Nem o desemprego provocado pela pandemia ajudou a deslocar alguns trabalhadores dos setores mais afetados, como o turismo ou a restauração, para um dos que nunca parou (e que mais tem relatado escassez de mão de obra, ainda antes da atual crise): a construção. A situação no setor é “quase” dramática, descreve Nuno Garcia, diretor-geral da gestora de obras GesConsult, ao Observador. De tal forma que as empresas têm de recusar trabalho por não arranjarem quem o faça. Ou quem o faça a horas.
“Obviamente que quem está no mercado faz todos os possíveis para não ter de recusar trabalhos, mas hoje cumprir um prazo é muito difícil. Tenta-se, por exemplo, contratar carpinteiros, mas dizem que só conseguem entrar daqui a dois meses. Se pedir hoje para amanhã, não vai arranjar. E quando chegamos à data para realizar a obra, há outros trabalhos atrasados”, conta ao Observador. Esses atrasos já têm levado a quebras contratuais. “A situação obriga a um planeamento muito grande. É quase um drama que vivemos hoje.” A perspetiva de chegada dos fundos da “bazuca” para obras públicas e de eficiência energética vem, por isso, acrescentar uma dúvida: quem as vai fazer?
As dificuldades encontradas por Nuno Garcia e outros empresários da construção já vinham de trás e nem o aumento do número de desempregados noutros setores (ou a perspetiva da chegada de fundos europeus) ajudou a mudar a equação. Nem aqui nem noutros setores, onde a escassez de mão de obra é cada vez mais um problema.
Um estudo realizado pela ManpowerGroup, especializada em recursos humanos, diz isso mesmo: em 2021, três em cada cinco (60%) empregadores entrevistados em Portugal assumem dificuldade em contratar por falta de trabalhadores com as competências que procuram. São três pontos percentuais acima do registado em 2019 (não há dados para 2020) e é o valor mais alto desde que os dados começaram a ser recolhidos em Portugal, em 2016. O problema é mais expressivo em funções de operações e logística (25%) e na indústria e produção (20%), aponta o estudo, a que o Observador teve acesso, e que abrangeu empresas da construção, finanças, seguros, imobiliárias, indústria, serviços, restauração e hotelaria e retalho.
A pandemia só veio “acelerar” uma tendência que já vinha de trás: o agravamento da “escassez de talento”, com as competências oferecidas pelo mercado a não conseguirem acompanhar a procura, indica ao Observador Rui Teixeira, diretor-geral de operações da ManpowerGroup. “Isso vê-se nas profissões com maior procura: a logística, que tem muito a ver com as compras virtuais, mas também as tecnologias de informação por força da desmaterialização dos processos e da transformação digital”. As baixas qualificações para responder a estas ofertas não explicam tudo: os (baixos) salários também pesam, e muito.
Ainda o problema dos salários
“Sabemos que há uma correlação. Os salários em alguns destes setores são, muitas vezes, próximos do salário mínimo nacional. Naturalmente, os trabalhadores procuram melhores salários” na hora de escolher trabalho, nota Rui Teixeira. No setor da construção esse problema é particularmente evidente, quando lá fora facilmente os mesmos trabalhadores conseguem ganhar o dobro ou mais a fazer o mesmo trabalho. “É difícil competir com isso“, diz, por sua vez, Nuno Garcia, da GesConsult. O mesmo se aplica a áreas altamente especializadas, como a engenharia ou tecnologias de informação.
Esta falta de trabalhadores é transversal a toda a hierarquia da construção, desde os ajudantes de obras aos carpinteiros e aos engenheiros, o que Nuno Garcia atribui à falta de formação, à emigração de trabalhadores que não quiseram regressar e ao “estigma” (“Ainda se vê o setor da construção como o último reduto“, considera). João Cerejeira, economista especialista em mercado de trabalho, aponta um outro: as restrições à mobilidade durante a pandemia que afastaram muita mão-de-obra imigrante, importante no setor.
Os dados mais recentes do Ministério do Trabalho mostram que, nos primeiros três meses de 2021, ano ainda fortemente marcado pela pandemia, o número de empregos vagos disparou 39,7% face ao mesmo período do ano anterior (um período em que tinha descido muito, numa tendência que se manteve ao longo do ano de 2020). Em termos relativos, a taxa de empregos vagos (ou seja, o peso dos trabalhos vagos em todo o emprego) foi de 0,8%, mais duas décimas do que nos mesmos três meses de 2020. As atividades de informação e comunicação, as atividades administrativas e dos serviços de apoio e as atividades imobiliárias são as que têm maiores taxas de emprego vagos. Em quarto lugar vem a construção. Porquê?
