No décimo primeiro andar do edifício Europa, onde está instalado o gabinete do presidente do Conselho Europeu, em Bruxelas, mesmo antes dos trinta minutos de entrevista que concedeu ao Observador, António Costa vai conhecendo os corredores e alguns dos funcionários que com ele vão trabalhar nos próximos dois anos e meio. É a primeira entrevista que dá desde que assumiu funções, o que aconteceu oficialmente este domingo e que assinalou com uma visita à Ucrânia.
Fala pela primeira vez da recente posição de Volodymyr Zenlensky, que assumiu a possibilidade de aceitar um acordo de cessar-fogo se a parte do país que não está ocupada pela Rússia ficasse sob a alçada e protegida pela NATO. O novo presidente do Conselho Europeu defende que “só a Ucrânia tem legitimidade para definir quais são os termos em que está disponível para negociar”, mas, ao mesmo tempo, não esconde alguma cautela: aceitar que um país use a força para alterar fronteiras “é um precedente que conduziria o mundo inteiro para o caos”.
Quanto à relação com Donald Trump, António Costa reconhece que obrigará a adaptações de parte a parte, lembra que o Estados Unidos, em virtude do “défice comercial significativo” que têm, estão obrigados a negociar com os parceiros europeus, assume que a conversa, já pedida com o Presidente dos Estados Unidos é prioritária, e tenta relativizar. “Há que ouvir quais são as ideias em concreto do Presidente Trump”, nota.
Nesta entrevista, o socialista fala também sobre o plano nacional. Promete manter-se distante de tudo o que são atividades partidárias, garante que não tem qualquer interesse no cargo de Presidente da República, relativiza o controverso artigo de opinião que escreveu e que foi genericamente interpretado como um ataque a Pedro Nuno Santos — intenção que Costa nega — e comenta ainda o seu processo judicial em que se viu envolvido. “Não temo nada. Quem não deve, não teme. Estou tranquilo e respeito as instituições”, atira.
“Trump? É de muita utilidade começarmos a falar”
Na sua intervenção inicial, quando falou na necessidade de “autonomia na defesa e segurança” na União Europeia, não mostrou já pouca fé em relação a Donald Trump. Até pelas ameaças que têm sido feitas pelo Presidente eleito dos EUA em matéria de defesa.
Essa foi uma opção que a União Europeia e os países europeus fizeram bastante antes das eleições americanas e que se tem traduzido num reforço contínuo dos investimentos em defesa, e que acelerou naturalmente a partir da guerra desencadeada pela Rússia na Ucrânia. Não é um resultado destas eleições americanas.
Esta necessidade da União Europeia ter uma estratégia de defesa própria e autónoma dos Estados Unidos, menos dependente, não é uma reação à eleição do Presidente norte-americano?
A opção de reforçar o pilar europeu da NATO, de desenvolver em conjunto maiores capacidades de defesa, de utilizar esse investimento em defesa como um bom instrumento para reforçar a nossa competitividade, foi assumida. Já tinha sido assumida pela União Europeia, pelos Estados-membros da União Europeia, teve expressão no próprio relatório de Mário Draghi, e tudo isto é anterior à eleição do Presidente dos EUA. Aliás, o que ele tem dito não é novo relativamente ao que tinha dito no ano passado. Desde a última vez em que o Presidente Trump participou num conselho do Atlântico Norte até ao dia de hoje, houve uma grande evolução daquilo que são os investimentos em despesa por todos os Estados. No conjunto, os Estados-membros da União Europeia já ultrapassam os 2%, e creio que todos, com exceção de dois, convergiram para o objetivo dos 2%. Neste momento, só sete é que ainda não estão nos 2%.
E isso já será suficiente para Donald Trump ter uma perspetiva diferente relacionada à participação europeia?
As últimas estimativas mais recentes apontam que o próximo Conselho do Atlântico Norte há-de fixar a fasquia que tinha sido definida em 2014, em Glasgow, num valor superior aos 2%, e seguramente em torno dos 3% ou acima dos 3%. Esse é um esforço que os países europeus vão ter de continuar a fazer nos próximos anos. A guerra na Ucrânia tornou bastante evidente que há uma ameaça na Europa que não era antecipável com esta intensidade.
Já disse que quer falar urgentemente com Donald Trump, que há essa necessidade. Ainda não o fez em nenhum momento?
