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TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

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José Ranito. "A magistratura judicial tem de ter mais meios e especializar-se para gerir processos como o do BES"

Procurador europeu José Ranito diz que os casos contra os interesses financeiros da União Europeia já superam os 2 mil milhões de euros. E fala pela primeira vez sobre a sua investigação ao caso BES.

O caso Universo Espírito Santo foi tema incontornável na primeira entrevista de José Ranito como procurador europeu, ao programa “Justiça Cega” da Rádio Observador. Ranito liderou a equipa de 31 elementos que investigou a derrocada do Banco Espírito Santo e do Grupo Espírito Santo e, só no caso principal, acusou Ricardo Salgado de mais de 65 crimes, entre os quais o de associação criminosa, corrupção ativa no setor privado e burla qualificada.

“Investigações a fraudes superam os 2 mil milhões”

Apesar das críticas aos megaprocessos, José Ranito não tem qualquer dúvida em afirmar que a acusação principal não podia ser dividida em quatro processos diferentes. Porque o regulamento da Procuradoria Europeia defende que “uma realidade” deve corresponder a “um processo”. E acrescenta  que a “morosidade é o tempo que é necessário para um apuramento da verdade com o cumprimento de regras” e “o tempo da justiça não é o tempo do mediatismo.”

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José Ranito diz ainda que os tribunais têm de ter mais meios e assessorias técnicas para puderem gerir processos altamente complexos como os do BES e dá mesmo o exemplo do Tribunal Penal Internacional, que investiga crimes contra a humanidade, como exemplo.

Sobre o trabalho da Procuradoria Europeia, que investiga crimes contra os interesses financeiros da União Europeia, Ranito confirma que estão abertas em Portugal 26 investigações — que envolvem suspeitas de fraude que superam mais de 2 mil milhões de euros. Também já há “dois a três casos” em investigação sobre alegado mau uso de fundos do Programa de Recuperação e Resiliência.

Caso BES. “A morosidade é o tempo que é necessário para um apuramento da verdade com o cumprimento de regras”

Foi responsável pela equipa que fez a acusação do caso Universo Espírito Santo. Sobre a acusação do principal caso do processo, relacionado com a gestão alegadamente fraudulenta do BES e do GES levada a cabo por Ricardo Salgado, o nosso sistema penal está preparado para uma acusação tão complexa quanto essa?
No dia em que um magistrado responder “não”, podemos rasgar o contrato social que existe, porque uma das funções de soberania do Estado é a administração da justiça. Mas o magistrado também pode ter uma perspetiva crítica do funcionamento da administração da justiça. Diria que não é um problema da arquitetura da justiça. Acredito que seja um problema de meios. O Ministério Público, ao longo de anos, especializou-se em crime económico e financeiro.

Esta equipa teve 31 elementos liderados por si. Nunca houve uma equipa com esta dimensão no Ministério Público.
Gostaria de dizer que as duas senhoras procuradoras-gerais da República com quem tive o gosto de trabalhar diretamente no DCIAP…

Joana Marques Vidal e Lucília Gago…
… compreenderam muito cedo a importância do caso e foi possível constituir esta equipa por decisões das próprias. Pode-se considerar que são meios estratosféricos, mas a investigação criminal em causa era inédita em Portugal. E, sim, tive a oportunidade de liderar essa investigação criminal inédita em Portugal. Tive a oportunidade, neste concreto processo, de viajar por diferentes jurisdições, desde os Estados Unidos ao Brasil.

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Houve muita cooperação judiciária de diferentes jurisdições.
Assisti ao modo como o Ministério Público se organiza nestas jurisdições — e com outro tipo de meios que nós não temos.

Uma coisa são os meios na fase de inquérito, outra coisa é se o nosso processo penal, em termos de tramitação na fase de instrução criminal, na fase de julgamento ou na fase de recursos, está capacitado para um processo desta natureza?
Em Portugal, vigora o processo inquisitório. O princípio do inquisitório implica que o juiz domine o processo e domine o que se está a passar em termos de julgamento.