As atividades de informação e comunicação, que lideram a estatística, estão entre as que mais cresceram na pandemia, a par da saúde e até da construção, observa o economista João Cerejeira. O problema é que continua a não haver trabalhadores qualificados suficientes para ocupar essas vagas. Deslocar pessoas de outros setores também seria tarefa difícil pelas exigências de formação ou experiência prolongada. “Os trabalhadores de setores onde houve crise — a restauração, a hotelaria — dificilmente conseguem ser mobilizados para os setores que estão a crescer porque requerem competências muito específicas, exigem períodos de formação longos, não é algo do dia para a noite”, refere o economista da Universidade do Minho.
Nestes setores com maior carência de profissionais é expectável que os salários médios venham a subir “se houver uma pressão grande da procura”. Na construção, pelo menos, isso já se vê: segundo as estatísticas do Ministério do Trabalho sobre as remunerações do setor, em janeiro de 2021 o salário médio atingiu 1.023 euros, mais 2,6% face a janeiro de 2020. A expetativa, diz João Cerejeira, é que a tendência se mantenha nos próximos tempos, sobretudo numa altura em que as verbas do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) comecem a chegar a Portugal. Parte importante destes fundos irá para obras públicas.
Subsídios da pandemia desincentivaram procura de emprego? Economistas divergem
Essa é uma pergunta que tem colocado economistas, democratas e republicanos, em dois lados da barricada nos EUA, um país onde os apoios ao desemprego foram reforçados durante a pandemia para garantir que ninguém ficava de fora. O governo federal optou por dar um subsídio extra igual para os desempregados de todos os Estados: inicialmente de 600 dólares, em 2021 baixou para 300, atribuídos a par do próprio subsídio de desemprego ou de outros apoios para trabalhadores tradicionalmente excluídos das redes de apoio ou do prolongamento de subsídios de desemprego. Um dos argumentos é que os apoios, “demasiado generosos”, estão a desincentivar a procura de emprego, tanto que alguns Estados já anunciaram o seu fim. Mas a tese está longe de ser consensual.
Por cá, a dimensão de ajudas foi diferente: os subsídios de desemprego foram prolongados, mas não aumentados (só o patamar mínimo do subsídio de desemprego, que subiu 65,8 euros, mas a medida não está relacionada com a pandemia e é definitiva). Para os trabalhadores da chamada economia informal foi criado um apoio, mas nem chegou aos 450 euros. Por outro lado, desemprego à parte, o layoff passou a ser pago a 100% este ano, e em muitos casos os despedimentos provocados pela crise deram direito a indemnizações que permitiram “a muitas pessoas uma capacidade de terem algum dinheiro de lado que lhes tem permitido não ir logo para o mercado” e esperar por empregos com melhores condições salariais, refere ao Observador Filipe Garcia, economista da IMF – Informação de Mercados Financeiros.
Um outro argumento coloca a ênfase nos baixos salários: são estes e não os subsídios que estão a desincentivar à procura de trabalho, defendem. Ao Observador, Miguel Faria e Castro, economista português a trabalhar na Reserva Federal de St. Louis (Missouri), nos EUA, explica que esta ideia ganha terreno no país. Antes da pandemia, os setores tendencialmente menos qualificados, como a restauração ou a hotelaria, eram ocupados sobretudo por jovens, uma realidade semelhante à de Portugal. Mas enquanto que em Portugal o setor voltou a contratar quando a economia começou a abrir, nos EUA essa recuperação não aconteceu tão rapidamente como se esperava.
“Muitos dos problemas da escassez de mão de obra nos EUA estão a acontecer nesses setores. O que muita gente diz é que são setores que pagam salários muito baixos. O problema aqui é que quando uma pessoa está a pensar se volta ou não ao trabalho, começa a fazer contas: ‘Vou estar ali a receber aquela miséria de salário para estar a expor-me potencialmente ao vírus…’ Eu acho que, no fundo, acaba por ser uma mistura de fatores”. Como o medo, que “não compensa o custo potencial”, afirma. Com esta escassez, “estaríamos à espera que os patrões aumentassem salários para tentar compensar as pessoas por esse risco adicional, mas não se tem visto muita pressão salarial”, afirma o economista.
À CNN, Sandra Warden, responsável da Dehoga, uma organização que representa o setor da hotelaria e da restauração na Alemanha, acrescenta que muitos trabalhadores do setor simplesmente mudaram para empresas menos propícias a fechar no curto prazo, como supermercados ou logística, que se desenvolveram com as compras online. Muitos deles já não deverão voltar. “Sabemos pelos nossos membros e também de trabalhadores que muitos deles estão a pensar voltar ao trabalho, que estão satisfeitos com um regresso aos restauração e hotéis, mas também achamos que há trabalhadores que não vão voltar. Encontraram melhores empregos.” Nos EUA, empresas como a Amazon ou a cadeia de restaurantes Chipotle estão a aumentar os salários dos trabalhadores para atrair trabalhadores — e impedi-los de irem para os concorrentes.
