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António Ricciardi foi administrador do BES entre 1955 e 1975. E, mais tarde, chairman do BES entre os anos 90 e 2008. O seu testemunho será o primeiro a ser ouvido no julgamento do caso BES
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António Ricciardi foi administrador do BES entre 1955 e 1975. E, mais tarde, chairman do BES entre os anos 90 e 2008. O seu testemunho será o primeiro a ser ouvido no julgamento do caso BES

RODRIGO MENDES/OBSERVADOR

António Ricciardi foi administrador do BES entre 1955 e 1975. E, mais tarde, chairman do BES entre os anos 90 e 2008. O seu testemunho será o primeiro a ser ouvido no julgamento do caso BES

RODRIGO MENDES/OBSERVADOR

António Ricciardi morreu em 2022, mas será a primeira testemunha do julgamento do GES. O que disse o comandante em 2015

Líder histórico do clã Ricciardi garantiu que Salgado era o único que sabia da falsificação das contas e do saco azul. Testemunha morreu em 2022, mas depoimento de 2015 vai ser reproduzido em tribunal

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A opção do procurador José Ranito (explicada aqui) de criar um super-mega-processso para retratar a falência do Grupo Espírito Santo (GES) teve uma consequência inevitável: a investigação demorou cerca de seis anos a ficar concluída com um despacho de 4.117 páginas e o julgamento do maior escândalo financeiro da democracia portuguesa inicia-se 10 anos após a resolução do Banco Espírito Santo (BES).

As duas primeiras sessões marcadas para esta terça e quarta-feira servirão para os advogados dos 24 arguidos (17 arguidos individuais e sete arguidos coletivos) darem as primeiras explicações. Só na quinta-feira será ouvida a primeira testemunha: o comandante António Ricciardi, o líder da família Espírito Santo e chairman do BES até 2008.

A acusação. Anatomia de uma associação criminosa que destruiu o Grupo Espírito Santo

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O que nos leva à segunda consequência da opção do Ministério Público (MP) para investigar este caso: a aplicação da lei natural da vida face à idade avançada de uma parte dos administradores do GES e do BES. José Manuel Espírito Santo (ex-administrador do BES e acusado de oito crimes de burla qualificada e um crime de infidelidade, morreu em fevereiro de 2023 com 77 anos; José Castela (ex-controller do GES e um dos principais arguidos deste caso) morreu em março de 2020; e António Ricciardi morreu em janeiro de 2022 com 102 anos. Sendo certo que Ricciardi nunca foi suspeito nem arguido no caso.

O que faz com a primeira testemunha do caso Universo Espírito Santo — António Ricciardi — não possa estar em tribunal. E como será ouvido? A pedido do MP, a juíza que lidera o coletivo que vai julgar o principal processo do caso Universo Espírito Santo (há mais seis acusações deduzidas pelo MP relativas a este caso) autorizou que fosse transmitida na íntegra a gravação do depoimento que António Ricciardi prestou em 2015 — um testemunho que destrói boa parte da teoria de defesa de Ricardo Salgado e que o Observador antecipa neste especial.

A reprodução da gravação em julgamento faz com que o depoimento passe a valer como prova testemunhal com a mesma importância dos restantes testemunhos.

[Já saiu o segundo episódio de “A Grande Provocadora”, o novo podcast Plus do Observador que conta a história de Vera Lagoa, a mulher que afrontou Salazar, desafiou os militares de Abril e ridicularizou os que se achavam donos do país. Pode ouvir aqui, no Observador, e também na Apple Podcasts, no Spotify e no Youtube. E pode ouvir aqui o primeiro episódio.]

Quem foi António Ricciardi, o líder do Conselho Superior dos Espírito Santo?

Estamos em 2015. A investigação do caso Universo Espírito Santo tem cerca de um ano. Ricardo Salgado foi notificado a 24 de julho para prestar declarações no Tribunal Central de Instrução Criminal a pedido do MP. O procurador José Ranito quer recolher as suas primeiras declarações como arguido e promover uma caução milionária. Mas o líder executivo do BES fica em em prisão domiciliária por decisão exclusiva do juiz Carlos Alexandre, que determinou perigo de fuga por o arguido ter a sua filha a residir na Suíça.

