Artigo atualizado a 31 de maio, às 12h08, com a resposta da Câmara Municipal de Lisboa.

Há poucos metros a separá-los, mas cumprem regras diferentes. O wine bar A Viagem das Horas, na Rua José Ricardo, em Arroios, sabe agora que no final de setembro vai ter de retirar a sua nova esplanada, numa zona que antes da pandemia era ocupada por lugares de estacionamento. Já O’Malta Bistro Bar, que fica na Rua Carvalho Araújo, do lado oposto da pequena praceta onde ambos os estabelecimentos vivem, sabe que poderá manter aqueles lugares extra até ao final do ano.

Há um motivo: o O’Malta Bistro Bar pertence à freguesia da Penha de França, ao contrário da Viagem das Horas, que faz parte da freguesia de Arroios. Como tantos outros estabelecimentos integrados nesta divisão administrativa de Lisboa, recebeu em março deste ano o alerta: a 30 de setembro, terá de retirar as mesas e cadeiras — que totalizam 15 novos lugares — que em dezembro de 2021 ganhou, depois de em novembro ter sido autorizada a criação da nova esplanada, que, como tantas outras, veio a ocupar lugares de estacionamento. Ao todo, em Lisboa, foram criadas 454 esplanadas temporárias, que ocupam 440 lugares de estacionamento (que não incluem lugares de cargas e descargas), adianta a Câmara Municipal de Lisboa (CML) ao Observador.

Todas estas esplanadas são de cariz extraordinário e foram autorizadas pela CML, no âmbito do programa Lisboa Protege, que, entre outras medidas, isentou os proprietários do setor da restauração do pagamento das taxas associadas à permanência dos lugares para clientes no espaço público. Em fevereiro deste ano, já com a Câmara de Lisboa a ser liderada por Carlos Moedas, tanto a CML como a Assembleia Municipal de Lisboa aprovaram o prolongamento das esplanadas temporárias até 31 de dezembro. Assim se vê que há um desfasamento entre os prazos que os dois estabelecimentos vizinhos terão de respeitar. Uma poderá funcionar até ao final do ano, ao passo que o outro terá de a retirar no início do outono. O que é que está em causa?

O wine bar Viagem das Horas, em Arroios, ganhou 15 lugares de esplanada em zona de estacionamento — adicionando-os aos 20 lugares, repartidos pelo interior e exterior que já tinha.

Ricardo Maneira, proprietário do Viagem das Horas, estava a par do caráter temporário destas esplanadas, mas não compreende a antecipação da data: “A pergunta que eu faço é porque é que a Junta de Freguesia de Arroios quer antecipar-se a uma decisão da Câmara Municipal de Lisboa?”. Em causa estão as queixas dos moradores — há menos lugares para estacionamento.

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Sobre a possibilidade de as freguesias anteciparem a data avançada pela CML, a mesma explica que “o licenciamento de esplanadas compete às juntas de freguesia no âmbito da gestão do seu território”, adiantando ainda que, passado o prazo, o espaço agora por elas ocupado, no “âmbito de uma medida de cariz precário e temporário”, regressará “ao uso que tinham anteriormente”.

Junta de Freguesia de Arroios considera “direitos dos moradores”

A Junta de Freguesia de Arroios, liderada agora por Madalena Natividade, garante ao Observador, numa nota escrita, que valoriza não só o setor da restauração, como a criação de uma vida de bairro dinâmica. “De todas as atividades económicas, a restauração e comércio, para além da hotelaria, são das que mais contribuem para a vida da comunidade.”

Mas, ressalva, que é preciso considerar os “direitos” dos moradores. “As atividades económicas partilham o espaço público com outra parcela igualmente importante da comunidade que são os moradores. Também têm os seus direitos, e são, também eles, participantes importantíssimos da vida de Arroios”.