Não, estão os canais próprios a tratar de marcar a reunião.
Será uma reunião presencial?
Provavelmente, por facilidade de ambos, é provável que seja por telefone.
E quem é que terá a dianteira? É o presidente do Conselho Europeu?
Sim, já pedimos a conversa.
Será quando? Quando tomar posse ou ainda antes? Tem essa urgência?
Não é uma questão de urgência. É bom falarmos. Parte das medidas que o Presidente Trump tem em mente já têm vindo a concretizar-se, portanto acho que é de muita utilidade começarmos a falar.
Antes da tomada de posse [de Trump]?
Sim, sim.
E o que é que tem a União Europeia para dizer ao Presidente dos Estados Unidos? Porque é que há essa necessidade de começar já por aí?
Acho que há que ouvir quais são as ideias em concreto do Presidente Trump e, por outro lado, também explicar o nosso ponto de vista e ver como é do interesse mútuo dos países da União Europeia e dos Estados Unidos termos uma relação de parceria, de amizade, que se deve manter. Quando há problemas, eles discutem-se e procuram-se soluções.
Mas também já disse que conhece as ideias principais do Presidente Trump e nomeadamente a relação à União Europeia. Tem esperança que ainda possa mudar alguma coisa?
Há duas dimensões que têm sido bastante referidas como sendo dois temas separados, mas que estão de alguma forma interligados. Uma tem a ver com o défice comercial significativo que os Estados Unidos têm e que tem sido já objeto de conversa entre o Presidente Trump e a Presidente da Comissão Europeia, visto que a Comissão é que tem competências em matéria de política comercial. O segundo tema tem a ver com as questões relativas à Defesa, relativamente à NATO e também relativamente ao apoio dos EUA à Ucrânia. Os dois temas estão relativamente correlacionados, porque se houver um grande aumento de tarifas que tenha um impacto muito negativo na nossa economia, todo o esforço de investimento em Defesa torna-se já mais difícil.
É um aviso aos Estados Unidos?
Não, não é um aviso. É simplesmente a constatação de uma realidade. A articulação entre as duas dimensões deve ser feita. A presidente da Comissão já fez, aliás, propostas públicas para encontrar outras formas de tratar o tema do défice comercial que não passem por um aumento de tarifas. A mais recente declaração do Presidente Trump tem uma margem muito significativa, como disse a presidente do BCE, entre 10% e 20%. Acho que temos de falar e ver como é que a aliança entre os Estados Unidos e os países europeus prossegue, se reforça. É seguramente do interesse comum.
“O otimismo não era de São Bento, era meu. Está comigo”
Tem à mesa do Conselho Europeu um elemento, Viktor Órban, que tem uma relação próxima com Trump, e até já admitiu usar essa figura como ponte com a Casa Branca, em algumas conversas que sejam necessárias ter daqui para a frente. Mas à mesa do Conselho Europeu, este mesmo líder pode levantar outros problemas em relação, por exemplo, à ajuda à Ucrânia. Vai conseguir que Órban não bloqueie um reforço?
Até agora, no apoio direto à Ucrânia, no momento decisivo, nunca houve um bloqueio por parte de nenhum Estado-membro. Há, relativamente ao financiamento dos outros Estados-membros, pela facilidade europeia de Defesa, um bloqueio no contexto das negociações que a Hungria mantém com a Comissão Europeia sobre as suas próprias verbas e a pressão que existe sobre os outros Estados-membros para serem reembolsados no apoio que dão à Ucrânia. Não afeta diretamente o dinheiro que é transferido para a Ucrânia, afeta a capacidade dos outros Estados-membros continuarem a prosseguir a sua própria gestão orçamental, no apoio à Ucrânia e em todas as outras verbas onde os seus Orçamentos, todas as outras despesas que os Orçamentos financiam.
Está convencido de que vai conseguir essa unidade para conseguir continuar a avançar nesse reforço?
Não é um milagre que me seja pedido. A história da União Europeia é uma história de sucessivas ultrapassagens de obstáculos, de dificuldades, de bloqueios e de encontro de vontades a 27.
Viktor Órban pode ser um bloqueio por um lado e um apoio pelo outro? É isso?
