Índice
Índice
Há oito anos, a Crimeia foi a votos. Nessa altura, as tropas russas já estavam estacionadas na península e a independência face à Ucrânia tinha sido proclamada de forma unilateral. O referendo servia para formalizar o pedido da Crimeia, maioritariamente habitada por russos étnicos, e da cidade de Sebastopol para serem integradas na Federação Russa, abandonando a Ucrânia. Os resultados? Mais de 90% dos eleitores responderam “sim” à pergunta, num referendo considerado ilegal pelas Nações Unidas. Agora, as circunstâncias repetem-se e multiplicam-se por quatro pontos de uma mancha de território na região sudeste do país.
Sete meses depois de a Rússia ter invadido a Ucrânia, entre 23 e 27 de setembro haverá referendos nos territórios ocupados de Donetsk e Lugansk (que juntos formam o Donbass), Zaporíjia e Kherson. Os primeiros resultados deverão ser conhecidos a 28 de setembro, segundo a imprensa local. Os referendos serão ilegais, sobre isso não restam dúvidas aos principais líderes mundiais, mas para Vladimir Putin pouco importará — tal como não importou na Crimeia, em 2014.
Sem qualquer hipótese de os referendos serem aceites pela comunidade internacional, por que motivo quer o Presidente russo a anexação daquelas regiões? A resposta divide-se em várias partes: para consumo (e tentativa de pacificação das tensões no plano) interno, para justificar a narrativa do Kremlin, para poder acusar a Ucrânia de invadir a Rússia (como Dimitri Medvedev, antigo Presidente russo, já assumiu) e para poder mobilizar ucranianos para o exército de Moscovo.
Este último ponto é crucial, numa altura em que o exército de Kiev reconquista fatias importantes das regiões ocupadas, e quando o Presidente russo anunciou uma mobilização parcial das tropas.
Referendos sem qualquer hipótese de serem levados a sério
Em 2011, a pergunta foi: “É favorável a que a República Autónoma da Crimeia se una de novo à Rússia como parte constituinte da Federação Russa?” Agora, pelo que a imprensa russa e ucraniana avançam, a formulação deverá ser idêntica, já que está em causa uma união com a Federação Russa e não a criação de repúblicas independentes.
Referendos no Donbass sobre anexação pela Rússia de 23 a 27 de setembro
A pergunta a referendar tem de ser clara e passível de ser respondida com um sim ou um não, como aconteceu em 2011. Este é apenas um dos muitos requisitos exigidos pela comunidade internacional para que um referendo seja considerado válido. O facto de a Ucrânia ser um país em guerra inviabiliza qualquer referendo, como explica ao Observador o analista Simon Schlegel. “Não é válido, absolutamente. Não há nenhuma forma de tornar estes referendos legais, não há nenhuma medida que pudesse ser tomada que levasse a Ucrânia a aceitá-los. Há militares na região, tudo isto é ilegal”, explica o analista sénior do think tank Crisis Group.
“Não interessa o quão bem eles conduzam o processo — e provavelmente não vão conduzi-lo bem —, nenhuma das circunstâncias à volta do referendo pode torná-lo legal”, esclarece Simon Schlegel. “Na região há forças ocupantes que têm controlo absoluto sobre as pessoas que ali estão.”
Mónica Dias, professora de Relações Internacionais na Universidade Católica, tem opinião semelhante. “A questão da legalidade não vai funcionar a nível internacional, porque há regras muito claras para a realização de um referendo. É uma tentativa de falar sobretudo para a Rússia para legitimar as ações e conseguir um apoio doméstico que está a falhar”, diz a especialista em Resolução de Conflitos aos microfones da Rádio Observador.
[Ouça aqui: A História do Dia. Os referendos de Putin na Ucrânia são válidos?]
A questão da Crimeia e de outros referendos são analisados no paper “Referendos de Independência em Direito Internacional”, assinado pelos professores Daniel Moeckli e Nils Reimann da Universidade de Zurique. Se os autores escrevem que “nada na lei internacional impede um Estado, ou uma entidade semelhante a um Estado, de realizar um referendo sobre a independência de um território dentro desse Estado”, também é verdade que “sem um referendo” e “sem o apoio da população”, a proclamação de independência não será legal.
Apesar disso, um referendo “é uma condição necessária, mas não suficiente”, argumentam os dois catedráticos. “Um referendo de independência bem sucedido não cria um direito à secessão unilateral; a adesão de uma entidade à comunidade internacional depende, afinal, do seu reconhecimento como Estado por outros Estados”, escrevem os autores, apontando vários exemplos, entre eles o da Crimeia.