Tribunal decreta a prescrição de 11 crimes do caso Universo Espírito Santo

É neste contexto que António Ricciardi entra no dia 2 de outubro de 2015 nas instalações do Departamento Central de Investigação e Ação Penal, acompanhado do seu advogado, João Nabais. Na sala em que será ouvido como testemunha estão à sua espera os procuradores José Ranito e Ricardo Matos, a inspetora Cristina Maruta (Polícia Judiciária) e Luís Rainho (Comissão do Mercado de Valores Mobiliários) — são apenas alguns representantes da equipa de 30 pessoas lideradas por Ranito que investigarão os sete processos do caso Universo Espírito Santo.

António Luís Roquette Ricciardi não era um homem qualquer. Bisneto de Alfredo Holtreman, 1.º Visconde de Alvalade, um dos fundadores e primeiro presidente do Sporting Clube de Portugal, tinha ascendência italiana e francesa, tendo ficado conhecido como comandante Ricciardi por ter sido primeiro-tenente da Marinha com especialização em aviação ainda antes da II Guerra Mundial. Entrou para a família Espírito Santo por via do seu casamento, em 1945, com Vera Maria Cohen de Espírito Santo Silva, filha do banqueiro Ricardo Espírito Santo — o gestor que transformou o BES num dos principais bancos privados portugueses e que era próximo de António Oliveira Salazar. O casal teve sete filhos, sendo José Maria Ricciardi, ex-líder do BES Investimento, o mais conhecido.

António Luís Roquette Ricciardi não era um homem qualquer. Bisneto de Alfredo Holtreman, 1.º Visconde de Alvalade, fundador e primeiro presidente do Sporting Clube de Portugal, ficou conhecido como comandante Ricciardi devido à sua experiência militar. Entrou para a família Espírito Santo pela via matrimonial, foi administrador do BES desde 1955, esteve preso em Caxias durante o PREC e foi chairman do BES entre os anos 90 e fevereiro de 2008. Morreu em janeiro de 2022 com 102 anos.

Começou a trabalhar no BES em 1950 e entrou para a administração do banco em 1955, após a morte do sogro. Foi um dos membros da família Espírito Santo a ser preso em Caxias durante o período revolucionário do 25 de Abril e, após o regresso da família a Portugal, foi chairman do BES até fevereiro de 2008.

Ranito começa a inquirição por explicar ao comandante, que tinha 95 anos naquele momento, que será ouvido como testemunha e que o objetivo essencial da inquirição é saber o seu papel no GES e perceber o contexto de um conjunto vasto de documentação das principais sociedades dos Espírito Santo que, naquele momento, já se encontravam em processo de falência no Luxemburgo e na Suíça.

A documentação entregue por José Castella — que ia ao BES receber indicações de Salgado

O líder do clã Ricciardi era presidente não executivo da Espírito Santo Internacional e administrador de outras sociedades do GES (como a Espírito Santo Control, Espírito Santo Services e a Espírito Santo Finantial Group). E, pormenor muito importante, liderava o Conselho Superior Espírito Santo, onde os cinco clãs da família Espírito Santo se reuniam regularmente para discutirem os negócios do GES. Esse cargo fazia com que fosse uma espécie de líder informal do GES.

Apesar da sua idade avançada, António Ricciardi não se furtou a nenhuma pergunta e disse tudo o que se lembrava. Numa conversa que começou às 10h41, o comandante começou por ser confrontado com a sua assinatura em documentação importante nos últimos anos de vida do GES — e quando as principais sociedades já estavam falidas.

Morreu José Castella, um dos principais arguidos do caso Universo Espírito Santo

Ricciardi começou por explicar que, quando deixou de ser chairman do BES, com 89 anos, a família o convenceu a ficar como presidente não executivo da ESI e de outras sociedades do GES por estar bem fisicamente e para se manter ativo. Só aceitou se não tal exigisse ser administrador executivo, pelouros, viagens ou o acompanhamento de qualquer cliente.

Na prática, o comandante apenas ia diariamente à sede do GES, na rua de São Bernardo, ao pé do Jardim da Estrela, em Lisboa. Deixou de ter qualquer conhecimento operacional, inclusive da ESI. Apenas tinha conhecimento de algumas operações quando as mesmas eram discutidas no Conselho Superior da família.

Confrontado com a sua assinatura em diversa documentação, António Ricciardi disse ao procurador José Ranito que tais papéis lhe eram colocados à frente por José Castella, ex-controller do GES e figura muito próxima de Ricardo Salgado que foi constituído arguido logo em 2015, mas morreu em 2020. E que os assinava pela confiança em Castella e por saber que tudo tinha sido autorizado por Ricardo Salgado.