Sem especulação sobre o futuro, só me posso apoiar relativamente àquilo que é a realidade. No passado, nas múltiplas decisões que a União Europeia teve de tomar relativamente ao apoio humanitário, ao apoio financeiro, ao apoio militar à Ucrânia, desde 24 de Fevereiro de 2022 até aos dias de hoje, foi sempre possível a União Europeia tomar uma decisão. Que me recorde, houve uma vez que tivemos que adiar 15 dias a essa decisão.
Trouxe o tal otimismo de São Bento para o edifício Europa?
O otimismo não era de São Bento, era meu. Está comigo. Mas isto não é otimismo; só estou a descrever o que aconteceu no passado.
Mas a pergunta é em relação ao futuro.
O que estou a dizer, tendo em conta que no passado nunca houve uma situação de bloqueio no apoio à Ucrânia, não vejo razão para depois de dois anos, onde as coisas correram assim, passem agora a correr de outra forma.
“É a Ucrânia quem tem legitimidade para dizer quais são termos da paz”
Há três dias o Presidente da Ucrânia, com quem se encontrou este domingo, disse que estava disposto a assinar um acordo de cessar-fogo se a parte do país que não está ocupada pela Rússia ficasse sob a alçada da NATO nos próximos tempos…
[Interrompe] Se tivesse uma carta de convite para adesão à NATO, explicando que se podia ter uma solução, como ocorreu durante muitos anos com a Alemanha, onde o mecanismo do artigo 5.º só atuava relativamente a uma parte do território da Alemanha.
Houve uma abertura que não tinha havido até agora da parte de Zelensky, uma espécie de cedência, pelo menos por agora, mesmo que seja temporária.
Não é cedência. É não pré-condicionar a desocupação à disponibilidade para um cessar-fogo.
Mas é “recompensar o invasor” e “capitular”, coisas que no seu discurso inaugural disse que não podiam acontecer agora?
Só a Ucrânia tem legitimidade para definir quais são os termos em que está disponível para negociar, seja um cessar-fogo, seja um armistício, seja um acordo de paz. Cada um de nós pode ter a sua própria ideia, mas o que conta mesmo é que a única entidade que tem a legitimidade para tomar uma decisão é a Ucrânia. Temos de respeitar esse direito da Ucrânia, que é um Estado soberano. Como todos os Estados soberanos, é a Ucrânia quem tem o direito a determinar em que condições faz a guerra e em que condições aceita a paz. Do ponto de vista da comunidade internacional, há uma coisa que temos que ter noção: esta guerra ocorre no solo ucraniano. Desde logo uma ofensa ao direito à soberania da Ucrânia, o direito da Ucrânia à integridade territorial, à estabilidade das suas fronteiras internacionalmente reconhecidas. Quando se cede nos princípios do direito internacional, isso transforma-se numa ameaça para o conjunto da comunidade internacional. É por isso que toda a comunidade internacional não pode ser alheia àquilo que se passa relativamente à Ucrânia. Aceitar o precedente que um país, pela força, pode alterar as suas fronteiras, que um país, pela força, pode ocupar um território de um outro Estado soberano, é um precedente que conduziria o mundo inteiro para o caos.
Não é esse precedente que está a ser aberto com este acordo que Zelensky admitiu?
É preciso ter em conta os precisos termos do que é que o Presidente Zelensky disse. A ideia fundamental do Presidente Zelensky é que não podia aceitar um cessar-fogo, porque o cessar-fogo era simplesmente dar mais tempo, não resolveria a questão de fundo, e daria simplesmente mais tempo à Rússia para se reequipar, se rearmar, se reforçar, treinar novos soldados, para mais tarde poder retomar a guerra. Era uma ameaça à segurança do futuro da própria Ucrânia. O que ele agora diz é o seguinte: ‘Estou disponível para um cessar-fogo, desde que, em contrapartida, a NATO me garanta a segurança do território ainda não ocupado’. Diz que se eles ganharem tempo para se rearmar, para se reforçarem, ele, por outro lado, recupera garantias, aumenta as suas garantias de Defesa relativamente a um ataque futuro.
Ouça aqui a entrevista na integra em podcast.
Isso do ponto de vista do presidente do Conselho Europeu é aceitável?
O Presidente Zelensky deixou também claro que isto não significava nem abdicar do reconhecimento pela Ucrânia da cedência de parte do território, nem a aceitação da alteração das suas fronteiras. Disse que aceitaria como uma situação de um estado provisório até haver uma solução definitiva.