Mesmo que na semana passada tenha julgado um caso de homicídio ou de violência doméstica…
Esse é um problema de arquitetura do sistema judiciário na fase de julgamento. O Ministério Público conseguiu especializar-se e a magistratura judicial tem que ter apoio porque existem jargões que os juízes têm de dominar. Hoje em dia qualquer magistrado do Ministério Público nesta área económico-financeira sabe a diferença entre uma imparidade ou uma provisão. Ou a diferença entre uma ação comum e uma ação preferencial, por exemplo.

Os juízes de outros países estão mais bem preparados?
Vi na Suíça, por exemplo, magistrados judiciais muito capacitados para lidarem com toda a área económico-financeira.

Olhando para a dimensão dos autos do processo principal do Universo Espírito Santo — só a acusação contra 25 arguidos tem 4.117 páginas, sem falar das muitas dezenas de volumes e as dezenas de milhar de páginas que compõem os autos —, não era possível dividir o processo principal em várias acusações, seguindo a lógica do Banco de Portugal?
Essa é uma questão muito interessante porque as opções relativamente à construção dos objetos dos processos não são…

Não surgem do nada.
Por exemplo, no Regulamento da Procuradoria Europeia está escrito nos considerandos que deve haver um processo por realidade. Aquilo que me está a perguntar é se num acidente de carro, se o carro ficar completamente destruído, se devo demandar a seguradora primeiro pelo pára-choques, depois pelos vidros, depois pelo habitáculo e depois pelo motor. O que me está a perguntar é se devo suscitar a intervenção de quatro tribunais diferentes que, porventura, vão ter perceções diferentes sobre a realidade, obrigando as testemunhas a deslocarem-se quatro vezes, quando podem fazê-lo apenas uma vez.

Em segundo lugar, creio que os factos são como são. Não há factos mais ou menos complexos, são o que são. Como dizia a sra. dra. Francisca Van Dunem, quando era procuradora-geral distrital de Lisboa, a nossa função é simplesmente contribuir para o esclarecimento. A parte subsequente [os tribunais] tem que ter o conhecimento necessário para dominar este tipo de processos e, sobretudo, para conseguir geri-los.

Por exemplo, essas medidas de gestão processual e conhecimento técnico estão devidamente sinalizadas no Tribunal Penal Internacional. Como calculam, nos casos de crimes contra a humanidade, os processos são igualmente muito complexos e o número de testemunhas é avassalador.

A acusação do processo do BES poderia ter sido dividida em quatro? "No Regulamento da Procuradoria Europeia está escrito nos considerandos que deve haver um processo por realidade. Aquilo que me está a perguntar é se num acidente de carro, se o carro ficar completamente destruído, se eu devo demandar a seguradora primeiro pelos pára-choques, depois pelos vidros, depois pelo habitáculo e depois pelo motor."

Arriscamo-nos a que os principais arguidos morram durante a tramitação do processo? É a lei natural da vida mas receia que os portugueses, nomeadamente os lesados do BES, fiquem com a sensação de que não foi feita justiça?
No dia em que prespetivarmos que a justiça funcionou, ou não, consoante a idade das pessoas ou aquilo que lhes possa acontecer, estaríamos num campo em que eu gostaria nem sequer de entrar.

A questão tem a ver com morosidade, não tem a ver obviamente com a lei natural da vida.
A propósito do escândalo do Qatargate, a União Europeia tem em preparação uma proposta de diretiva sobre corrupção em que a questão da morosidade é identificada transversalmente. A morosidade é o tempo que é necessário para um apuramento da verdade com o cumprimento de regras. Admito que o tempo da justiça não é o tempo do mediatismo.

Em Portugal temos um problema: a criminalidade comum tem um tempo médio de resolução de um ano e o tempo médio de resolução dos processos económico-financeiros é superior, largamente superior a 10 anos. Essa discrepância é aceitável?
Mas a complexidade da criminalidade comum não se nivela nem de perto nem de longe com a da criminalidade económico-financeira.

"A propósito do escândalo do Qatargate, a União Europeia tem em preparação uma proposta diretiva sobre corrupção, em que a questão da morosidade é identificada transversalmente. A morosidade é o tempo que é necessário para um apuramento da verdade com o cumprimento de regras. Admito que o tempo da justiça não é o tempo do mediatismo."

