Abril de 2007. Arianna Huffington, uma das mulheres mais bem-sucedidas nos Estados Unidos da América e a fundadora do jornal online The Huffington Post, recuperava a consciência depois de ter desmaiado, sem aviso, em pleno escritório. O corpo não aguentou mais as noites sem dormir e o cansaço a que estava sujeito a bem do sucesso profissional. Huffington, então com 56 anos, acordou numa poça de sangue depois de, na queda, ter partido o maxilar. Assim começou uma nova etapa para aquela que já chegou a ser considerada uma das 100 personalidades mais influentes do mundo, e uma das mulheres mais poderosas da atualidade, pela Forbes.
O valente susto despertou-a para as fragilidades do corpo e da mente, pelo que a partir de 2007 Arianna começou a dedicar-se cada vez mais ao equilíbrio entre a vida profissional e pessoal, que é continuamente ameaçado nas sociedades modernas em que vivemos. Exemplo dessa preocupação é o bestseller norte-americano A Revolução do Sono, que acaba de ser traduzido para português. No livro, a autora cita inúmeros estudos científicos que revelam a importância de dormir bem, mas apresenta também os perigos dos comprimidos para dormir e os problemas de saúde associados à privação de sono, condição em que não se dorme o suficiente para o organismo recuperar.
Em entrevista por e-mail ao Observador, Huffington explica qual o seu ritual de sono, tece críticas às sociedades que olham para a privação de sono como parte do caminho para alcançar o sucesso profissional e admite que é “particularmente difícil ir contra uma cultura predominante que ainda mantém, num formato coletivo, estes delírios perigosos sobre o sono”.
Comecemos pelo início: abril de 2007 foi o seu ponto de viragem, quando desmaiou e acordou numa poça de sangue. Como era Arianna Huffington antes dessa data e como é hoje?
Antes disso eu era uma daquelas pessoas que acreditava na nossa ilusão coletiva de que o burnout é necessário para o sucesso. Acreditava que o [jornal] Huffington tinha sido bem-sucedido devido ao trabalho em excesso e à privação de sono. Hoje sou uma pessoa que percebe que qualquer sucesso que tive a sorte de alcançar foi apesar — e não por causa — do excesso de trabalho e do burnout. Agora sou uma pessoa que percebe que somos mais produtivos, mais criativos, mais presentes e tomamos [melhores] decisões quando damos prioridade ao nosso bem-estar. E, claro, isso é o que a ciência mostra claramente.
O que é o "burnout"
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O burnout pode ser entendido como um estado de exaustão emocional, sem que haja qualquer sentimento de realização profissional. É conhecido também como a síndrome de exaustão profissional.
O livro parece uma ode ao sono. Tem algum ritual antes de ir dormir? E quando o despertador toca, carrega no snooze?
Não uso o botão snooze — se temos uma vontade imensa de carregar no snooze quando o despertador toca, isso é um sinal de que não estamos a dormir o suficiente. Mas sim, tenho um ritual antes de ir dormir, uma coisa que toda a gente deveria ter, porque [o ritual] diz ao corpo e à mente que é hora de começar a dizer adeus ao dia e preparar-se para dormir.
Todos têm um ritual diferente. Eu começo por desligar todos os meus aparelhos eletrónicos e, gentilmente, escolto-os para fora do meu quarto. Depois, tomo um banho quente com uma vela por perto — um banho que eu prolongo se me estiver a sentir ansiosa ou se estiver preocupada com alguma coisa. Já não durmo com as minhas roupas de treino (isso manda mensagens contraditórias aos nossos cérebros), mas tenho pijamas, camisas de noite e t-shirts para dormir. Às vezes bebo uma chávena de chá de camomila ou de lavanda se quero uma coisa quente e reconfortante antes de me deitar. Adoro ler livros reais e físicos, sobretudo poesia, romances e livros que não têm nada que ver com o trabalho.
No livro escreve que existe um nível de cansaço tão grande que, por vezes, as pessoas acabam por não notar que estão cansadas. Como assim? Antes de 2007 era uma dessas pessoas?