Portanto, só é aceitável se for provisório, é isso?
O presidente do Conselho Europeu não tem de aceitar ou deixar de aceitar. É a Ucrânia — e só a Ucrânia — que tem legitimidade para dizer quais são os termos da paz.
Mas a questão é se isto é “capitulação”.
Ouço muitas pessoas dizerem que a guerra só continua por teimosia da Ucrânia. Ora, a guerra começou por uma agressão da Rússia e continua por agressão da Rússia. É preciso perceber-se que a Ucrânia não pode aceitar um cessar-fogo ou qualquer outra solução que comprometa uma paz que seja justa e que seja duradoura. Agora, a situação de países manterem incerteza e não reconhecerem mutuamente as suas fronteiras, isso há centenas de casos em todo o mundo. Só nós e a Espanha temos pelo menos dois casos.
Há dois anos, numa visita à Ucrânia como primeiro-ministro português, alertou para o tempo que leva à adesão à União Europeia e recordou que Portugal levou nove anos. Zelensky não gostou muito do que ouviu na altura. Agora levou consigo a comissária do alargamento à Ucrânia e já defendeu a aceleração dos trabalhos para o alargamento no geral. Mudou de ideias? E qual é o calendário que desejava para a adesão da Ucrânia?
Não, não mudei de ideias. Há dois anos alertei contra falsas expectativas que estavam a ser criadas, tendo dito que apoiaríamos a adesão — e apoiámos a adesão desde o primeiro dia. Agora, não há nada pior do que criar falsas expectativas, porque quando as expectativas frustram, o efeito ricochete é absolutamente dramático. Acho que todos estamos a fazer o nosso trabalho. O último relatório da Comissão Europeia é francamente positivo sobre o trabalho extraordinário que a Ucrânia tem vindo a fazer de implementação das reformas, mesmo em contexto de guerra. E a ambição que temos é que no próximo semestre possamos abrir os dois primeiros clusters de negociação.
“Direita populista no Conselho Europeu? Respeito por igual todos os membros”
Em França e na Alemanha, dentro do Conselho Europeu, as crises estão a ser amplamente aproveitadas pela extrema-direita. Teme vir a presidir a um Conselho onde duas potências europeias que são decisivas, como estas duas, tenham líderes da direita populista?É o seu pior pesadelo?
Vivemos, felizmente, em 27 democracias onde os cidadãos ditam os resultados eleitorais. E os resultados eleitorais são muito diversos. Às vezes há ciclos onde o predomínio é de uma força política, há ciclos onde o grau de fragmentação é muitíssimo elevado… Nunca no Conselho Europeu houve tantos grupos políticos como existem desta vez, mas isso é fruto da dinâmica da democracia e acho que a democracia nunca é de temer.
Em França está aberta uma crise política, pode haver uma moção de censura e novas eleições. Se houver um governo de Le Pen, como será a relação com a França a partir daí?
Nós temos que nos relacionar com cada um dos Estados-membros da União Europeia, independentemente de quem é a força política que circunstancialmente está no poder nesse país. Somos democracias. Ninguém chegou ao governo nas nossas democracias sem ser por via legítima, democrática, por escolha dos seus cidadãos. Nós somos uma Europa dos cidadãos e que tem que respeitar a escolha dos cidadãos. Portanto, temos que nos relacionar com qualquer governo, independentemente de qual é a sua formação política. Tenho a experiência de ter sido primeiro-ministro de um país também e de algumas pessoas acharem que o apoio político que permitiu a formação daquele governo não correspondia aos cálculos adequados designadamente para assegurar e cumprir os nossos compromissos internacionais em matéria de finanças públicas. A verdade é que não só a prática demonstrou que conseguimos os melhores resultados de sempre em matéria de finanças públicas saudáveis. Portanto, como já passei pela experiência, nessa visão de alguns acharem que temos de opinar ou condicionar a nossa ação em função da escolha democrática dos cidadãos, o meu entendimento é o contrário. Temos mesmo que respeitar aquilo que é a decisão dos cidadãos. No caso concreto que está a colocar, quem representa a França no Conselho Europeu é o Presidente da República.
Emmanuel Macron não vai durar sempre à frente do país.