Acha razoável esta diferença de 1 para 10 ou de 1 para 15?
Creio que têm de ser tomadas medidas, designadamente de reforço das componentes técnicas no apuramento dos factos durante a fase de julgamento. Porque muitas vezes o que acontece é que a litigância se prende com questões procedimentais e não tanto em termos de prova.

O seu conhecimento das jurisdições europeias, por exemplo, permite-lhe dizer que há medidas de agilidade processual mais eficientes que podem ser aplicadas em Portugal?
Há sistemas muito distintos. Por exemplo, há sistemas em que o que é discutido na fase de inquérito fica assente para o resto do processo. Creio que a Procuradoria Europeia, como instituição que opera neste mosaico jurídico, vai seguramente trazer à luz assimetrias, porque não temos um sistema integrado. Não foi aceite que pudéssemos operar, não apenas numa lógica de single office, mas numa jurisdição harmonizada e única. Veremos o que o futuro nos reserva.

“Se acreditasse que este era um cargo de indicação política, nem me teria candidatado”

A Procuradoria Europeia não começou com o pé direito em Portugal, devido à polémica do processo de nomeação do seu antecessor, José Guerra — o que terá afetado o interesse de procuradores e juízes em candidatarem-se ao cargo e motivou a necessidade de se abrirem vários concursos ao longo de 2022 e 2023. Pode dizer-se que a Procuradoria Europeia ainda está a pagar os erros do Governo no processo de nomeação de José Guerra ou esse é um tema arrumado?
Não tenho propriamente a leitura que tem sobre o assunto — e faço já declaração de conflito de interesse: sou amigo pessoal do dr. José Guerra, além do mais admiro imenso o trabalho da dra. Ana Carla Almeida como procuradora competentíssima e como conhecedora profunda dos temas relativos à fraude nos fundos. O modo como o dr. José Guerra foi tratado na comunicação social, em virtude de toda esta situação, a mim impressionou-me muito negativamente.

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O escrutínio jornalístico visou essencialmente o Governo, não o dr. José Guerra.
Houve um dano colateral. Aliás, o Tribunal de Justiça da União Europeia acabou por confirmar que a arquitetura da tomada de decisão estava correta e assenta nos poderes do Conselho da União Europeia e que a decisão em causa nasceu de um sistema de equilíbrio. Só quem não conhece profundamente o curriculum do doutor José Guerra e as suas capacidades demonstradas ao longo de anos é que poderia dizer que haveria uma motivação política por trás da indicação do mesmo. Esse assunto, contudo, é passado. A Procuradoria Europeia é independente, não tem qualquer interferência política e creio que não há qualquer lastro relativamente a esse incidente. Se na verdade acreditasse que era um cargo de indicação política, nem sequer teria apresentado a minha candidatura ao cargo.

Quanto à ausência de candidatos, não posso escrutinar a vontade dos potenciais oponentes. O processo de seleção do procurador para este cargo é um processo em Portugal particularmente transparente, nem todos os países adotaram a modalidade de concurso público.

Há países que têm a nomeação direta do ministro da Justiça.
Exatamente.

"O modo como o dr. José Guerra foi tratado na comunicação social no caso do procurador, impressionou-me muito negativamente… Houve um dano colateral. A Procuradoria Europeia é independente, não tem qualquer interferência política e creio que não há qualquer lastro relativamente a esse incidente."

Como surgiu o interesse em querer liderar a Procuradoria Europeia em Portugal? Já era procurador-delegado da Procuradoria Europeia em Lisboa.
O meu interesse na Procura da Europeia surge da experiência que fui acumulando ao longo de anos, a vida deu-me o interesse em analisar matérias tão áridas quanto demonstrações financeiras ou fluxos de dinheiro e percebi que a compreensão do fenómeno implica uma viagem jurídica noutros países, através de mecanismos de cooperação judiciária. Nestes três anos como procurador-delegado pude constatar que a Procuradoria Europeia é uma instituição que tem uma dinâmica muito ativa no combate ao crime organizado. Nessa medida, esta candidatura foi uma consequência natural do meu percurso que trará um aporte em termos de crescimento pessoal, que um dia transportarei para Portugal.