Aliás, António Ricciardi fez questão de dizer que José Castella não tinha qualquer espécie de autonomia e que ia todos os dias à sede do BES, na Av. da Liberdade, receber instruções e documentação das mãos de Ricardo Salgado para levar ao comandante e a Manuel Fernando Espírito Santo, presidente da Rio Forte (a sociedade que liderava a área não financeira do GES) para estes assinarem.

Ao longo do seu testemunho, Ricciardi garantiu que Ricardo Salgado era o único membro da família Espírito Santo e das administrações do BES e do GES que tudo sabia e que colocava tudo em marcha. Uns membros da sua equipa mais próxima sabiam umas coisas e outros detinham conhecimento sobre outras. Mas Salgado era o único que tinha uma visão de conjunto.

Ao longo do seu testemunho, Ricciardi garantiu que Ricardo Salgado era o único membro da família Espírito Santo e das administrações do BES e do GES que tudo sabia e que colocava tudo em marcha. Uns membros da sua equipa mais próxima sabiam umas coisas e outros detinham conhecimento sobre outras. Mas Salgado era o único que tinha uma visão de conjunto. Não só liderava de forma absoluta a área financeira, como estava ao corrente e dava indicações a Manuel Fernando sobre como mandar no setor não financeiro do GES.

Ricciardi fez mesmo questão de dizer que o primo Manuel Fernando não fazia nada sem perguntar primeiro a Ricardo Salgado.

Estas declarações, que foram corroboradas por outros elementos da família Espírito Santo e administradores do BES e do GES  durante a fase de inquérito, são muito relevantes porque contradizem claramente uma das principais linhas de defesa de Ricardo Salgado: sempre recusou ser uma espécie de Dono Disto Tudo e sempre disse que a responsabilidade não era só dele, mas sim do Conselho Superior dos Espírito Santo e das administrações do BES e do GES — órgãos colegiais que tomavam as decisões sobre os diversos dossiês.

A falsificação da contabilidade do Grupo Espírito Santo

Foi um dos temas mais mediáticos do início da crise do BES e será um dos principais temas em análise no julgamento: como é que a falsificação da contabilidade da ESI e de outras sociedades do GES foi falsificada?

Segundo a acusação do MP, Ricardo Salgado começou por cometer o seu primeiro ilícito ao cumprir com a obrigação legal de apresentar as contas da ESI logo em 2009. Pior: criou um plano alegadamente ilícito para captar liquidez junto de clientes institucionais e particulares do BES e de outras instituições de crédito do GES para financiar os buracos da ESI, a principal holding do GES e aquela que, tendo em conta a estrutura em cascata das sociedades dos Espírito Santo, podia contaminar todas as outras abaixo de si.

Tudo porque as sociedades do GES começaram a ter problemas financeiros com a crise financeira 2007/2008. E logo em 2009, segundo a acusação do MP, a ESI estava em “insolvência técnica”. Tinha capitais próprios negativos de 961,9 milhões de euros e com resultados negativos transitados de 1,2 mil milhões de euros. Três anos depois, com Portugal mergulhado numa crise e sob intervenção externa, os capitais próprios negativos da ESI já ascendiam a 1,6 mil milhões de euros.

Contabilista do GES. Ocultação de dívida foi feita por ordem e lealdade a Salgado

Daí a necessidade de, alegadamente, falsificar as contas de forma a permitir a execução de um plano de emissão de dívida que era colocada nos clientes institucionais e nos clientes particulares do BES. Para isso, diz o MP na acusação, Salgado recrutou “um núcleo estratégico de colaboradores que, a troco de contrapartidas em dinheiro e poder de influência, se dispôs a pactuar com os seus desígnios”. violando para o efeito os seus “deveres de profissionais”. E é aqui que entra o principal crime imputado a Ricardo Salgado: o crime de associação criminosa por si liderado.

