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É preciso ter muita calma. Quando aparece um peixe pela frente — muitas espécies gostam de andar junto às rochas por isso pode ser um bom sítio para os encontrar –, nada-se na sua direção mas com cuidado. Quando ele já está perto aponta-se o arpão para a frente e vai-se flutuando, quase (se não se estiver a grande profundidade, claro), até chegar o momento certo. Aponta-se para o sítio onde ele vai estar, não onde está, e carrega-se no gatilho. “Espetáculo!”, diz João Reis, já com a cabeça fora de água e sem os óculos e respirador.
Foi há quase seis anos que este continental casado com uma açoriana, Catarina, lançou a semente daquilo que é hoje um dos mais completos complexos hoteleiros dos Açores, quando inaugurou o Santa Bárbara Eco Beach Resort. Desde então juntou mais dois espaços a esse resort ecológico na zona da Ribeira Grande, o La Maison e o White (todos em São Miguel), mas recentemente decidiu apostar forte na componente gastronómica do seu grupo hoteleiro, a Singular Properties, sendo o chef André Fragoeiro o expoente máximo dessa aposta.
“André, vais ter de fazer qualquer coisa com isto agora, para o nosso jantar”, diz o mesmo João já em terra firme, no White (espaço onde mora o Cardume, restaurante liderado por Fragoeiro). Refere-se ao bodião apanhado horas antes, o tal que foi arpoado. Falta pouco mais de hora e meia para o início da refeição mas André nem pestaneja perante o desafio. “Bora”, atira o chef. O resultado final? Uma espécie de sashimi com citrinos de época, bem fresco.
Desafios como este são o dia a dia deste natural da zona das Caldas da Rainha que trocou a correria e azáfama de viver e trabalhar em Lisboa, no grupo 100 Maneiras do chef Ljubomir Stanisic, pelo “paraíso” que diz ser os Açores. Há pouco mais de dois anos a viver na ilha, André transformou o Cardume no seu “laboratório”, o espaço onde dá largas à imaginação e onde praticamente todos os dias apresenta pratos novos. Entre fermentações, maturações e muita criatividade, mesmo em tempos de pandemia, não parece haver travão para a sua cabeça — agora mais apoiado ainda pela grande aposta do grupo hoteleiro num enorme projeto de agricultura biológica, situado no primogénito Santa Bárbara, que faz os seus espaços de restauração serem auto-suficientes em tudo o que seja vegetal e aromático. Vale a pena conhecê-lo melhor e perceber que o seu trabalho é das coisas mais vanguardistas a serem feitas na Região Autónoma dos Açores.
Uma proposta que não deu para recusar
Não dá para falar de André Fragoeiro e do seu trabalho em São Miguel sem falar de Manuel Dias. Dividido entre a paixão pela cozinha e pela fotografia — foi à conta das fotos que acabou por conseguir estagiar no emblemático Noma, de René Redzepi, já que quando lá foi pediu para tirar umas retratos e o resultado final foi tão bom que o pediram para ficar por lá uns tempos –, Dias não só é conterrâneo de André como também foi ele o responsável por levar Fragoeiro para a região autónoma.
“Já conhecia o Manuel há vários anos, tínhamos trabalhado juntos noutros sítios. A certa altura ele veio falar comigo para saber se eu conhecia alguém que pudesse estar interessado em vir para cá. Na altura já estava em Lisboa há uns bons anos…”, conta o próprio André ao Observador numa conversa que aconteceu pouco antes de se provar o tal bodião (e muito, muito mais). Na altura, André trabalhava com Ljubomir Stanisic, depois de ter estado uns tempos no estrelado Eleven, com o chef Joachim Koerper. “Já estava um bocado saturado das rotinas, dos horários… Estava um bocado exausto, na verdade. Eu estava a trabalhar no Bistro [100 Maneiras] e ia ajudando também o Ljubo no Pesadelo na Cozinha”, conta.