“Temos 26 investigações ativas em Portugal”

Entre os processos avocados aquando da criação da Procuradoria Europeia em 2021 e os processos que foram abertos de raiz, quantos processos está a gerir a Procuradoria Europeia em Portugal neste momento?
Os dados relativos à atividade de 2023 ainda não estão completos. Por razões de compliance, só posso dar dados relativos a 2022. O ano passado tínhamos 26 investigações ativas — parte delas focadas nos inquéritos que estavam abertos à data do início de funções da Procuradoria Europeia. Foram também abertas novas investigações, uma delas é a Operação Almirante.

Já vamos falar desse caso em concreto.
Esse caso resulta do exercício de um direito de avocação de um processo que já existia e estava pendente nas autoridades nacionais.

"Temos investigações pendentes em todos os crimes de catálogo da Procuradoria Europeia. Estamos a falar de fraude fiscal, de crimes que em Portugal são conhecidos como fraude de obtenção de subsídio, estamos a falar de matérias que poderão ser configuráveis como corrupção, branqueamento de capitais, por exemplo. Estão em causa valores que superam os 2 mil milhões de euros."

Quais os crimes que estão a ser investigados e qual o montante de fraude que está em causa? É importante recordar que a Procuradoria Europeia investiga crimes contra os interesses financeiros da União Europeia, a nível de fundos europeus mas também de fraude fiscal.
Diria que no catálogo de crimes que está contemplado na diretiva [de criação da Procuradoria Europeia], nós temos investigações pendentes em todos os crimes de catálogo.

Quer dar-nos alguns exemplos?
Estamos a falar de fraude fiscal, de crimes que em Portugal são conhecidos como fraude de obtenção de subsídios, de matérias que poderão ser configuráveis como corrupção, branqueamento de capitais, por exemplo. Temos também a competência de crimes aduaneiros — que representam cerca de 25% do Orçamento da União Europeia.

Tem a ideia do montante total de suspeita de fraude que está sob investigação?
Continuo a reportar-me aos dados de 2022: estão em causa valores que superam os 2 mil milhões de euros. São valores por aproximação, considerando o volume de negócios que estão envolvidos nas investigações abertas. Tratam-se de investigações que estavam sob a responsabilidade do dr. José Guerra.

“A Procuradoria Europeia pode ser um game changer  na reação criminal à fraude”

Portugal tem um histórico de mau uso de fundos europeus, existindo uma grande atenção da opinião pública aos casos de fraude do PRR e de outros programas de fundos estruturais. Recordo-me que, aquando da criação da Procuradoria Europeia, uma das prioridades era vigiar com atenção a aplicação de cerca de 672,5 milhões de euros do programa Next Generation — programa criado para ajudar a recuperar a economia europeia após a Covid-19. Receberam denúncias sobre fraudes nestes ou noutros programas financeiros da UE?
Temos competência material sobre o programa PT 2020 e avocamos alguns processos que estão sob investigação. Mas o nosso core business é o Next Gen, o PRR e o novo pacote financeiro atribuído pela União Europeia.

A Procuradoria Europeia tem dois tipos de abordagem: ou faz uma abordagem de verificação — em que exerce o direito de chamada de processos nacionais que já existem. Ou por iniciativa própria abre processos tendentes à iniciação das investigações.

No caso de denúncias sobre a possível má utilização fundos estruturais, nomeadamente sobre o programa Next Generation, estas foram denúncias externas ou foi a Procuradoria Europeia por sua iniciativa que abriu essas investigações?
Temos os dois tipos de denúncias. Posso dizer que, tendo em conta os dados de 2022, apenas 10% dos casos foram reportados por entidades privadas.

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Ou seja, por cidadãos, empresas ou instituições privadas?
Exatamente, entidades privadas. Tudo o resto resulta do mecanismo de comunicação que está previsto no regulamento, seja por via de autoridades nacionais, seja por via de de parceiros institucionais — nomeadamente, a OLAF – Organismo de Luta Antifraude ou o Tribunal de Contas Europeu. Também acordos de trabalho com o Banco Europeu de Investimento. As investigações também podem ser abertas por iniciativa própria dos magistrados, com base na informação que existe na comunicação social, por exemplo.