“Foram-se acumulando junto dos nossos serviços as reclamações de moradores e empresas da zona que, solidariamente, entenderam a necessidade de cederem espaço de estacionamento durante as fases mais graves da pandemia”

As reclamações, relata, têm vindo a acumular-se: “Com o aligeirar da situação pandémica, nomeadamente a sua gravidade, foram-se acumulando junto dos nossos serviços as reclamações de moradores e empresas da zona que, solidariamente, entenderam a necessidade de cederem espaço de estacionamento durante as fases mais graves da pandemia, mas agora pedem que lhes seja devolvido o mesmo espaço.”

E foi, precisamente, esta a causa que levou à antecipação do prazo prometido pela CML. Além de conversas com moradores, a junta relata diálogo com alguns empresários do setor da restauração, com quem foi então acordada a data de 30 de setembro. Conclui-se que esta “seria uma data razoável para a remoção das esplanadas e posterior reconversão ao seu estado original de locais de estacionamento.”

Miguel Leal, sócio gerente do Maria FoodHub — outro estabelecimento localizado na freguesia de Arroios, nos Anjos — não concorda com o timing, porque nem sempre o final do verão coincide com a chegada do tempo frio. “Em outubro ainda há calor. Vamos perder muitos clientes.” E o proprietário da Viagem das Horas lamenta não ter sido parte da conversa. “Tomaram uma decisão unilateral. Nem falaram connosco. Não é uma decisão consertada. Aqui ao lado, na Penha de França, as esplanadas podem continuar até dezembro, mas nós, porque somos de Arroios, temos de tirar. Porque é que umas podem ficar e outras não? Não há razão para uns serem tratados de uma maneira e outros de outra.” 

O sócio gerente do Maria Food Hub tentou procurar um solução alternativa, mas sem resultado: “Recebemos o email da Junta de Freguesia de Arroios a dizer que a esplanada seria retirada. Respondi de forma a perceber se haveria alguma maneira de contornar o assunto, mas a resposta foi não. Não há grande espaço para o diálogo, para ouvirem a outra parte.”

Ambos os proprietários acreditam que devolver o espaço das esplanadas ao estacionamento não é forma de resolver um problema “profundo” que já existia antes da pandemia: “Não é retirando as esplanadas que vieram dar vida à cidade que o problema do estacionamento em Arroios se resolve. Este é um problema mais profundo e que já existia antes da pandemia. É necessário que haja uma mudança de paradigma, que se incentive a utilização da rede de transportes públicos, que deve ser melhorada”, diz Ricardo Maneira.

Menos esplanadas equivalem a “menos postos de trabalho” e a uma cidade “menos verde”

Foi Ricardo Maneira um dos principais responsáveis pela criação de uma petição pública lançada na quinta-feira, 26 de maio, para travar o fim destas esplanadas. “Os vários colegas alinharam e estão unidos”, conta. O propósito é a recolha de assinaturas para travar o novo e mais reduzido prazo de vida das esplanadas temporárias. Esta segunda-feira, 30 de maio, contabiliza 1746 assinaturas.

Miguel Leal também assinou a petição. O espaço, que fica na Rua Maria Andrade, nos Anjos, foi outro dos que recebeu o aviso para retirar a esplanada de quatro meses, onde estão cinco mesas, em que cabem cerca de oito pessoas. Antes, e tal como no caso da Viagem das Horas, o espaço servia de estacionamento, desta vez para cargas e descargas. “Diariamente, passam por volta de 70 pessoas nestas mesas”, calcula o sócio-gerente. “Há uma grande diferença entre estarem 70 pessoas ou um carro a usufruírem deste que é um espaço público.”

A esplanada do Primo do Queijo, nos Anjos, está entre dois carros que, conta Bruno Ribeiro, o proprietário, ali estão estacionados há, pelo menos, nove meses. “Os dois carros estão parados há tanto tempo quanto foi construída a nossa esplanada”, conta. Propriedade de uma vizinha do bairro, foi o próprio que os estacionou, de forma a abrir espaço para o estrado em calçada portuguesa, onde ficam as mesas e cadeiras que, desde outubro de 2021, permitem servir 12 clientes. “Não sei se é preferível estarem aqui parados carros durante meses ou uma esplanada que favorece centenas de pessoas”.