Eu era definitivamente uma dessas pessoas antes de 2007. Quando tive um colapso não tive qualquer aviso — sabia que estava cansada, mas não sabia que estava prestes a desmaiar. Estar-se cansado e sem dormir diminui grandemente todas as nossas funções cognitivas — a tomada de decisões, o nosso julgamento e a capacidade de nos ligarmos aos outros. A maior parte das vezes não sabemos que estamos cansados. É por isso que não devemos esperar por um colapso para fazer mudanças nas nossas vidas.
Na App Store da Apple há milhares de aplicações associadas ao ato de dormir. No Google há milhões de resultados quando se procura pela mesma palavra. Resumindo: procuramos ajuda para dormir através das mesmas ferramentas do mundo moderno que, muitas vezes, nos limitam as horas dedicadas ao sono. Não é irónico?
É sim, e a tecnologia é definitivamente um dos motores da nossa cultura moderna de burnout e excesso de trabalho. O ritmo de vida e as mudanças que as tecnologias ditam são difíceis, impossíveis até, de acompanhar. Mas a tecnologia também permitiu avanços incríveis — é claro que não vamos voltar atrás. Não ter tecnologia não é a resposta. A resposta é ter melhor tecnologia, tecnologia que nos permite controlar a tecnologia em vez de ser esta a controlar-nos. Agora há muitas startups que usam a tecnologia para nos ajudar a ter uma relação mais saudável com a tecnologia. Essa é uma das próxima fronteiras em tech — ferramentas, aplicações e produtos que nos ajudam a proteger e cuidar do que é realmente humano.
Não dormir horas suficientes é hoje encarado como uma forma de alcançar o sucesso. Quando é que começámos a pôr a carreira acima da nossa saúde e porquê?
No mundo antigo, o sono era reverenciado e venerado através de tradições, culturas e religiões. Mas isto mudou drasticamente com a Revolução Industrial, quando a luz artificial permitiu que a noite fosse colonizada e a mecanização permitiu que as nossas horas de sono fossem rentabilizadas. Assim, o sono tornou-se mais uma mercadoria a ser explorada — não foi apenas desvalorizado, como também ativamente desprezado e visto enquanto tempo de ociosidade durante o qual não se trabalhava. Hoje sabemos, através da ciência, que se realmente queremos pôr a nossa carreira em primeiro lugar, é no ato de dormir — por causa dos seus efeitos na performance e na produtividade — que devemos começar.
As horas a mais passadas no local de trabalho, mesmo que isso signifique menos tempo para dormir, ainda são muito valorizadas e associadas à produtividade. Mas não é bem assim: o presentismo e o absentismo são bem reais. Alguma vez assistiu a isso no jornal que ajudou a fundar? E que tipo de preocupações chegou a ter com a higiene do sono dos seus colaboradores?
Sim, a privação do sono — por causa do presentismo e do absentismo — é um grande problema no mundo do trabalho, que custa milhares de milhões de dólares todos os anos e em todo o mundo. E sim, dirigir uma redação, ou trabalhar numa, é um desafio para o sono. As notícias, claro, nunca param, pelo que havia definitivamente a tentação de os editores e jornalistas tentarem replicar o ciclo de 24 horas das notícias. Fizemos muito [na redação do Huffington Post] para tentar evitar o burnout. Primeiro, deixámos claro que não era esperado que ninguém consultasse o e-mail de trabalho depois do horário laboral e durante o fim de semana (a não ser que essas fossem horas de trabalho). E todos tinham, pelo menos, três semanas de férias, coisa que era altamente encorajada. E também instalámos duas salas para sestas na nossa redação. Mas a chave é estruturar os incentivos da maneira correta — deixando muito claro que andar por aí esgotado e exausto, sem fazer intervalos para descansar e recarregar, não é forma de progredir no trabalho.
Porque resolveu deixar o The Huffington Post?