Pode-nos dizer quantos casos é que estão em investigação sobre a possível má utilização de fundos estruturais com aqueles que fazem parte do PRR Programa de Recuperação e Resiliência?
Apenas posso reproduzir o que já tinha sido dito pelo dr. José Guerra em julho: há dois ou três casos em investigação. Mas, como digo, o ano civil ainda não acabou.

Esse mau histórico de fundos europeus tem-se traduzido num acréscimo de denúncias? Ou seja, a sociedade civil portuguesa está a reagir à criação da Procuradoria Europeia?
É importante que a sociedade civil portuguesa percecione a Procuradoria Europeia não como uma delegação nacional mas sim como uma entidade europeia.  Por exemplo, quando estamos a falar da participação de entidades privadas, não estamos a falar necessariamente de cidadãos ou entidades legais domiciliadas em Portugal. Portanto, a perceção da Procuradoria Europeia é uma perceção europeia.

Temos um mecanismo próprio de receção, tanto nas delegações portuguesas como a nível central, que tem de ser conjugado com a proteção dos denunciantes, por exemplo, e que está a funcionar. Parece que há a perceção de que a Procuradoria Europeia será uma entidade que alterará as regras de jogo relativamente à justificação criminal, o que é interessante, porque estamos a receber, na verdade, muitas denúncias relativamente a matérias que transcendem largamente o nosso âmbito.

"Tenho contacto com o contexto de todos os países que fazem parte da Procuradoria Europeia e existe uma crença de que esta instituição pode vir a ser uma instituição de mudança relativamente à reação criminal. Um game changer, digamos assim."

Será que tal acontece porque os cidadãos não têm confiança na justiça portuguesa?
Esse não é um fenómeno exclusivamente português. Como procurador europeu, tenho contacto com o contexto de todos os países que fazem parte da Procuradoria Europeia e existe uma crença de que esta instituição pode vir a ser uma instituição de mudança relativamente à reação criminal. Um game changer, digamos assim.

Como estamos em termos de meios na Procuradoria Europeia?
A pergunta que me está a fazer seria a pergunta que poderia tentar fazer um magistrado em 1993, anos depois do Ministério Público ter a sua consagração como o seu primeiro estatuto. A Procuradoria Europeia é uma instituição muito jovem, com três anos de trabalho. Há uma mensagem que Laura Kovesi tem passado em todas as visitas oficiais que tem feito e que tem a ver com o modelo de investigação que assenta na existência de equipas dedicadas à Procuradoria Europeia que permitam trabalhar articuladamente com os nossos magistrados.

As autoridades nacionais de todos os estados-membros estão vinculadas pelo regulamento a prestar esta colaboração. Mas eu diria que a questão das equipas dedicadas é uma condição determinante. Por exemplo, os procuradores europeus delegados na Roménia estão instalados numa unidade que integra neste momento 18 efetivos policiais e analistas financeiros. Número que passará para 40 elementos de apoio em dois meses.

E em Portugal?
Em Portugal temos um compromisso de existirem equipas dedicadas. Foi um ano particularmente intenso por parte da Polícia Judiciária em termos de operações, e aquilo que nós constatamos é que os meios que estavam alocados às nossas investigações estavam sistematicamente a ser transferidos para operações que não podiam deixar de acontecer.

A Roménia não é o único país que tem mais meios a esse nível. Em Itália, por exemplo, a Guardia de Finanza está a tratar de todos os processos da Procuradoria Europeia. A Bulgária também já tem um acordo para uma equipa que trabalhará em exclusivo com os procuradores europeus delegados. A Malta e a Alemanha vão ter em breve compromissos nesse sentido. É importante que não tenhamos uma Europa a duas velocidades. E a Procuradoria Europeia não deve passar por este tipo de desigualdades. Mas isso depende das autoridades nacionais, claro.

"A Procuradoria Europeia está a lançar programas de treinos para os magistrados e operacionais nacionais para estágios de seis meses na Procuradoria Europeia. As candidaturas estão abertas até dia 16 de novembro para os magistrados portugueses e outros interessados. É uma boa oportunidade para o meio judiciário português perceber a importância desta instituição."

