagem. Os gritos com o nome de Alexei Navalny repetiam-se, a par de formulações como “Os heróis não morrem” e, também, “Não à guerra” e “Rússia sem Putin” — a frase popularizada pelo opositor.
Tendo em conta as apertadas medidas de segurança que vigoravam, com agentes policiais por todo o lado, eram afirmações arriscadas. Quaisquer manifestações a favor de Navalny em público podem levar à detenção, já que por lei podem significar apoiar uma “organização extremista”; as críticas públicas à guerra da Ucrânia também são proibidas e já levaram a penas de prisão de mais de 20 anos. Antes da cerimónia, o porta-voz do Kremlin Dmitry Peskov tinha mesmo avisado que “as manifestações não autorizadas não são permitidas”.
E as medidas apertadas continuaram quando o carro funerário chegou ao cemitério. A família e amigos próximos de Alexei Navalny voltaram a despedir-se, antes de o caixão ser fechado, mas os portões mantiveram-se fechados para o público em geral.
Alexei Navalny foi enterrado enquanto uma pequena orquestra tocava a sua canção preferida — “My Way”, de Frank Sinatra. A seguir, os músicos tocaram parte da banda sonora de Exterminador Implacável 2, o filme preferido do político. “Ele era um homem simples”, notava na emissão da sua Fundação o velho amigo Leonid Volkov — que, à semelhança da mulher, filhos e irmão de Navalny, não foi ao funeral em Moscovo pelo risco de ser detido. “Mas isto afinal faz mais sentido do que nunca no adeus. Ele sai à sua maneira. Sem estar quebrado, sem estar perdido, sem ter sido derrotado”.
Lá fora, na multidão havia quem dissesse “Deixem-nos despedirmo-nos!” E, talvez temendo que o barril de pólvora explodisse, foi exatamente isso que aconteceu: as autoridades russas permitiram que todos os que ali estavam pudessem entrar, um a um, no cemitério de Borisov para se despedirem do corpo de Navalny — muito para lá da hora de fecho oficial.
“Efeito Sakharov” limitado nos media estatais, que ignoram funeral. Kremlin quer evitar “acontecimento político”
“O Kremlin quer evitar chatices antes das eleições”, dizia ao Wall Street Journal o analista Abbas Gallyamov para justificar esta postura. “Isto é um funeral. Se o Kremlin começar a agir como se fosse um acontecimento político, então torna-se mesmo num.”
Assim se explica também que, apesar de todas as afirmações públicas de participantes que habitualmente valem penas de prisão, o número de detidos em todo o país (cerca de 50, segundo a organização OVD-Info) foi muito inferior ao que já aconteceu noutros momentos (400 nos dias a seguir à morte de Navalny, por exemplo).
O que não significa, contudo, que não haja espaço para que a repressão se venha a consumar de outras formas, nos próximos dias. Antes do funeral, já a Fundação de Navalny partilhava informação para que os que tencionavam ir à cerimónia tivessem acesso a apoio jurídico. Como notou a historiadora Ani Kokobobo na Time, outros funerais públicos no passado da Rússia dão o mote: no de Boris Pasternak, por exemplo, “estudantes recitaram muitos dos [seus] poemas banidos noite dentro, enquanto o KGB tirava fotos daqueles que estavam a assistir”.
E se para o Kremlin foi difícil conter o “efeito Sakharov” ao vivo, não é de todo difícil garantir que ele não se expande para lá de Moscovo. O principal telejornal da Rússia não teve, esta sexta-feira, uma única menção ao funeral de Navalny. “Havia duas opções [para os media]”, esclareceram fontes internas do Kremlin ao Meduza. “Ou não cobriam o tema de todo ou publicavam notícias a dizer que ele foi enterrado, listando todos os seus casos judiciais e condenações, e enfatizando que estiveram embaixadores estrangeiros no funeral sem mencionar a adesão popular”.
Apesar disso, quase 270 mil pessoas assistiram à emissão feita pela Fundação de Navalny, com outras 150 mil a assistirem ao stream da televisão russa independente TV Rain, de acordo com dados fornecidos pelo YouTube ao New York Times. O que indicia que, para além dos milhares que estiveram hoje nas ruas de Moscovo, outros russos que ficaram em casa também fizeram questão de acompanhar o momento.
À noite, enquanto muitos ainda entravam no cemitério de Borisov e se juntavam junto a memoriais improvisados com o rosto de Navalny, outros decidiam assinalar o momento de outra forma: no canal de Youtube de Frank Sinatra, no vídeo para a música “My Way”, centenas de comentários começaram a aparecer com referências a Navalny. Quase todos estavam escritos em russo; a grande maioria incluía a palavra “Obrigado”.