A primeira fase do plano de Ricardo Salgado foi ordenar a falsificação da contabilidade da ESI para esconder a falência técnica da sociedade. Para tal, recorreu a José Castella (controller do GES que faleceu em fevereiro de 2020) e a Francisco Machado da Cruz (o famoso comissaire aux comptes do GES). Mas não terão sido os únicos. Amílcar Morais Pires, Isabel Almeida e Nuno Escudeiro — funcionário Departamento Financeiro, Mercados e Estudos (DFME), que terá feito os cálculos necessários para o grupo liderado por Ricardo Salgado ter noção do ‘buraco’ financeiro que era necessário tapar.

E o que era falsificado nas contas da ESI? Essencialmente, o valor real do passivo da holding do GES, nomeadamente a dívida que a ESI tinha para com as seguintes pessoas e entidades:

  • Os clientes dos diversos bancos da família Espírito Santo;
  • As próprias subsidiárias do GES que investiam em dívida da ESI para ajudarem a financiá-la;
  • E os próprios bancos portugueses, como era o caso da CGD e do BPI.

Pior: foram simplesmente “inventados ganhos ou melhorias nas operações anuais para ocultar resultados negativos” que eram obviamente consumidos com as responsabilidades da dívida assumida — cujo valor era falsificado nas contas.

A falsificação das contas da Espírito Santo International consistiu em alterar o valor real do passivo da holding do GES, nomeadamente a dívida que a ESI tinha para com os clientes dos diversos bancos da família Espírito Santo, por exemplo. Pior: foram simplesmente “inventados ganhos ou melhorias nas operações anuais para ocultar resultados negativos” que eram obviamente consumidos com as responsabilidades da dívida assumida — cujo valor era falsificado nas contas.

Com este esquema, a ESI tinha uma dívida real de 5,6 mil milhões de euros em setembro de 2013, mas as suas contas depositadas no registo comercial luxemburguês evidenciavam capitais próprios sucessivamente positivos entre 2009 e 2012, sendo que neste último ano o valor era de 777,3 milhões de euros.

António Ricciardi disse no seu depoimento que nada sabia sobre esta matéria. E que a primeira vez que ouviu falar nesta questão da falsificação da contabilidade foi através do seu principal operacional: Francisco Machado das Cruz, comissaire aux comptes da ESI e de outras sociedades do GES.

Machado da Cruz confessou a António Ricciardi a existência de contas falsas

O comandante contou ao procurador José Ranito naquela manhã de 2 de outubro de 2015 que Francisco Machado da Cruz lhe tinha pedido uma reunião em 2014 na sua casa em Cascais. Não se recordava da data exata, e se tinha sido antes ou depois da resolução do BES determinada pelo Banco de Portugal em agosto de 2014, mas lembrava-se dos pormenores da conversa.

António Ricciardi garantiu que perguntou a Machado da Cruz por que razão tinha aceitado falsificar as contas da ESI, ao que o contabilista lhe explicou que tinha avisado imensas vezes Ricardo Salgado para a gravidade da situação de estarem a falsificar dados contabilísticos, mas que saía sempre das reuniões resignado a cumprir o que Salgado mandava fazer.

António Ricciardi garantiu que perguntou a Machado da Cruz por que razão tinha aceitado falsificar as contas da ESI, ao que o contabilista lhe explicou que tinha avisado imensas vezes Ricardo Salgado para a gravidade da situação de estarem a falsificar dados contabilísticos, mas que saía sempre das reuniões resignado a cumprir o que Salgado mandava fazer.

A primeira vez que ouviu falar dessa questão, recordou, foi em novembro de 2013, numa célebre reunião do Conselho Superior do GES em que Ricardo Salgado referiu aos restantes membros da família Espírito Santo que havia um buraco nas contas devido a erros de Machado da Cruz. Aliás, Salgado sempre responsabilizou o contabilista pela falsificação das contas — fê-lo numa entrevista ao Jornal de Negócios em maio de 2014, na Comissão Parlamentar de Inquérito ao BES em dezembro de 2014 e no seu interrogatório no MP. O ex-banqueiro chegou a acusar Machado da Cruz de chantagear a família com esta matéria.

Contudo, António Ricciardi nunca acreditou em Ricardo Salgado e responsabiliza-o por toda a situação, por ser ele o responsável pelo governo do Grupo. Na sua inquirição chega mesmo a dizer que, a partir daquela reunião, perdeu a confiança absoluta que tinha em Salgado.

Confrontado com o facto de, enquanto presidente do Conselho Superior, ter apresentado essas mesmas contas falsas aos acionistas da ESI e da Espírito Santo Control, numa reunião anual em Lausanne em que a pompa e a circunstância imperavam, o comandante explicou que José Castella lhe passava as apresentações e limitava-se a lê-las.