Também o posso testemunhar. A primeira vez que me sentei no Conselho Europeu, quem representava a França era o Presidente François Hollande. E depois o Presidente François Hollande cessou o seu mandato e foi substituído por Emmanuel Macron.
Parece não haver um sucessor tão óbvio, não é?
Tenho muita humildade e confio nos franceses para escolherem o seu Presidente.
Estava a recordar os seus tempos em que esteve à frente do governo. Nessa altura, também foi um primeiro-ministro que definiu como linha, em relação às forças da direita populista, o tal “não passarão”. Daí a questão agora sobre a gestão de trabalhos no Conselho Europeu.
Mas há uma grande diferença entre ser o primeiro-ministro e, portanto, ter a legitimidade para escolher com que maioria quero ou não formar. Outra coisa é o Conselho Europeu, que tem a sua composição definida nos tratados e segundo a qual nós não escolhemos quem se senta à mesa. Quem escolhe são os cidadãos de cada um dos estados-membros. Por isso é que insisto muito nesta ideia: quando se diz ‘ah, Bruxelas decidiu’; Bruxelas não decide nada. Decide-se em Bruxelas, mas quem decide em Bruxelas são os representantes direta ou indiretamente escolhidos pelos cidadãos. Porque a Comissão propõe, e depois quem decide fá-lo num processo de co-decisão, pelo menos nas questões fundamentais, entre o Parlamento Europeu, cujos deputados são diretamente eleitos pelos cidadãos, e o Conselho, onde todos os Estados são representados pelos respetivos governos — que foram diretamente escolhidos pelos cidadãos. Portanto, essa legitimidade é a que está lá. Não escolho quem está no Conselho Europeu.
Tem de lidar e tentar consensos.
Respeito por igual todos os membros porque eles representam a escolha democrática dos seus Estados.
A questão não era tanto pelo respeito, era mais pela gestão dessas dinâmicas.
A gestão das dinâmicas tem de se fazer em função da composição do Conselho, em função da composição do Conselho Europeu.
Entrou no cargo a prometer mudar formas de relacionamento com a Comissão — que quer que seja mais estreito – e de contacto também com os líderes da União Europeia. Como estava a acontecer com Charles Michel não podia continuar? Sobretudo a difícil relação com a Comissão.
Não vou falar do passado, vou falar do presente. Acho que ontem em Kiev demos uma excelente demonstração do que é trabalharmos em conjunto, porque pela primeira vez o Presidente do Conselho Europeu viajou com a Alta Representante, com a comissária para o Alargamento, e fizemos uma visita conjunta a um país candidato, para reafirmar o apoio incondicional da União Europeia em todas as dimensões. Hoje [esta segunda-feira], vou ter uma reunião com a Presidente do Parlamento Europeu e com a Presidente da Comissão Europeia para testemunhar esse compromisso conjunto de cooperarmos. Como disse no meu discurso, temos várias instituições, mas somos uma só União Europeia. Só juntos é que falamos em nome da União Europeia e agimos em nome da União Europeia. Essa é a forma coordenada que temos de fazer. Se é novo, mais vale tarde do que nunca.
“Não temo nada. Quem não deve, não teme”
Que marca é que quer deixar neste mandato e tem a expectativa de que ele possa ser renovado? É essa a sua vontade também?
Não vivo obcecado com marcas e este é o segundo dia do meu mandato. Para já, estou focado e a minha prioridade é cumprir bem este mandato. No final, os membros do Conselho Europeu avaliarão. Os objetivos estão definidos na carta estratégica que tive a oportunidade de reafirmar agora no meu discurso. Tem que ver com os valores, tem que ver com a prosperidade, tem que ver com a paz.
E quanto à renovação de mandato por mais dois anos? É uma coisa que tem acontecido, espera que isso também aconteça no seu caso?
Estou no segundo dia do meu mandato. Não vou começar a falar do final do meu mandato. Os mandatos são simples: ou são bem desempenhados ou são mal desempenhados e no final os eleitores avaliam. Neste caso, os 27 estados-membros avaliarão e tomarão a sua decisão.
Há um mês o novo Procurador-Geral da República disse que António Costa continuava a ser investigado na Operação Influencer, que esteve na origem da queda do seu Governo. É uma sombra no seu mandato aqui que pode voltar a atrapalhar a sua carreira política?