Ou seja, o direito internacional exige um referendo para questões de independência, mas também tem regras sobre como ele deve ser conduzido. Entre outras, há a exigência de que os referendos sejam por sufrágio universal e igualitário, realizada por voto secreto e garantindo a livre expressão da vontade dos eleitores.
“A resposta internacional ao referendo da Crimeia de 2014 ilustra o significado desses padrões internacionais. Estados e organizações internacionais em uníssono recusaram-se a reconhecer o resultado do referendo, citando razões como intimidação militar, manipulação dos media, preparação insuficiente, implausibilidade dos resultados ou falta de observação internacional credível”, escrevem Daniel Moeckli e Nils Reimann.
A redação da questão do referendo e a falta de neutralidade das autoridades foram outras preocupações — tudo argumentos que se podem decalcar para a situação que se vive nos territórios ocupados pela Rússia.
Um outro referendo na Ucrânia, o de 1991, convocado na sequência do colapso da União Soviética, foi aceite pelas Nações Unidas. Nessa altura, a pergunta era: “Apoia o ato de declaração da independência da Ucrânia?” Os resultados foram favoráveis à independência. Os habitantes da Crimeia e de Sebastopol foram os que mais se dividiram sobre a questão da independência —apenas 54% e 57% dos eleitores a queriam, quando noutras regiões os valores ultrapassavam os 80% e até os 90%.
Mensagem para consumo interno e não para o Ocidente
“Se a ideia do referendo de Donbass não fosse tão trágica, seria engraçada.” As palavras são de Emmanuel Macron, Presidente francês, que, em Nova Iorque, à margem da 77.ª Assembleia Geral das Nações Unidas, disse considerar os planos para realizar vários referendos “uma paródia”. Não foi o único a desprezar a notícia.
“Esses referendos falsos não têm legitimidade e não mudam a natureza da guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia”, acusou o secretário-geral da NATO, Jens Stoltenberg. Do lado da Casa Branca, a reação foi idêntica. “A Rússia está a realizar referendos falsos com três dias de antecedência, porque continua a perder terreno no campo de batalha”, disse Jake Sullivan, conselheiro de Segurança Nacional.
EUA e NATO veem referendos pró-russos como prova de fraqueza de Moscovo
Sem efeito sobre os líderes do Ocidente — Volodymyr Zelensky, presidente ucraniano, também desvalorizou os referendos —, Simon Schlegel acredita que o anúncio é para os russos e para mais ninguém. Até por isso, ter observadores internacionais, um dos requisitos para os referendos serem válidos, não mudaria nada. “Os referendos não são para a audiência do Ocidente. Os observadores estão ali para acrescentar legitimidade, quando um governo quer ter legitimidade face a outro governo. A Rússia não precisa disso. O que eles precisam é de uma construção interna para justificar o que estão a fazer e conseguir recrutar mais pessoas.”
A maioria das pessoas percebe as mentiras do regime, defende o analista sénior do Crisis Group, mas ao mesmo tempo, publicamente, é a narrativa que usam porque todas as outras são castigadas. “O referendo é apenas para isto, para lhe dar um ar de legalidade, que poderá ser usado ao longo de anos. O referendo da Crimeia de 2014 continua a ser usado para justificar muitas ações russas, embora ninguém acredite que foi legal”, sublinha Schlegel.
“Não são afirmação de força, são afirmação de desespero”, completa a professora da Universidade Católica. Para Vladimir Putin, os referendos “têm valor político, valor interno”, sustenta Mónica Dias, e “passam a ideia de alguém que respeita a população dos territórios libertados”.
E, do nada, Kiev torna-se o invasor na narrativa do Kremlin
“Invadir o território russo é um crime que permite usar todas as formas de autodefesa.” Dmitri Medvedev, antigo Presidente russo e atual vice-presidente do Conselho de Segurança da Rússia, deixou claro o seu apoio aos referendos na rede social Telegram. E ficou claro o que, na sua opinião, a Rússia pode fazer a seguir. “É por isso que estes referendos são tão temidos em Kiev e no Ocidente.”
Medvedev considerou ainda que, depois dos referendos, será “irreversível” alterar as fronteiras da Rússia.
Outra defensora dos referendos foi a jornalista Margarita Simonyan, que lidera a RT (antiga Russia Today), um órgão de comunicação social controlada pelo Estado russo. “Um referendo imediato é o cenário da Crimeia”, escreveu nas redes sociais. “Hoje há um referendo, amanhã reconhecimento como parte da Federação Russa, e depois de amanhã, ataques no território da Rússia transformam-se numa guerra de pleno direito entre a Ucrânia e a NATO com a Rússia, libertando as mãos da Rússia em todos os aspetos.”
A esta ideia, Margarita Simonyan acrescentou: “Esta semana marca a véspera da nossa vitória iminente ou a véspera de uma guerra nuclear.”