Como Ricardo Salgado envolveu Marcelo Rebelo de Sousa com Álvaro Sobrinho

António Ricciardi confirmou que, até aquela reunião de novembro de 2013, também nunca Ricardo Salgado falou de um outro tema que sempre fez parte da defesa do ex-líder do BES: que a culpa dos buracos do GES não era a falsificação das contas. mas sim a gestão do BES Angola a cargo de Álvaro Sobrinho e a alegação de que não estavam contabilizados determinados ativos imobiliários que o GES tinha em Luanda. Aliás, em outubro de 2015, o líder do clã Ricciardi não percebia o que tinha acontecido em Angola.

Seja como for, e regressando à imputação falsificação da contabilidade, Francisco Machado da Cruz confessou estas operações de falsificação ao Ministério Público, mas isso não impediu que fosse acusado de um rol alargado de crimes: associação criminosa, burla qualificada, branqueamento de capitais, manipulação de mercado e falsificação de documento.

A guerra entre Salgado e o filho José Maria na reunião do Conselho Superior

Outro ponto importante da inquirição de António Ricciardi, e que servirá de ponte para a audição do seu filho José Maria Ricciardi que irá ocorrer na próxima quinta-feira à tarde, é precisamente a guerra pela sucessão no BES entre Ricardo Salgado e José Maria.

O comandante explicou ao procurador José Ranito todo o contexto dessa guerra — que teve o seu auge na reunião de 7 de novembro de 2013 do Conselho Superior dos Espírito Santo, a primeira a ser alvo de uma fuga de informação para as páginas de um órgão de comunicação social, o Jornal de Negócios, no caso.

Na prática, António Ricciardi manifestou indiretamente arrependimento por não ter apoiado mais o seu filho José Maria nesse período. O então líder do BES Investimento foi o primeiro membro da família a questionar a liderança de Ricardo Salgado, confrontando-o com o buraco nas contas da ESI e com as conclusões da auditoria ETRIC do Banco de Portugal.

José Maria Ricciardi. “Não fiquei surpreendido que Ricardo Salgado tivesse roubado a sua própria família”

Ricardo Salgado então solicitou um voto de confiança a todo o Conselho Superior, mas José Maria Ricciardi recusou dar-lhe o seu voto. O que levou o líder executivo do BES a ameaçá-lo com a expulsão da administração do BES e da liderança do BES Investimento — o que concretizou dias depois.

António Ricciardi contou no MP que, quando soube disso, convocou uma reunião do Conselho Superior para duas horas antes da reunião do BES e forçou os dois primos desavindos — um deles seu filho — a fecharem-se numa sala para se entenderem.

O que aconteceu ao fim de duas horas. Houve um acordo de paz assinado, mas a notícia do Jornal de Negócios ‘estragou’ tudo, visto que apresentava José Maria Ricciardi como um golpista que tinha tentado destituir Salgado — e tinha falhado com o apoio de António Ricciardi. O arrependimento do comandante advém deste último pormenor.

António Ricciardi explicou que o seu filho retirou o seu voto de confiança e que ele próprio teve de emitir um comunicado a clarificar que estava ao lado de José Maria.

António Ricciardi contou no MP que, quando soube que Salgado tinha convocado uma reunião do BES para afastar o seu filho José Maria, convocou uma reunião do Conselho Superior para duas horas antes da reunião do BES e forçou os dois primos desavindos a fecharem-se numa sala e a entenderem-se. O acordo de paz foi alcançado, mas uma fuga de informação para os jornais, que relatava uma tentativa de golpe de estado por parte de José Maria, estragou tudo.

Em entrevista ao Observador, José Maria Ricciardi explicou todo este processo, tendo revelado que descobriu em dezembro de 2013 — um mês depois dos acontecimentos do Conselho Superior — que “o passivo das empresas, das holdings do GES, era muito superior ao que estava registado.”