No interior, o Maria Food Hub conta com cerca de 50 lugares.

Com o aumento dos lugares, as equipas cresceram. Esse será, num futuro cada vez mais próximo, um problema: “Criámos postos de trabalho. Somos quatro pessoas. Perdendo a esplanada, vou ter de despedir alguém”, destaca Ricardo Maneira, lembrando que a criação dos postos de trabalho são uma forma de “ajudar economicamente o país.”

A debater-se com o mesmo está Miguel Leal: “70 pessoas já pagam o ordenado de um dos colaboradores. Se esta medida avançar, não sabemos como manter esse lugar. Vai haver quebras na faturação. Não vamos conseguir justificar continuar com o mesmo número de trabalhadores. É muito preocupante. Quando contratamos alguém, ficamos com a responsabilidade nas costas. Estávamos a contar que estes lugares se mantivessem até ao final do ano. Agora estão a dizer que é até ao final de setembro.”

As esplanadas são ainda uma forma de promover o convívio na rua, representando, pela diminuição no número de carros na via pública, um contributo para a criação de uma cidade mais verde, lembra Ricardo Maneira: “Acho que a cidade tem vivido um mudança de paradigma, que se vê por todas as cidades da Europa e que Arroios não está a acompanhar.”

Miguel Leal nota essa mesma adesão aos espaços exteriores: “As pessoas começaram a habituar-se às esplanadas — que tínhamos tão poucas aqui na área —, a sair de casa, a conviver mais na rua. Temos cliente, sobretudo idosos, que não se sentem confortáveis em espaços interiores.”

Junta de Arroios acredita que anterior executivo fez falsas promessas

A Junta de Freguesia lembra que a “decisão da medida de apoio excecional”, bem como a informação aos comerciantes sobre a mesma, foram tomadas pelos anteriores executivos, quer da CML, quer da Freguesia de Arroios — à data, dirigidas por Fernando Medina e Margarida Martins, respetivamente.

“Queremos crer que os comerciantes foram devidamente avisados, na altura, do caráter excecional da medida e que a mesma teria um fim”, diz o novo executivo, lembrando que houve o cuidado de, “atempadamente, voltar a falar com os empresários detentores dos 43 locais de esplanadas atribuídos temporariamente, para os relembrar do caráter temporário da medida.” Tanto Ricardo Maneira como Miguel Leal estavam, de facto, conscientes do caráter temporário destas esplanadas. Mas Bruno Ribeiro não.

O proprietário abriu as portas do estabelecimento — que conta apenas com seis lugares no interior — há um ano, tendo sempre em mente ali construir uma esplanada. Este foi, aliás, um critério importante na escolha daquele espaço nos Anjos.

O que lhe foi dito pelo executivo anterior foi de que ficaria isento do pagamento da licença da esplanada durante o período da pandemia. “A licença é temporária, mas o que nos foi dito é que depois de terminar o período da COVID-19, as regras iam mudar, mas não no sentido de termos de retirar a esplanada— apenas de pagar a licença, a que estávamos dispostos”, diz. “A nossa loja não faz sentido sem esplanada. Se tirarmos temos de pensar em mudar de sítio ou fechar o negócio.”

O estabelecimento O Primo do Queijo não foi avisado sobre o caráter temporário das esplanadas autorizadas em lugar de estacionamento durante a pandemia

A Junta de Freguesia de Arroios fala sobre uma alegada criação de falsas expectativas por parte do antigo executivo, junto dos empresários do bairro: “Chegou ao nosso conhecimento que o anterior executivo da Freguesia de Arroios possa, suposta e eventualmente, ter feito algum tipo de promessas quanto à continuação das esplanadas passado o período excecional e que possa ter incentivado os comerciantes a fazerem avultados investimentos”, diz. A esplanada da Viagem das Horas, cujo investimento contou com um apoio da Câmara Municipal de Lisboa, custou quase sete mil euros. Já o Maria Food Hub gastou cerca de 2.800 euros, sem nenhum tipo de apoio. O Primo do Queijo investiu ali por volta de três mil euros.