Depois do meu colapso por exaustão em 2007, fiz algumas mudanças na minha vida e fiquei cada vez mais interessada em burnout, stress e sono. Isso levou-me a escrever os meus livros, Thrive e A Revolução do Sono. E à medida que viajava pelo mundo para falar deles, fiquei espantada com a resposta que tive. A todo o lado onde ia, as pessoas aproximavam-se e contavam sempre a mesma coisa: como estavam esgotadas e como sentiam que já não conseguiam dar conta das exigências das suas vidas, do trabalho e das tecnologias. Percebi que tinha de alertar para estes problemas e fazer algo sobre eles. Então, fundei a Thrive Global [uma plataforma sobre bem-estar e produtividade, criada em 2016] para ajudar as pessoas a fazerem as mudanças de que precisam para dar prioridade ao bem-estar e serem melhores nos seus trabalhos.
Dos adultos para os menores, o que acontece a uma criança que não dorme o suficiente? Que tipo de cuidados devem ter os pais?
Dormir é obviamente uma grande questão para as crianças. Os seus cérebros desenvolvem-se rapidamente — habilidades linguísticas, motoras e cognitivas –, e dormir é extremamente importante neste processo. A falta de horas de sono nas crianças pode naturalmente levar ao mesmo conjunto de problemas de saúde que nos atingem. A rotina é muito importante para as crianças, tal como é para nós. Mas se um pai está a fazer todas as coisas certas — um quarto escuro e tranquilo, uma rotina consistente antes de ir dormir, etc. — e ainda assim a criança não dorme, então será importante falar com um pediatra.
A privação de sono está associada a ansiedade, stress, depressão e/ou esgotamento. Isto já não é novidade e pode ser considerada informação repetida. Então, na sua opinião, porque é que as pessoas não mudam de comportamento?
É muito difícil [fazê-lo] no nosso mundo moderno, devido à maneira como as exigências do trabalho aumentaram a par e passo com a tecnologia e à forma como isso nos permitiu estar conectados ao nosso trabalho 24 horas e sete dias por semana. Mas é particularmente difícil ir contra uma cultura predominante que ainda mantém, num formato coletivo, estes delírios perigosos sobre o sono. É por isso que temos de mudar toda esta cultura de burnout, na qual a privação do sono é celebrada e considerada um sinal de dedicação de uma pessoa ao trabalho, ao invés de ela cuidar de si própria.
Vamos assustar os leitores: o que de pior pode acontecer quando está em causa a privação de sono?
Bem, o pior que pode acontecer é a morte. Não só porque a privação prolongada de sono pode ser, em si, fatal, mas também porque dormir está implicado em muitas doenças, do cancro às diabetes, passando pelas doenças cardíacas. Também há o perigo da condução sonolenta, que é responsável por milhares de mortes todos os anos.
Há toda uma indústria à volta da privação de sono e, no livro, dedica um capítulo inteiro ao tema. Como olha para os chamados “comprimidos para dormir” que, no livro, diz terem tantos e perigosos efeitos secundários, e como acha que estes deveriam realmente chamar-se?
Eles devem ser encarados com muito mais ceticismo. Ajudas para dormir podem ser muito perigosas e não deviam ser usadas como uma solução a longo-prazo para a higiene diária do sono. Todas elas vêm com grandes e extensos efeitos secundários, e há também uma miríade de problemas de saúde que podem colocar-nos em risco quando estas são usadas a longo-prazo.
A higiene do sono está em vias de extinção? Estamos perante uma epidemia?
É definitivamente uma epidemia global. Felizmente também estamos na idade de ouro da ciência do sono, que está a mostrar, estudo após estudo, os benefícios claros em todas as partes das nossas vidas de dormir adequadamente. Cada vez mais as empresas estão a aperceber-se disso, que a sua saúde está ligada à saúde e bem-estar dos seus colaboradores. Isto está a acontecer globalmente, mas não rápido o suficiente. É isso o que a Thrive Global quer fazer, acelerar esta mudança global.