“Ainda se tentou vir com uma conversa, e isso está nos tribunais, a dizer que faltavam um conjunto de ativos que estavam em África, mas que não estavam registados, coisa em que nunca acreditei. Foi nessa altura que, pela primeira vez, falei sobre este assunto com o célebre comissaire aux comptes da ESI. O dr. Machado da Cruz disse-me que, de facto, as contas estavam falsificadas. Isso valeu-me uma tentativa de demissão de todos os meus cargos por justa causa — desde os meus cargos no Grupo Espírito Santo, aos do BES e do BES Investimento. Isso não se concretizou porque disse-lhe [a Ricardo Salgado] que seria obrigado a falar publicamente de algumas coisas que sabia. Isto foi em novembro de 2013 e, nessa altura, ainda não sabia do tema das contas [falsificadas], mas sabia de outras coisas. E ele [Ricardo Salgado] aí recuou”, explicou.

O saco azul do GES e o homem que sabia de tudo: Ricardo Salgado

José Ranito confrontou ainda o comandante António Ricciardi com uma das grandes descobertas da investigação do MP no caso Universo Espírito Santo: a existência de um saco azul no GES aberto em nome de uma sociedade offshore chamada Espírito Santo Enterprises. Criada originalmente para remunerar na Suíça os membros da família Espírito Santo com cargos nas diferentes sociedades do grupo no Luxemburgo e também em terras helvétivas, mas que foi alargada nos anos 90 ao pagamento de prémios a outros administradores e altos funcionários funcionários do GES.

Na prática, seria um sistema de pagamento de remunerações que não eram declaradas ao fisco e que, alegadamente, levou mesmo ao pagamento de ‘luvas’ quer a administradores de empresas controladas pelo GES (Zeinal Bava e Henrique Granadeiro na PT, por exemplo), quer mesmo a políticos nacionais (José Sócrates e Armando Vara são dois exemplos, segundo a tese do Ministério Público) e internacionais (os 20 responsáveis políticos venezuelanos alegadamente corrompidos por Salgado são outro exemplo).

Os documentos do ‘saco azul’ do GES: 20 milhões a mais de 50 altos funcionários

No que diz respeito ao processo em julgamento, a ES Enterprises terá servido para pagar prémios a Amílcar Morais Pires, Isabel Almeida e aos diretores e funcionários do Departamento de Mercados do BES que, segundo o MP, criaram e executaram o alegado sistema de financiamento fraudulento do BES e do GES às ordens de Ricardo Salgado.

O MP diz que foram pagos cerca de 56,8 milhões de euros em luvas aos alegados membros da associação criminosa liderada por Ricardo Salgado, entre os quais Amílcar Morais Pires (que terá recebido cerca de 22,2 milhões de euros), Isabel Almeida (ex-diretora do DFME do BES que terá angariado cerca de 2,8 milhões de euros), e António Soares, braço direito de Almeida, que terá recebido cerca de 1,4 milhões de euros — são apenas alguns exemplos.

Na prática, a acusação do MP confirmou o que o Observador noticiou desde 2016: Ricardo Salgado terá corrompido os seus administradores e funcionários para implementar um alegado sistema de financiamento fradulento de várias holdings do GES à custa dos clientes do BES.

Para tal, instituiu a sociedade offshore Espírito Santo (ES) Enterprises, que atuou como o principal ‘saco azul’ do GES. Mas a acusação do Ministério Público revela que existiam mais três sociedades secretas com o mesmo objetivo:

  • A Alpha Management, tal como o Observador antecipou aqui, que tinha sede nas Ilhas Virgens Britânicas;
  • A Balenbrook, com sede no Panamá;
  • E a Clauster, com sede no Belize.

António Ricciardi disse ao MP que não conhecia nenhuma dessas sociedades e que nunca discutiu com Salgado qualquer pagamento da ES Enterprises.

Confrontado com o facto de ter assinado declarações que garantiam um prémio de um milhão e meio de euros anual a Morais Pires pelos serviços prestados em 2011, 2012 e 2013, o comandante garantiu não se recordar de a ter assinado. A declaração é emitida em nome da ES Internacional, da qual era chairman, mas diz claramente que os pagamentos estão disponíveis através da ES Enterprises.

Como Salgado usou o ‘saco azul’ para implementar um esquema de financiamento fraudulento do GES

Mas não deixou de dizer que Ricardo Salgado tinha uma forma de gestão que implicava que fosse ele o único que sabia tudo, mas que, para tal, contava com um grupo de pessoas da sua máxima confiança e identificou Morais Pires, Isabel Almeida e Ana Rita Barosa (ex-administradora do BES e ex-secretária de Estado do Governo Passos Coelho) como fazendo parte desse grupo.

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