Na Ria Novosti, outro jornal controlado pelo Estado, foi a comentadora residente Irina Alksnis a deixar a sua opinião sobre o que se segue, em concreto no caso de Zaporíjia, frisando que as estruturas estatais russas demonstraram total disponibilidade para apoiar incondicionalmente o referendo. “A região planeia declarar independência e tornar-se parte da Rússia. Assim, quando a região se tornar um assunto da Federação Russa, as unidades militares ucranianas e estrangeiras localizadas no território da região ficarão numa situação muito específica e com perspetivas extremamente terríveis.”
As declarações não surpreenderam os líderes do Ocidente. Jake Sullivan já tinha previsto que algo do género seria defendido pela Rússia. Os referendos “são uma afronta aos princípios de soberania e integridade territorial”, defendeu o conselheiro de Segurança Nacional da Casa Branca. “Sabemos que serão manipulados e que a Rússia irá usá-los como base para anexar esses territórios, agora ou no futuro.”
O analista Simon Schlegel recorda que, segundo o que é possível saber em antecipação, a pergunta vai ser se o território deve ser parte da Federação Russa. Daí à anexação são dois passos. “Não vão ser repúblicas, como aconteceu no passado em Donetsk ou Lugansk, que se autoproclamaram uma república do povo. Provavelmente vai ser uma anexação, uma tentativa de integrá-los no Estado russo”, explica ao Observador.
Quanto a Kiev, passar de invadido a invasor também não lhe parece surpreendente. “A Rússia já faz essas acusações. Não é realmente uma mudança. Além disso, os ucranianos têm atacado território russo e saem-se bem. Publicamente, os ataques não são reivindicados, mas toda a gente sabe.” Neste caso, o analista refere-se a ataques dentro da fronteira russa, que o Kremlin prefere não assumir serem levados a cabo pelos ucranianos. Será diferente apontar o dedo a Kiev se um ataque acontecer em cenário de guerra.
“Todas as linhas vermelhas que a Rússia está a tentar construir para os ucranianos já foram pisadas. Não vejo tanto que haja um potencial de escalada do conflito. Vejo antes como uma justificação para o que já estão a fazer, a tentar ocupar estas terras”, argumenta Schlegel.
Kremlin precisa de soldados e pode mobilizar ucranianos
O último ponto que sustenta os referendos, e que é um receio que já foi expresso pelas autoridades de Kiev, é que a Rússia mobilize ucranianos para combaterem no seu exército. Simon Schlegel vê este cenário como muito provável.
“Já estão a recrutar ucranianos, estão constantemente a fazê-lo nas áreas ocupadas, em especial em Donetsk. Primeiro, distribuíram passaportes russos. Mas esta é uma tática russa, mobilizar pessoas de territórios ocupados. Assim que saem dos seus territórios, vemos os manifestantes: mães, mulheres de Lugansk a protestarem por homens de Donestsk serem enviados para os atacar. Sem qualquer base legal, a Rússia faz isto e não vai mudar”, refere o analista, acrescentando que há diversos vídeos a circular nas redes sociais que mostram este lado da guerra.
Por que motivo os ucranianos aceitam esta mobilização? Schlegel acredita que as pessoas não serão todas iguais e nem todas reagem da mesma maneira, havendo até quem não se importe de ser chamado para a guerra e para lutar pelo lado russo. A outros, não restará outra hipótese. “São castigados se não o fizerem. Há vídeos onde se vê homens a serem apanhados na rua para irem combater, outros em que se vê mulheres a dizer que não se vê um único homem na rua. Foram levados ou estão escondidos. É uma mobilização forçada. É-se castigado se não se lutar, e é perigoso decidir não fazê-lo.”
Com o anúncio dos referendos e da mobilização de 300 mil russos, Simon Schlegel acredita que os ucranianos ganharam um estímulo para atacar mais depressa, porque há a perspetiva de chegada de novos recrutas. No entanto, lembra que é preciso tempo para treiná-los, vesti-los, levá-los para a Ucrânia. Com referendo ou sem referendo, “os ucranianos vão tentar recuperar estas terras e a narrativa na Rússia será de que eles estão a atacar” território da federação.
Apesar disso, o analista do Crisis Group acredita que a escalada, por enquanto, é só retórica. “Não vimos o resultado da mobilização, nem sabemos quando vamos vê-la. A Rússia perdeu a iniciativa, estava em retirada, pode ser uma tentativa de recuperar a iniciativa.” Em contrapartida, mesmo isolado e com o apoio da China a esfumar-se, Simon Schlegel não vê a solidão a servir de travão a Putin. “A guerra é sobre a sua sobrevivência, sobre manter-se no poder, se tiver de o fazer sem a China, irá fazê-lo sem a China.”