Ficam, no entanto, a faltar as provas, diz a Junta de Freguesia de Arroios. “Pelo que conseguimos averiguar, não existe qualquer documentação que confirme essas promessas ou intenção. Mas, obviamente, a terem existido não podem ser consideradas válidas, por não estarem de acordo com os regulamentos que a própria CML, à altura dirigida por Fernando Medina, desenhou para estas as medidas de caráter excecional”, acrescenta a Junta de Freguesia de Arroios.

Questionada sobre a possibilidade de alargar o prazo de permanência das esplanadas, colocando-o em linha com aquele que foi estipulado pela CML, a Junta de Freguesia de Arroios garante que “está sempre disponível para conversar e auxiliar” os seus “empresários e comerciantes na procura por soluções alternativas, sustentáveis e que lhes permitam prosperar.”

Mas ressalva: “É necessário reter que o espaço público é finito e terrivelmente limitado. Nunca consideraremos que existam demasiadas esplanadas, assim como nunca consideraremos que existam demasiados lugares de estacionamento para moradores.”

O que vão fazer as outras freguesias de Lisboa?

Algumas vão cumprir o prazo, como é o caso da Junta de Freguesia de Santo António, uma das que tem mais estabelecimentos com esplanadas na cidade: e que vai manter até ao final do ano 33 esplanadas em lugar de estacionamento que autorizou.

“Foram aprovados 61 pedidos ao abrigo do referido regime extraordinário, que incluíram 26 alargamentos de esplanadas que já existiam e 36 esplanadas em lugar de estacionamento”, explica. “Os primeiros aconteceram em esplanadas instaladas no passeio e as novas, em lugar de estacionamento, estão espalhadas um pouco por toda a Freguesia de Santo António, com especial incidência na Rua da Escola Politécnica e envolvente.”

Das 36 esplanadas em lugar de estacionamento, três foram removidas ou estão em vias de ser removidas, devido ao encerramento dos estabelecimentos. “As 33 que subsistem, ocupam um total de 39 lugares de estacionamento.”

“É nossa intenção, no final do presente ano, quando termina a isenção de taxas de ocupação de espaço público ao abrigo da proposta aprovada pela CML e AML, analisar cuidada e individualmente caso a caso e sugerir uma solução para cada um deles.”

E assim será até ao final do ano — as esplanadas vão ficar. “A freguesia já comunicou aos detentores de licenças para esplanadas extraordinárias, aprovadas no âmbito da proposta 273/CM/2020, que se poderão manter até ao final do ano.”

Isto apesar de também aqui se assistir “a uma cada vez maior circulação automóvel”, fruto do regresso a uma “situação de quase-normalidade”. Aliado ao facto de que muitos moradores terão regressado à cidade, depois de uma ausência durante a pandemia, regressa também assim, relata a autarquia, “a pressão sobre as bolsas de estacionamento existentes, problema aliás amplamente debatido muito antes da pandemia de 2020.”

Também aqui os moradores exigem os lugares de estacionamento de volta. No entanto, a freguesia fala também da necessidade de apoiar os empresários: “Se por um lado os moradores reivindicam o seu direito ao descanso e os lugares de estacionamento para as suas viaturas, por outro os empresários precisam de apoio para a recuperação da saúde financeira das suas empresas depois de dois anos de sacrifício”, diz na nota escrita enviada por email, lembrando que “o primeiro e mais direto impacto destas esplanadas é, desde logo, o agravamento das dificuldades de estacionamento.”

Referindo as diferença da capacidade de estacionamento entre cada zona, e destacando a existência de realidades distintas “no seu tecido geográfico, social e humano”, a Junta de Freguesia de Santo António adianta que, no final do ano, pretende analisar caso a caso: “É nossa intenção, no final do presente ano, quando termina a isenção de taxas de ocupação de espaço público ao abrigo da proposta aprovada pela CML e AML, analisar cuidada e individualmente caso a caso e sugerir uma solução para cada um deles.”