Estamos também a apostar na formação. Não só a Procuradoria Europeia estabeleceu um protocolo com a academia da Guardia de Finanza para dar formação aos magistrados e órgãos de polícia criminal, como também está a lançar programas de treinos para os magistrados e operacionais nacionais para estágios de seis meses na Procuradoria Europeia. As candidaturas estão abertas até dia 16 de novembro para os magistrados portugueses e outros interessados. É uma boa oportunidade para o meio judiciário português perceber a importância da Procuradoria Europeia.

“O aumento de comunicações de irregularidades passou de 1,4 mil milhões para 3,2 mil milhões de euros”

Num estudo académico ao reporte feito pela Inspeção-Geral de Finanças à OLAF entre 2007 e 2021, que foi promovido pelo think tank Procuradoria-Geral da República, apenas foram detetados dois casos de fraude comprovada e apenas 133 casos foram sinalizados como tendo suspeitas de fraude. Isto num universo superior a 314 mil operações aprovadas. Concorda que temos melhorar muito o sistema de alerta para fraudes?
Concordo. Esta tem sido, aliás, uma mensagem sistematicamente veiculada pela procuradora-geral europeia Laura Kovesi. Não conheço o estudo em causa. De todo modo, creio que é interessante. É importante alertar, tal como o Parlamento Europeu já o fez, que os Estados-membros gerem 85% do valor total das despesas da União Europeia e são os principais responsáveis pela cobrança de recursos próprios da União. E há uma multiplicidade de sistemas de gestão e um mosaico de regimes administrativos e jurídicos que impedem uma visão integrada.

"Foi identificada pelo Parlamento Europeu a necessidade de uma melhoria dos sistemas informáticos, a interoperabilidade dos dados e a fidedignidade desses mesmos dados para que se perceba o real alcance da irregularidade e da fraude [com fundos estruturais]. Em 2021, houve um aumento de comunicações [de possíveis irregularidades e fraude] na ordem dos 121% Ou seja, o aumento de situações de irregularidades passou de 1,4 mil milhões de euros para 3,2 mil milhões."

Os organismos nacionais de gestão dos fundos europeus, agora falando do caso português, estão sensibilizados para a necessidade de combater a fraude?
Não só estão sensibilizados, como atuam em estreita colaboração com a Comissão Europeia — que é o gatekeeper [guardião] da qualidade da execução do orçamento e do controle da execução do orçamento. Não é apenas em Portugal que vemos essa realidade. Há um problema com a fraude que é sistémico, porventura de dimensão transnacional. A fraude vai ser explorada por grupos de criminalidade organizada, independentemente de ela estar a verificar-se em Portugal ou em outro país, inclusivamente com o envolvimento de vários países. E portanto, sim, está identificado nesta resolução do Parlamento Europeu a necessidade de uma melhoria dos sistemas informáticos, a interoperabilidade dos dados e a fidedignidade desses mesmos dados é crucial para que se perceba o real alcance da irregularidade e da fraude. Sendo certo que no documento do Parlamento Europeu se constata que houve um aumento de comunicações [de possíveis irregularidades e fraude] em 2021 na ordem dos 121%. Ou seja, o aumento de situações de irregularidades passou de 1,4 mil milhões de euros para 3,2 mil milhões.

O caso Almirante e as investigações a políticos. “O crime de corrupção é inquestionavelmente uma das competências da Procuradoria Europeia”

Como disse José Guerra numa entrevista ao Observador em 2021, a Procuradoria Europeia pode investigar políticos que atentem contra os interesses financeiros da UE. Poucas semanas após o início em funções do EPPO, foi promovido o levantamento da imunidade parlamentar de um autarca croata. A Procuradoria Europeia já investigou algum político português?
Confesso que é uma resposta que não tenho condições de dar nesta sede. É inquestionável que o crime de corrupção está no leque das competências da Procuradoria Europeia. E existem já linhas orientadoras do colégio relativamente ao modo como nos devemos posicionar relativamente ao crime de corrupção. Não só acolhemos a noção de corrupção que é dada pela proposta de diretiva europeia sobre essa temática, incluindo a corrupção no setor privado, como também acolhemos todos os instrumentos de direito internacional.

