Até 23 de fevereiro, depois de ter sido lançada oficialmente a 1 de setembro de 2020, a app de rastreio Stayaway Covid registou pouco mais de três milhões de downloads (3.068.978). Destes, 2.203.823 foram feitos através da PlayStore, a loja de aplicações do sistema operativo Android; 576.312 foram através da App Store, do iOS; e 288.843 da montra de apps para os Huawei.
O INESC TEC (Instituto de Engenharia de Sistemas e Computadores, Tecnologia e Ciência), que foi responsável pela conceção da StayAway Covid, estima que, deste número, 46% correspondam a “aplicações ativas”. Ou seja, pouco mais de 1,4 milhões estão ainda operacionais. E, até à mesma data, foram emitidos 14.604 códigos que serviam para os utilizadores informarem o sistema de que tinham tido um teste positivo à Covid-19. Destes, apenas 3.128 foram realmente introduzidos na app. Estes dados foram avançados ao Observador por fonte do INESC TEC.
Quando comparamos este número com os 738.994 novos casos que foram confirmados em Portugal até ao final da semana passada, percebemos que é reduzido. A verdade é que, apesar de o primeiro-ministro ter deixado de referir a app nos seus discursos e intervenções públicas, como antes fazia — tendo até chegado a assinalar que poderia ser obrigatória –, a aplicação continua disponível. Mesmo assim, não foi a solução prometida para impedir novos confinamentos.
Questionado sobre a ausência da aplicação de rastreio do discurso político, o INESC TEC não comenta e remete essa questão para o primeiro-ministro. Até à hora de publicação deste artigo, o gabinete de António Costa não respondeu às várias questões enviadas pelo Observador. Já fonte do INESC TEC diz: “A aceitação por parte da população portuguesa foi ótima e totalmente em linha com os restantes países europeus”. No entanto, continua: “O sistema, como um todo, infelizmente não esteve à altura das expectativas da população”.
E quais eram essas expetativas? De acordo com as explicações do Governo a 1 de setembro, a Stayaway Covid serviria para apoiar na luta contra a pandemia. “Ontem tive a oportunidade de descarregar a app”, disse António Costa na apresentação oficial, mostrando, no púlpito de um auditório com cerca de 60 pessoas, o ecrã com uma luz verde do seu smartphone — sinal de que não estava infetado nem tinha recebido qualquer alerta de que esteve em contacto com alguém diagnosticado com o novo coronavírus, durante mais de 15 minutos, nas ultimas 48 horas e a menos de dois metros de distância. “Só assim podemos interromper rapidamente a cadeia de contaminação”, sublinhava também.
António Costa já descarregou a app Stayway Covid, ministra da Saúde está “em processo”
Costa foi mais longe e garantiu que as pessoas não deviam “ter receio” de instalar a Stayaway Covid, sendo esta uma opção voluntária e completamente segura. “Não dá para engraçadinhos fazerem partidas”, assegurou, acrescentando que o utilizador só pode dar o alerta do risco de contaminação ao usar um código de 12 dígitos, válido durante 24 horas e cedido pelo médico, não havendo, por isso, “falsos alertas”. Luís Góis Pinheiro, presidente do conselho de administração dos Serviços Partilhados do Ministério da Saúde, explicava que o código atribuído pelos profissionais de saúde aos doentes, graças à “ferramenta agregadora” Trace Covid-19, permitiria pôr tudo a funcionar. O que aconteceu a seguir já é passado.
Falta de códigos, problemas de instalação e, afinal, é obrigatória? “Nunca se explicou bem às pessoas”
Paulo Ferreira dos Santos, presidente executivo da Ubirider, responsável pela interface da Stayaway Covid é perentório quanto ao que correu mal. “Nunca se explicou bem às pessoas”, afirma. O engenheiro informático afirma que estes números reduzidos de códigos introduzidos são resultado de uma comunicação fraca do governo desde o início. “Uma coisa que me deixou surpreendido no lançamento da aplicação foi a ministra da Saúde ter dito que esteve uma parte da noite a fazer download da app e não conseguiu”, lembra. “Quase que senti que dizia: ‘Este produto não é o meu’”.
E este não foi o único problema. Em outubro de 2020, Paulo Ferreira dos Santos assumiu ao Observador ter ficado “incrédulo” com a possibilidade de a aplicação se tornar obrigatória, sugerida pelo próprio Governo. “A machadada final foi torná-la obrigatória — foi o argumento final [para quem dizia que a app só tinha problemas]”, refere. “Recebemos comentários de utilizadores que achavam que lhes iam fiscalizar os impostos”, adianta.
Costa também tem dúvidas sobre obrigatoriedade da Stayway Covid
A aplicação permaneceu voluntária, mas protagonizou num episódio político que levou o primeiro-ministro a contradizer-se e o presidente do INESC TEC, José Manuel Mendonça, a dizer à Rádio Renascença que não se sentia “confortável” com a medida. “Acontece e é como tudo. Se tenho um carro para vender e disser que o carro dá problemas e a meio nem o dono que vende o carro acha o carro bom, o melhor é nem o comprar”, diz Paulo Ferreira dos Santos.
Criadores da app estão “desconfortáveis” e “incrédulos”. Obrigatória? “Não é exequível”, garantem
Mas este não foi o único problema da StayAway Covid. Depois das falhas na comunicação, os códigos. Para tudo funcionar e garantir a privacidade dos utilizadores, quem estava responsável por estes números eram os médicos, que tinham de registar “dois dados importantes”, explicou em setembro Luís Góis Pinheiro. Os dados eram a “data do início de sintomas ou a data da realização do teste, no caso dos assintomáticos”. Parece um procedimento simples, mas revelou-se mais complicado do que se estimava.