Todo esse contexto ajudou a ver com outros olhos a proposta que Manuel tinha em mãos. “Basicamente ele veio perguntar se conhecia alguém que pudesse estar interessado e eu disse que talvez conhecesse, mas precisava de saber melhor quais eram as condições”, explica. Na verdade, André já estava a sondar se aquilo que estava em cima da mesa poderia ser o ideal: “Ele explicou-me que era isto e aquilo […] e eu disse-lhe que conhecia um gajo bom para ir para lá: eu”, conta, entre risos. O desafio era assumir um espaço com capacidade para 20 pessoas, sem obrigatoriedade de menu fixo e com porta totalmente aberta para se fazer coisas novas todos os dias. “Basicamente estava a oferecer um laboratório para eu desenvolver o meu processo criativo! Aceitei logo”, remata. Inicialmente, Manuel e André dividiam a chefia do tal Cardume mas, rapidamente, o primeiro passou a diretor de F&B e Fragoeiro ficou a solo.
Entre os matagais e os calhaus
O panorama gastronómico dos Açores é dominado pela chamada cozinha regional, espaços essencialmente dedicados à cozinha típica onde predomina o uso de peixe, marisco e carne. Enquanto no continente a febre da gastronomia gerou uma explosão de criatividade de norte a sul, com projetos novos e arrojados a espalharem-se que nem cogumelos, só há pouco tempo é que na região autónoma dos Açores (talvez porque só também há pouco tempo é que a zona foi “descoberta” pelos turistas) se começou a ver uma cozinha mais contemporânea e criativa. Projetos como o Otaka, por exemplo, (ou o Líquen, que era de Ljubomir Stanisic mas entretanto encerrou) são dos poucos casos em que cozinha e vanguarda coexistem. É precisamente nesse campeonato que o Cardume surge — e a querer furar caminho.
Quando André Fragoeiro deu o “sim” para esta mudança de vida, nunca tinha ido aos Açores. “Primeiro vim cá de férias uma semana. Eu nunca tinha vindo aos Açores, sequer”, explica. Sem contar com a família, que está toda no continente, André diz que não tinha nada que o prendesse em Lisboa, daí não ter custado deixá-la para trás — “tinha amigos e isso, mas também na altura, dentro do meu grupo, tinha pessoal que ia trabalhar para a Dinamarca, outros para Banguecoque…”. André descreve-se como sendo alguém que gosta muito “de estar sossegado”, é “um gajo um bocado solitário” que gosta “de ler, estudar, pesquisar, ir para o mato procurar coisas”, daí que mal aterrou em março de 2019, atirou-se de cabeça a tudo o que a ilha tinha para dar. “Nos meus primeiros tempos aqui fiz um levantamento de produto do caraças. Basicamente, tudo o que existisse e dependesse de oxigénio e água para sobreviver, eu apanhava para experimentar”, atira.
Por muito que já tivesse uma ideia de alguns produtos de excelência da ilha — “no Eleven trabalhávamos muito com peixe dos Açores” –, o “choque” com a gigantesca oferta de ingredientes da ilha foi uma surpresa mais que positiva — “os recursos naturais daqui são uma coisa indescritível” — e André não punha qualquer travão no seu caminho para os descobrir: “Eles chamavam-me maluquinho porque às vezes passavam por mim na rua e ou estava metido no meio de um matagal ou num calhau a apanhar ervas e a provar coisas que encontrava pelo chão”, diz, sorrindo.
Esta vertente de explorador, por muito que André nunca tivesse pisado sequer a ilha entes de lá ir parar, não era totalmente nova. “Eu fui criado no campo, os meus tios eram produtores de gado e eram talhantes. A minha avó era padeira, o meu pai era sapateiro mas era tudo malta do campo, da lavoura. Comecei a mexer em carne com uns oito anos. Era o que gostava de fazer. Ao fim de semana, se não tinha nada para fazer ia ajudar para o talho, cortar jardineira ou algo assim. Com oito anos viravam-se para mim a dizer coisas tipo: ‘anda aprender a desmanchar um cabrito!'”, conta.