A Procuradoria Europeia funciona na lógica de que os Estados-membros transferem a ação penal em áreas específicas relacionadas com o tema geral dos interesses financeiros da União Europeia. Mas a soberania dos tribunais continua na esfera dos Estados-nacionais. Ou seja, a Procuradoria Europeia acusa, mas essas acusações são julgadas nos tribunais de cada Estado-membro. Este contexto já colocou algum problema?
Não há uma delegação do poder da ação penal na Procuradoria Europeia na medida em que ela não foi retirada das procuradorias nacionais. O que existe é uma competência concorrente e em virtude desta solução de cooperação reforçada. A partir do momento em que a Procuradoria Europeia exerce a sua competência, as autoridades nacionais são obrigadas a respeitar a competência exercida.

Creio que estão sinalizados, e em press releases que foram feitas pela Procuraduria Europeia, uma ou outra situação em que terá existido um conflito positivo de competências relativamente a uma situação de corrupção.

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São casos isolados?
Sim. Gostaria de dizer que, relativamente ao relacionamento entre a Procuradoria-Geral da República e as delegações portuguesas da Procuradoria Europeia, o relacionamento tem sido exemplar. A senhora procuradora-geral emitiu uma instrução no início de 2021 que estabeleceu todo o sistema de comunicações que existe entre as delegações portuguesas e os pontos de contacto, que está a funcionar muito bem, sem qualquer sobressalto.

Nem, por exemplo, na ligação com a Polícia Judiciária ou com outros órgãos de polícia criminal?
Não há problemas. Gostava de dizer que temos apostado muito na deteção antecipada, que é um valor acrescido da Procuradoria Europeia e que nos permite acionar os mecanismos de recuperação de ativos — área em queremos ter uma posição muito forte. O caso português é disso bom exemplo mas existem outros casos na União Europeia.

Vamos falar de um desses casos. A Operação Almirante é o inquérito mais importante da Procuradoria Europeia em Portugal e um exemplo de ter um organismo com estas características? Estamos a falar de uma fraude de IVA complexa que pode chegar aos 2,2 mil milhões de euros e que teve mais de 100 diligências em novembro de 2022 em Portugal (foram mais de 100 buscas judiciais realizadas) mas também na Alemanha, França, Itália, Espanha e em mais 12 países da UE.
É isto que é a cooperação judiciária reforçada, ao fim e ao cabo. É a possibilidade de nos deslocarmos ao Luxemburgo, sentarmos todos os procuradores potencialmente envolvidos numa operação, discutirmos matérias de natureza legal, perfilarmos os alvos e conseguirmos cada um no seu país acionar os meios, os órgãos de polícia criminais necessários para que consigamos fazer buscas com sucesso, porque o objetivo de uma busca é precisamente apreender prova relevante. Este caso é um tributo que devo prestar ao dr. José Eduardo Guerra, porque foi o dr. José Guerra quem, oito meses depois de termos recebido o relatório sobre o alegado esquema criminoso, conseguiu medir o potencial alcance que a investigação poderia ter.

Como é que surgiu esse caso? Estamos falar de um conglomerado de empresas que vendia equipamentos informáticos em plataformas online.
Este caso surge sinalizado pela direção regional de finanças de Coimbra. Aquilo que é constatado é que havia um conjunto de empresas que se dedicavam à venda de produtos informáticos em plataformas online com volumes avultadíssimos. Através de uma informação cruzada com as faturações que eram declaradas, percebeu-se que porventura existiam problemas com as faturas que eram apresentadas como faturas de venda de artigos. Verificámos que potencialmente poderíamos ter todos os requisitos necessários para lançar uma investigação a nível europeu e a partir daí, passados 8 meses, começámos a acionar todos os nossos canais na Procuradoria Europeia, a recolher dados do Eurofisc — que é uma rede de representantes das autoridades tributárias de todos os Estados-membros — e avançamos para a operação. Refira-se que também conseguimos acionar em Portugal meios de garantia patrimonial no valor de 65 milhões de euros.

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