Desde o início da ativação da app que se conheciam relatos de médicos a queixarem-se de que não tinham sido devidamente informados, ou que não tinham sido ensinados a mexer com o sistema logo. A meio de janeiro, José Manuel Mendonça dizia ao Público que “não há códigos, porque os médicos estão mal informados sobre a forma como a app funciona e onde se encontram os códigos”. E adiantou: “Desde que a aplicação foi lançada que há médicos que nos contactam a pedir ajuda. Não deveria ser assim”. Em outubro de 2020, o mesmo jornal noticiou várias queixas de demoras e erros.
Mesmo assim, Mendonça deixava parte da responsabilidade também para os médicos: “Se não o veem [o código onde carregar para emitir um código a pessoas Covid positivo], é porque não sabem onde procurar”. O Observador tentou contactar a Ordem dos Médicos sobre as atuais queixas dos profissionais de saúde e críticas do presidente do INESC TEC, mas não obteve resposta até à publicação deste artigo.
Esta terá sido a razão para pouco mais de três mil códigos terem sido realmente colocados na app. Mesmo que uma pessoa queira avisar o sistema de que está infetado após um resultado positivo, se não tiver este código não o pode fazer, lembra Ferreira dos Santos.
Além destes problemas, a sensação que este engenheiro tem é de que o Governo deixou de investir no projeto. Exemplo disso é que em cima da mesa da Stayaway Covid — que desde que foi lançada até ganhou uma versão para o sistema operativo Huawei (tinha sido só lançada para iOS e Android) — ainda está a questão da interoperabilidade com as apps europeias.
Em janeiro, a Comissão Nacional de Proteção de Dados (CNPD) afirmava ao Público que tinha havido uma reunião sobre a interoperabilidade das aplicações que podia implicar alterações à app. Uma das mudanças passaria mesmo por ter de alterar o sistema de submissão de Códigos. Contudo, até à data, e de acordo com o que diz a CNPD, os Serviços Partilhados do Ministério da Saúde (SPMS), responsáveis pela plataformas dos médicos, não submeteram mais nenhum documento de impacto. Como explica esta entidade, podem existir mudanças sem pronúncia à CNPD. Porém, sendo mudanças que podem afetar dados pessoais — como é o caso da interoperabilidade com as apps europeias — o processo parece parado sem novo documento de avaliação de impacto para controlo prévio.
Ainda há esperança para a StayAway Covid?
Apesar dos problemas e da ausência do discurso político, a app Stayaway continua disponível. “Se olharmos para outros países, como por exemplo, a Finlândia, em pouco tempo as pessoas aderiram à app e usaram os códigos para identificar onde estava cada caso”, diz Paulo Ferreira dos Santos. “Sou uma pessoa otimista. Acho que não é tarde [para melhorar a utilização da app]. Agora, isto implica toda uma mudança. Estamos perante um problema de comunicação interessante: pegar num fracasso e fazer um sucesso”, continua. E desabafa: “É claro para todos que, com vacinas ou sem vacinas, ainda vamos ter um período de insegurança e esta app podia ter um papel importante. Mas isso passa por uma coisa difícil. Em 56 anos de vida — eu tinha 10 no 25 de abril –, não me lembro de ver um político em Portugal, seja ele quem for, a dizer: ‘Eu errei, eu fiz isto, não correu como esperava, agora vou fazer de uma forma diferente. Ou dizer: ‘Aprendi com o processo e vou melhorar’”.
Portugal não é o único país no qual que houve problemas. Aliás, em Espanha, a mesma questão foi notícia na terça-feira. Como contou o El País, “os responsáveis de saúde pública espanhola não acreditavam que uma app como o Radar Covid [a congénere espanhola da Stayaway Covid] ajudaria muito contra a pandemia”.
Os números nesse país são, aliás, semelhantes a Portugal: “Embora ninguém queira falar oficialmente em fracasso, os dados são conclusivos: a app espanhola regista menos de 2% dos casos positivos”. Em dezembro, em Espanha, o problema era assumido em reuniões governamentais, diz o mesmo jornal. As razões são as mesmas que em Portugal: “obstáculos” no lançamento, ceticismo das entidades de Saúde e problemas com os códigos. Os mesmos problemas são apontados também noutros países, como França ou Itália: “Ninguém se orgulha dos resultados”.
Mesmo assim, há casos de sucesso. No Reino Unido, um dos primeiros países a lançar uma aplicação de rastreio à Covid-19, um estudo publicado a 9 de fevereiro, que envolveu investigadores de vários institutos e universidades, como a Universidade de Oxford ou o instituto Alan Turing, mostra um cenário diferente. De acordo com estes dados, estima-se que a app britânica tenha evitado entre 300 mil a 600 mil novos casos e entre quatro mil a oito mil mortes.
Agora, no Reino Unido cerca de 50 mil pessoas avisaram o sistema de que estavam infetadas. À semelhança da Finlândia, como referiu Paulo Ferreira do Santos, o Reino Unido teve uma infraestrutura para inserção de códigos na app que permitiu que esta tecnologia fosse mais eficiente para auxiliar no combate à Covid-19.
Em Portugal, em dezembro, quando a app ainda fazia parte do discurso político, os números poderiam ser animadores: “30% das pessoas que recebem o código usam-no e isto é uma referência de outros países também. Aqueles que usam o código em Portugal estão na média de outros países”. Na altura, nesse mês natalício havia mais de 2 milhões de downloads da app e 4 mil códigos gerados. Destes, mais de um quarto tinha sido introduzido (cerca de 1300), um número que não se manteve, pelo menos até agora, proporcional com ao número de aumento dos casos divulgados.