Só quem está a fazer a investigação lhe pode dizer. Tenho a consciência tão tranquila como tinha antes. Fiz o que me competia, pedi para ser ouvido, fui ouvido. Se houvesse indícios, a lei obrigava a ser constituído como arguido. Não fui constituído como arguido, deduz-se, portanto, que não havia indícios que justificassem essa constituição e depois disso não tive mais notícias.
E teme que isto seja uma investigação tão prolongada como, por exemplo, a da Operação Marquês, que já vai há 10 anos?
Não temo nada. Quem não deve, não teme. Estou tranquilo e respeito as instituições. O Ministério Público tem naturalmente o seu tempo, os seus meios, os seus critérios de investigação. É deixá-los trabalhar.
“Artigo crítico para Pedro Nuno? Não sei a que se refere”
Nos últimos anos em Portugal afastou-se sempre de funções não executivas, como por exemplo a de Presidente da República. Mas acabou numa função não executiva aqui na União Europeia. O problema era o cargo de Presidente em si?
Sempre disse que não apreciava a função de Presidente. Não era uma função que me motivasse e também acrescentei que quem gostou de ser primeiro-ministro, e gostava de ser primeiro-ministro, seria, com uma enorme probabilidade, um fator de problema. Mais de problema do que de solução no exercício das funções presidenciais.
Porquê?
Porque suspeito que poderia sempre haver a tendência para poder passar os limites daquilo que são a separação de poderes entre o Presidente da República e as funções executivas. Sempre que deixei funções nunca mais voltei à casa onde fui feliz, porque nunca me intrometi na vida dos meus sucessores. Saí do Ministério da Justiça e depois disso só lá fui uma vez tomar um café com a ministra Francisca Van Dunem. Ao Ministério da Administração Interna só voltei para as cerimónias de posse dos comandantes-gerais da GNR e de diretores nacionais da PSP. À Câmara [de Lisboa] só voltei para as cerimónia do 5 de Outubro. E agora só voltei a São Bento para ir almoçar com o atual primeiro-ministro. Acho que as pessoas viram as páginas e não devem intrometer-se. Portanto, foi uma função que sempre disse que não quereria ter. E que não quererei ter — nisso podem estar tranquilos, não vou incomodar ninguém.
Se for convidado como militante socialista a dar uma ajuda nas Presidenciais a um candidato como, por exemplo, António José Seguro, avança ou vai manter os planos separados?
Agora, tenho uma condição: só devo participar em atividades partidárias de âmbito europeu. Participarei em atividades do Partido Socialista Europeu e do grupo S&D, mas tudo o que tenha a ver com atividades políticas de âmbito nacional, em Portugal ou noutros países, não devo fazer. O PSOE pediu-me uma declaração para o congresso deste fim de semana e expliquei que agora já não posso intervir nas atividades políticas de âmbito nacional.
É um bom álibi.
Não, não preciso de álibi nenhum. É a realidade. Faz parte das limitações da minha função.
É só por causa do cargo ou o candidato escolhido terá influência nessa intervenção?
Não faço ideia de quem seja o candidato escolhido.
Falei num específico.
Não sei quais são os candidatos, quanto mais os escolhidos. É independente disso. O PS convidou-me para participar, no sábado, no jantar de homenagem a Mário Soares pelo seu centenário. Vou intervir à tarde como presidente do Conselho Europeu, mas à noite expliquei que não podia ir por esta razão.
E essa separação inclui artigos de opinião críticos para o seu próprio partido?
Não sei a que se refere.
A um muito concreto que fez há algumas semanas [sobre o autarca socialista Ricardo Leão]. Esse tipo de intervenção não vai existir mais ou quer manter esse espaço?
Intervir em debates da política nacional em Portugal ou em qualquer outro dos 27 Estados-membros, neste momento, não faz parte do quadro das minhas atividades.
Naquela questão concreta qual era a sua intenção?
Acho que a intenção está muito bem expressa no artigo. A minha, a do José Leitão e a do Pedro Silva Pereira. Não tinha qualquer outra intenção para além daquela que estava exata e precisamente escrita.
Porque sentiu esse apelo naquela questão específica.
É um tema a que dedico bastante atenção pelo menos desde 1991. Tenho muita coisa escrita sobre imigração e artigos publicados. Não é nada de novo. Tem a ver com a marca identitária como olhamos para o mundo e a humanidade.