Na prática, os primeiros tempos no restaurante foram de assentar raízes e estruturar trabalho. “Começou tudo pelo esquematização, pelo pensar naquilo que queríamos fazer, entender como funcionava o ecossistema da zona”, explica. A partir daí começou o processo de desenvolvimento de receitas e daí em frente a locomotiva nunca mais abrandou. Foi “conhecendo mais fornecedores, mais pessoal interessante” do universo de produtores da região e o restaurante foi se transformando no tal laboratório criativo: “no outro dia acabei um caderno e pus me a olhar para aquilo e tinha uns 30 mil menus diferentes. No ano passado fizemos mais de mil e 100 pratos. Um ou outro somos capazes de ter mantido, porque eram muito apreciados, mas tentámos sempre fazer coisas novas”, reforça. Sempre orientado pelos princípios da sazonalidade, até a própria ilha o ajudou nessa missão criativa: “aqui nos Açores tens produtos diferentes o ano inteiro e consegues ter alguns que dão duas ou três vezes por ano. Araçás, goiabas… Quando tens muito e bom produto à tua volta, é ridículo mandares vir coisas de fora.”
A modernização pedida pelos clientes
Falar de criatividade é uma coisa, mostrá-la é outra — em ambos os casos, não há aqui motivo para vacilo. Se houve coisas positivas trazidas pelo impacto da pandemia e pelos períodos de confinamento, o tempo para testar e inovar foi uma delas, por muito que antes da Covid-19 chegar esse método já imperasse.
Outras novidades para comer
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O restaurante do Santa Bárbara Eco Beach Resort destacou-se desde o momento da sua abertura pela aposta na comida asiática, principlamente o sushi com peixe fresco dos Açores. Hoje, o conceito levou uma volta mas mantém-se fiel às raízes.
O chef André Santos, que veio do luxuoso Penha Longa Resort (onde mora o único restaurane japonês com estrela Michelin em Portugal, o Midori), em Sintra, é o novo responsável pela orientação gastronómica da casa que juntou às bases asiáticas nfluências de outras latitudes geográficas como a Índia ou a Tailândia. Com ele veio também a chef de pastelaria Maria Milagres, que compõe a nova oferta.
“A minha cena sempre foi estar virado para o produto e tentar mostrar aos locais que as coisas desta terra são muito boas, mas mal valorizadas”, explica o chef. Uma das coisas que mais o surpreendeu — para lá de abundância natural do território — foi o facto de “muita gente sentir que tem de vender as coisas a preços muito baixos porque não há procura”, quando, na realidade, há quem tenha “autênticos tesouros” mas acaba por “oferecê-los ou a dar aos porcos” porque não havia quem o valorizasse. Um exemplo disso? “Há um queijo que eu adoro, que vendem aí na Queijaria, em Lisboa, que é o Brilhante. Ele é feito por uma senhora daqui que o faz quase por brincadeira”, explica. E porque é que isto acontece? André acredita que tenha a ver com uma perceção cultural do ato de comer. “As pessoas aqui trabalham duro — no campo, no mar, com o gado — por isso a ideia predominante é comer o máximo possível para ter força para aguentar um dia de trabalho pesado”, daí não estar tão assente a ideia de que ir a um restaurante pode ser desfrutar de uma experiência e não apenas comer como base de sobrevivência. Ainda assim, isso está a mudar.
“Felizmente já há um nicho de pessoas que estão dispostas a experimentar cozinhas novas e produtos diferente, […] que já têm uma visão de interesse gastronómico”, assinala. Nos momentos de desconfinamento, por exemplo, em que o restaurante começou a receber mais clientes locais, notou-se não só um maior interesse motivado pelo tempo todo que muita gente ficou impedido de ir a restaurantes mas também se percebe que o tal “nicho” é composto “curiosos da cozinha, que gostam de experimentar coisas em casa” e na interação com os chefs acabam por desafiá-los — “acaba por criar uma espécie de despique entre o cliente e o setor, algo que chama uma maior modernização. Os clientes vão pedindo isso!”