Esse efeito de aumento de salários nalguns setores para responder à escassez de mão de obra pode ser acompanhado de outro, refere o economista Filipe Garcia, da IMF. Num artigo de opinião no Jornal Económico, fala numa “crescente intensificação dos processos de digitalização e mecanização em todos os negócios”, que pode levar a mais desemprego. Ao Observador, completa a ideia: “A pandemia é um acelerador de tendências. Há uma tendência a nível global para tentar depender cada vez menos do trabalho. Aliás, acho até que, no futuro, isto vai ser de tal maneira um problema que vamos ver governos a tentar taxar cada vez mais os negócios para entregar sob a forma de subsídios às pessoas.”
Subsídios, salários baixos, reformas, escolas fechadas. A receita para a escassez nos EUA
Em termos globais, os dados da ManpowerGroup mostram que o problema da escassez de talento está a aumentar de ano para ano em todo o mundo: 69% das empresas entrevistadas reconheceram dificuldades em encontrar trabalhadores, mais 38 pontos percentuais do que em 2010. Os EUA é o país com a expetativa de contratação nos próximos meses mais alta, mas os dados até aqui disponíveis revelam uma recuperação mais tremida do que se esperava.
A taxa de desemprego do país vinha de mínimos históricos até à chegada da pandemia: em janeiro, estava nos 3,5%. A pandemia veio trocar as voltas e os confinamentos e encerramentos de negócios fizeram a taxa disparar para perto dos 15%. Os meses seguintes foram de paulatina recuperação, até que em abril de 2021 se voltou a verificar um ligeiro aumento. Nesse mês, a criação de emprego ficou muito aquém das estimativas dos economistas. Muito mesmo.
Várias previsões apontavam para um caminho, de forma praticamente consensual: abril deveria trazer “um milhão ou mais” de novos empregos, como antecipava, com base em previsões de economistas, este texto da CNBC (“Novos empregos em abril devem ultrapassar o milhão à medida que os consumidores impulsionam a economia”) ou este da Reuters (“Economia dos EUA terá criado quase um milhão de empregos em abril”). Mas as estimativas não podiam estar mais erradas. Para espanto de muitos, abril só trouxe mais 266.000 postos de trabalho. Os enganos não ficaram por aqui e maio voltou a surpreender pela negativa: segundo a CNN, esperava-se que fossem criados mais 650.000 empregos, mas a realidade ficou nos 559.000. A imprensa e os economistas norte-americanos apressaram-se a falar numa “escassez de mão-de-obra”.
“Muita gente achava que, no início de 2021, a economia ia ‘rebentar’ no bom sentido. O que temos visto é que a economia tem acrescentado postos de trabalho, mas não como se estava à espera. Nesse aspeto, os números têm sido um bocado dececionantes. Está a correr bem, mas a maior parte das previsões apontavam para uma recuperação mais rápida”, nota Miguel Faria e Castro.
Desemprego. Porque é que os EUA recuperam rapidamente e Portugal não?
Vários economistas, diz Miguel Faria e Castro, defendem que a questão dos subsídios “é só uma parte da história”. Muitos outros fatores podem estar em jogo. Por um lado, a situação sanitária, que continua a afastar muitas pessoas do mercado de trabalho por receio de se infetarem. “Em grande parte dos EUA, a situação de saúde pública está a piorar. Isso desincentiva principalmente em profissões que envolvem mais contacto físico. As pessoas têm medo, preferem não ir trabalhar para um hotel ou restaurante onde vão muitas pessoas que não estão vacinadas.”
Acresce que nas escolas e nas creches, “a situação ainda não está completamente estabilizada” e, à semelhança do que acontece em Portugal, surtos ou contactos com casos positivos levam ao encerramento dos estabelecimentos. “Isso é um custo enorme, sobretudo para as mulheres. Temos dados que apontam que tem havido um regresso mais fraco das mulheres ao mercado de trabalho. Responsabilidades familiares e o facto de não conseguirem mandar as crianças para a escola pode estar a desempenhar um papel”, explica.
Além disso, muitos trabalhadores mais velhos (e que tinham voltado ao emprego após a crise financeira) reformaram-se durante a pandemia por receio de contágio ou pela recuperação dos fundos de pensões — e já não deverão voltar ao mercado de trabalho. “Há muita gente que alega que a principal razão pela qual a taxa de desemprego ainda não recuperou completamente é simplesmente porque tivemos esta pessoas mais velhas que, em circunstâncias normais não estariam na força de trabalho, mas que por algum motivo entraram entre a Grande Recessão e a Covid, e agora voltaram a sair”, aponta.
Em junho, os números já mostram um recuperação mais otimista, com a criação de 850.000 empregos, muito por via da hotelaria e do turismo. Mas há um indicador que ainda falta conhecer, dos empregos vagos. Os dados de maio mostravam que o problema da escassez podia ainda estar muito longe de terminar. É que o número de empregos vagos atingiu um novo recorde nesse mês, escreve a Bloomberg, “evidenciando dificuldades de contratação persistentes e refletindo mais vagas na saúde, educação e hotelaria e restauração”. O número de empregos vagos subiu de 9,19 milhões em abril para 9,21 milhões em maio.