O peixe maturado e o guru do Japão
Mas vamos ao que interessa, a comida. André já fez de tudo um pouco, no seu Cardume. De cervejas artesanais a queijos com curas personalizadas feitas com brandy que o próprio, claro, também fez — o chamado processo da casca lavada, utilizado para fazer os queijos brie que, neste caso, André fez com o amanteigado do Pico. De entre os pratos que destaca, por exemplo, está uma receita inspirada nas papas de milho tradicionais nos Açores a que André deu um toque mexicano: “Na carta fixa [que vai começar em breve a entrar em vigor, antes havia só menu de degustação] pus alguns pratos que fui fazendo e que sentimos que funcionavam super bem. Um deles foi umas papas de milho. Fiz carnitas de porco, tipo barbacoa mexicana, com bastante sumo de laranja, marinadas longas… Depois fiz umas papas de milho com milho que torrei muito, quase como se fosse para fazer um bourbon, e depois transformei em farinha para fazer a papa. Quase sabia a pipoca. Cozi aquilo com caldo de pato e ficou uma bomba, super cremoso.”
A lista de pratos é interminável. Mais recentemente, à boleia do último confinamento, André diz que aposta em fazer “uns fermentados diferentes, umas conservas de peixe” como a de sangacho de atum, “que é uma parte do peixe que as pessoas não costumam gostar muito”, mas André adora. É no reino dos mares, também, que se encontra outra recente aposta do seu trabalho: a maturação de peixe. “Ultimamente tenho estado muito virado para a maturação de peixe. Não é uma coisa muito comum aqui na ilha”, refere. Levado pelo entusiasmo de quem vibra com a pesquisa e a novidade, Fragoeiro explica que a maturação de que fala é um processo mais complicado do que aquele que também se faz com carne, por exemplo, “porque o peixe desenvolve bactérias mais rapidamente e é muito mais perecível”. O chef regressa ao atum para dar um exemplo mais concreto: “Maturar atum é um grande trinta e um por causa do ferro. É um peixe com imenso ferro porque tem muito sangue e se não tiveres cuidado podes ficar com um sabor férreo muito intenso, é preciso um controlo muito grande”, explica. Recentemente diz ter feito um prato com cavala maturada por trinta dias que deixaram os clientes rendidos. “A cavala fica com uma textura completamente diferente! Deixa de ser aquele peixe que lasca muito bem porque o processo das enzimas partem a proteína e a fibra e aquilo fica com uma textura quase tipo toucinho. Quase que se derrete na boca.”
André Fragoeiro diz que prefere sempre tentar aprender primeiro por si, lendo e pesquisando, e só depois, se for preciso, tentar falar com alguém que perceba mais que ele de determinado assunto. Foi isso que aconteceu com a maturação de peixe: “Falei com o Liwei Liao, o guru da maturação de peixe. Ele trabalha na Tailândia e tem também uns projetos em Nova Iorque. Ele é brutal, não guarda segredos para ele e disse-me logo para fazer assim e assado”. Foi através do Instagram que Andre conseguiu estabelecer contacto com o tal especialista — “Já o seguia há algum tempo e por acaso até foi por causa dele que tive curiosidade de experimentar a maturação de peixe”.
De volta à horta que serve a propriedade, André explica que também ela foi fonte de inspiração. Nos últimos tempos “cresceu de forma brutal”, principalmente durante o confinamento, altura em que o grupo hoteleiro não tinha os restaurantes com capacidade de dar vazão ao que era produzido, o que obrigou a puxar pela cabeça. “Aproveitámos tudo ao máximo, fizemos cabazes para o staff, por exemplo, mas aquilo não parava de crescer [risos]! Fiz ainda fermentados como kimchi, chucrute, pickles em caldas e lactofermentações.”
Tudo isto culmina agora num menu fixo, que está a ser afinado e entrará em breve em vigor, que se junta a uma aposta feita na altura do primeiro desconfinamento: menus curtos, de entrada, prato e sobremesa a 35€ (sem bebidas). Por muito que tenha sido dada uma pausa nos menus de degustação, a criatividade está aí para ficar.
O Observador viajou a convite da Singular Properties